Invasores ‘rasgam’ decisões judiciais, permanecem na TI Pankararu e cartas com ameaças chegam aos indígenas

Além de haver posseiros insistentes na permanência nas aldeias Bem Querer de Baixo e Caldeirão, muitos dos que decidiram se retirar mantiveram suas antigas roças, ameaçando os Pankararu do entorno

por Renato Santana, em Cimi

Conforme o previsto por lideranças indígenas, a retirada violenta dos posseiros que ocupavam a Terra Indígena Pankararu, em operação liderada pela Polícia Federal no dia 13 de setembro do ano passado, há quase cinco meses, deixou consequências desastrosas. Além de haver posseiros insistentes na permanência nas aldeias Bem Querer de Baixo e Caldeirão, muitos dos que decidiram se retirar mantiveram suas antigas roças, ameaçando os Pankararu do entorno; outros, junto à Justiça Federal, sacaram a indenização pelas benfeitorias, mas as depredaram parcialmente para não deixar aos indígenas. Cartas com ameaças de morte formam uma coleção macabra de modos diferentes de assassinatos a serem praticados contra os destinatários Pankararu. “Um grupo de não-índios, que já recebeu as indenizações, segue transitando em nossas terras, causando transtornos e insegurança, inclusive verbalizam pra gente que isso não vai ficar assim“, relata indígena, que falou na condição de anonimato, tal como os demais entrevistados e entrevistadas, em face das ameaças sofridas.

Entre outubro e dezembro, três atentados incendiários assustaram o povo. Horas após a definição do segundo turno das eleições 2018, no início da madrugada do dia 29 de outubro, criminosos atearam fogo à Escola Municipal São José e ao Posto de Saúde da Família (foto acima), estruturas localizadas dentro da Terra Indígena. Já no dia 8 de dezembro, a Igreja Nossa Senhora da Conceição foi atacada com mais um incêndio criminoso. Tanto a escola, quanto o posto de saúde e a Igreja ficam na aldeia Bem Querer de Baixo. Então no dia 26 de dezembro ocorreu o último ataque desta série: a Escola Estadual Indígena José Luciano, localizada na aldeia Caldeirão, teve duas salas queimadas: o prejuízo não foi maior porque os Pankararu chegaram a tempo para apagar as chamas. Nenhum envolvido nos crimes foi identificado pelas investigações.

Uma espécie de jogo de sete erros das autoridades públicas levou a situação a tal ponto. “A Funai (Fundação Nacional do Índio) deveria ter ido fazer a inspeção antes de dar o alvará autorizando (aos posseiros) a retirada da indenização. Pegar o laudo da benfeitoria e checar se o que estava sendo pago estava na posse a ser entregue. Não fizeram isso. Sequer pegaram as chaves das casas”, afirma uma liderança Pankararu. Eram 302 famílias de posseiros, mais ou menos a mesma quantidade de moradias, mas a Comissão de Terras Pankararu, formada por todas as organizações sociais do povo para definir o destino das posses reintegradas, recebeu apenas cinco chaves de imóveis. Atualmente, dez famílias posseiras ainda residem na Terra Indígena: duas delas com autorização dos Pankararu, por razões humanitárias, e as outras oito insistem em não sair afrontando as decisões judiciais e “levando insegurança”, conforme os indígenas, às aldeias. Os demais invasores adotaram formas híbridas de permanência na Terra Indígena, seja mantendo espécies de caseiros nas casas ou mantendo, à força, o controle de roças e cercados com criações.

No último dia 9 de janeiro, o povo Pankararu encaminhou uma carta à Procuradoria-Geral da República (PGR), ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 5a Região, à Funai, à 38a Vara Federal da Justiça de Pernambuco, ao Ministério Público Federal (MPF) em Serra Talhada (PE), à Polícia Federal de Salgueiro (PE) e ao Programa Estadual de Defensores dos Direitos Humanos de Pernambuco. A lista de autoridades públicas é extensa, mas reflete o apelo feito pelos Pankararu: “Esperávamos que com a decisão judicial que determina a retirada dos ocupantes não índios da nossa terra fosse garantir a paz e a tranquilidade para o nosso povo. Contudo, desde o início da implementação desta decisão judicial vem ocorrendo vários fatos contra a segurança da nossa comunidade (SIC)”, diz trecho da carta.

José Eloi Filho, conhecido na região como Zé da Viúva, é alvo de uma das denúncias apresentadas pelos Pankararu neste documento entregue às autoridades. No dia 13 de setembro, de acordo com o documento, o posseiro se retirou. Mesmo indenizado pelas benfeitorias de sua antiga posse sobreposta à Terra Indígena, Zé da Viúva, conforme a denúncia protocolada nos órgãos públicos, “segue mantendo suas criações de caprinos, ovinos e de abelhas dentro da Terra Pankararu, tendo este animal destruído plantações de uma indígena”. Este fato ocorre na aldeia Caldeirão, local ainda de trânsito e parada de posseiros durante todo o dia, relatam os Pankararu. A indígena ameaçada encaminhou denúncia à Polícia Federal de Salgueiro. Lideranças que residem em outras aldeias, não apenas Bem Querer de Baixo e Caldeirão, também são alvos constantes de ameaças e cartas descrevendo como serão assassinadas.

