Transformamos pobres em consumidores e não em cidadãos, diz Mujica

Ana Maria Bahiana, De Los Angeles para a BBC News Brasil

Em entrevista à BBC News Brasil, o ex-presidente do Uruguai José Mujica reforça uma admissão de culpa sobre o que considera ter sido uma falha dos governos de esquerda na América Latina.

“Conseguimos, até certo ponto, ajudar essa gente (pobres) a se tornar bons consumidores. Mas não conseguimos transformá-los em cidadãos”, diz ele em Los Angeles, nos Estados Unidos.

Mujica estava na cidade por causa de dois filmes que retratam momentos de sua vida: o longa de ficção A Noite de 12 Anos, do uruguaio Álvaro Brechner, e o documentário El Pepe,Una Vida Suprema, do sérvio Emir Kusturica.

O primeiro, pré-selecionado pelo Uruguai na disputa por uma indicação ao Oscar de filme estrangeiro, acompanha a militância do ex-presidente e de companheiros nos anos 1970 na guerrilha urbana Tupamaros. O segundo foca em sua vida pessoal e em suas ideias. As filmagens de Emir Kusturica começaram em 2014, durante os últimos dias de sua presidência.

Questionado sobre sua opinião em relação ao novo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, Mujica diz acreditar que “talvez as promessas sejam piores do que a realidade” e aventa dificuldades no governo do capitão reformado.

“O ministro da economia, superfavorável a um mercado aberto, superliberal, vai ter que lidar com a burguesia de São Paulo, a mais protecionista que existe na América Latina. Como se resolve uma contradição dessas?”, pergunta.

Mujica também falou sobre crise migratória, legalização das drogas e expansão da direita na América Latina.

Confira os principais trechos.

BBC News Brasil – Como o Sr. avalia a expansão da direita na América Latina? A esquerda falhou? Como?

José Mujica – Temos muita gente com fome, sem abrigo ou com casas miseráveis, e conseguimos, até certo ponto, ajudar essa gente a se tornar bons consumidores. Mas não conseguimos transformá-los em cidadãos – os processos são lentos demais, é mais fácil resolver de imediato o problema da (falta de) comida, porque é algo que fala de imediato à nossa consciência. Mas não conseguimos cortar a imensa dependência que temos deste mundo atual que se expande cada vez mais. Queremos consumir como o primeiro mundo enquanto ainda não resolvemos nossos problemas mais básicos. Isso resulta na criação de condições brutais de vida.

O mundo desenvolvido começou a caminhar 200 anos antes de nós, fez muitíssimos sacrifícios, pagos pelo povo, os únicos que trabalhavam 12, 14 horas por dia, e assim se capitalizaram. E no mundo colonial… tudo isso, não é? Nós chegamos tarde, corremos atrás, mas nem tudo está perdido. Não creio que a extrema-direita possa fazer mais além de concentrar ainda mais a riqueza. E, por infelicidade, teremos que aprender a ser mais pacientes, e continuar trabalhando. Os termos “esquerda” e “direita” são muito modernos, mas as faces do conservadorismo e da solidariedade são tão antigas quando a existência dos humanos sobre a Terra. Seguiremos em frente.

BBC News Brasil – E o Brasil acaba de eleger Jair Bolsonaro, considerado como representante dessa onda de direita…

Mujica – Creio que o povo brasileiro encontrará um caminho para resistir, em parte, e preservar o que tem de melhor em si. Talvez as promessas sejam piores do que a realidade. Não sei como (o futuro governo) poderá resolver contradições como esta: colocar um ministro da economia, superfavorável a um mercado aberto, superliberal, que vai ter que lidar com a burguesia de São Paulo, a mais protecionista que existe na América Latina. Como se resolve uma contradição dessas? Não sei. Uma coisa são as palavras, outras são os fatos.

BBC News Brasil – Como o Sr. avalia a atual situação de imigração nos Estados Unidos, especialmente diante das ondas de caravanas de imigrantes da América Central?

Mujica – Quando acabou a Primeira Guerra Mundial, as condições que foram impostas aos perdedores foram tão severas que o jovem (economista britânico John Maynard) Keynes disse “isso é horrível, vai nos levar a um desastre!”. E assim se deu. Mas depois da Segunda Guerra Mundial ficou bem claro (para os Estados Unidos) que a única solução possível era o Plano Marshall – era preciso levantar a Europa. Por quê? Porque estavam com medo, assustados, porque ali ao lado morava o urso soviético.

Para resolver a questão da imigração, os Estados Unidos têm que ajudar a levantar a América Central. Essa é a grande resposta. O oposto disso é gastar uma fortuna na fronteira dizendo “não”, quando na verdade eles precisam dizer “sim”. Quem vai limpar a casa dos ricos? Quem vai trabalhar o solo? Quem vai desentupir os canos? Por favor! Por isso me parece dramaticamente ridículo o que está se passando.

BBC News Brasil – Para muitas pessoas, especialmente os jovens, o Sr. ficou conhecido como a pessoa que legalizou a maconha no Uruguai. E agora a Califórnia legalizou a maconha, e muitos outros Estados americanos fizeram o mesmo. Qual foi o resultado desse experimento em seu país?

Mujica – A realidade (das drogas) é muito mais profunda. Há 80 anos, combate-se o narcotráfico e mal conseguimos arranhar sua superfície. Reconhecemos que, para mudar esse quadro, não podemos continuar fazendo sempre o mesmo. Temos dois problemas: a praga da dependência das drogas e a praga do narcotráfico. Se começarmos a regular o uso da droga, eliminamos o narcotráfico. Mas nos resta o problema médico – mas identificando e conhecendo o consumidor, podemos atendê-lo a tempo. As pessoas às vezes se esquecem de como eram quando jovens. Quanto mais se proíbe um jovem, mais ele quer fazer as coisas. Eu creio que as drogas são uma praga, mas proibir é como dizer às pessoas “experimente!”. Não há bicho mais estúpido que o ser humano, o único capaz de fazer mal a si mesmo.

BBC News Brasil – Agora que o Sr. não é mais presidente, como vê o que está sendo feito no Uruguai?

Mujica – O atual presidente (Tabaré Vázquez) é um velho amigo meu, está fazendo o que pode. Nós não temos uma varinha mágica ou um antídoto universal, somos parte deste mundo. O que as repúblicas modernas devem estar fazendo é gritar contra os remanescentes do feudalismo e das monarquias divinas, dizendo que somos todos iguais. Não se deve lutar pela maioria do voto se você não partilha das aspirações e frustrações da maioria. Em outras palavras, para ser bem claro – eu acredito que governantes devem viver como pessoas comuns. Eles deveriam abandonar os resquícios do feudalismo, os tapetes vermelhos, as fanfarras, a corte de bajuladores. Temos que voltar às fontes do republicanismo. Mas é muito difícil.

BBC News Brasil – O Sr. se tornou uma figura quase mítica tanto na América Latina quanto na Europa. Tem algum receio de que, com o tempo, suas palavras sejam distorcidas ou mal compreendidas?

Mujica – Isso certamente vai acontecer. Certamente. Como dizia o poeta Luis de Góngora, “fazer poesia é dizer uma coisa por outra”. Para satisfazer as necessidades jornalísticas, para ter uma boa manchete, as pessoas tiram palavras de seu contexto. Isso é inevitável. Mas eu durmo bem à noite. Vivo na mesma casa há 34 anos, mais ou menos. Fui ministro, senador, presidente, e nada disso me subiu à cabeça. Sou um homem humilde, como a maioria das pessoas do meu país, e é assim que quero morrer. O resto eu acho divertido. Deixe que eles se divirtam. No fim das contas, comparados com o universo, somos todos menores do que as formigas.

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