“Os indígenas Pankararu, que ocupam aquele território há séculos, esperam há mais de 90 anos que o processo de regularização territorial seja finalizado”

Em dezembro, por sinal, não ocorreram apenas os incêndios. “Cortaram muricizeiros e outras árvores frutíferas na aldeia Bem Querer de Baixo, que estavam relacionadas entre as benfeitorias pagas. Destruíram também a plantação de mandioca de um indígena, que também ameaçaram. Escreveram no chão que ele ia morrer”, diz uma outra liderança Pankararu em declaração sob condição de anonimato. Os arames das cercas, que protegem plantações de animais criados soltos, são constantemente cortados e os Pankararu passaram a conviver com perdas significativas de cultivos. Na carta às autoridades públicas, é possível perceber que os indivíduos não identificados, autores dos ataques, sempre deixam um bilhete ou uma carta com ameaças de morte ao indígena e à família.

Povo aguardou de forma pacífica

Há 25 anos os Pankararu aguardam pelo usufruto exclusivo da Terra Indígena demarcada em 1987. A demarcação realizada na década de 1940 pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), todavia, chegava ao dobro da atual. Em 1993, o MPF ajuizou a primeira ação na 38ª Vara da Justiça Federal de Serra Talhada pela retirada dos posseiros. Entre 1995 e 1998, cerca de 153 ocupantes não-índios saíram do território. Por mais que tenha incentivado a saída legal e organizada destes ocupantes, só em 2003 uma sentença reconheceu os direitos territoriais dos Pankararu, e a determinação pela retirada dos posseiros foi concedida. A União e o Incra – que deveriam reassentar os posseiros – recorreram. O TRF- rejeitou os recursos. A mesma postura adotou o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em 2010 a decisão transitou em julgado. A Funai constituiu em 2012 um Grupo de Trabalho para atualizar os valores das benfeitorias decorrentes da ocupação de posseiros. Em 2013, o valor definido pela equipe técnica da Funai para o pagamento das indenizações totalizou R$ 6 milhões. Algumas famílias entraram com ações na Justiça Federal para reajustar o valor das benfeitorias. Em outros casos, as ações questionam laudos de ocupação de má-fé emitidos pela Funai. Ou seja, o posseiro em questão tinha conhecimento de que a posse adquirida, ou a construção de benfeitorias nela, estava com vícios de origem e décadas de sentenças atestando a área como Terra Indígena.

“Durante todo esse tempo, nosso povo não expulsou um posseiro. Tratamos de forma pacífica, entendemos que não era justo que saíssem sem nada. Deixamos que todos aguardassem o desfecho no território indígena”, pondera uma liderança histórica do povo Pankararu. “Agora a gente vive aqui ameaçado de morte”. A consciência de que a Terra Indígena Pankararu sempre teve dono era a de dezenas de famílias posseiras. Em um período de três décadas, conforme informações da Funai e MPF, o espaço físico ocupado pelos posseiros na terra indígena caiu quase pela metade – em agosto de 1997, a ocupação batia em 38% da homologação de 8.100 hectares tradicionais; até setembro de 2018, estava em 20%. Os Pankararu tentaram inúmeras abordagens para, inclusive, evitar que algumas destas famílias saíssem da Terra Indígena, mas lá não permanecessem mais como posseiras.

Em 2015, as lideranças do povo percorreram as aldeias Bem Querer de Baixo e Caldeirão. “Propusemos que homens ou mulheres casados com indígenas ficassem na terra. A condição era que se a casa estivesse no nome do não-indígena da relação, que ela fosse passada para o nome do indígena. Feito isso, poderia ficar sem nenhum problema ou ressentimento”, explica um Pankararu. De um total de 38 famílias, 12 aceitaram os termos apresentados pelos Pankararu. Hoje, alguns destes, sofrem ameaças tanto quanto os indígenas por terem firmado o acordo. “Houve um bocado de indígena que foi embora acompanhando marido ou esposa. É um processo duro para todo mundo”. Com tantos anos na Terra Indígena, muitas destas famílias também saíram para a cidade e mantiveram suas casas no território tradicional Pankararu como uma espécie de sítio ou casa de campo. Ainda assim quem acabou retirando em setembro de 2018 não ficou sem nada. Além da indenização realizada pela Funai, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) reservou 93 lotes para o Reassentamento Abreu e Lima, destinado a estas famílias posseiras. Conforme o órgão federal, os posseiros decidiram não se transferir para o local, inclusive atrasando o cadastro das famílias (que só ocorreu por determinação judicial). No total, a área reservada a eles possui 18.500 hectares – a TI Pankararu possui 8.100 – e fica no município de Tacaratu, que ao lado de Petrolândia e Jatobá abrangem o riscado da Terra Indígena.

Impunidade estimula ameaças

“A Polícia Federal esteve aqui, sim, após os atentados, mas para investigar um crime de 2017, quando os posseiros impediram que os indígenas fossem atendidos no Posto de Saúde da Família, que foi incendiado. Será que não há relação? Um outro ponto: no dia em que tacaram fogo no posto de saúde, o vigia não foi trabalhar. Por que não vão saber o que aconteceu com o vigia?”, questiona uma liderança Pankararu. Entre as organizações sociais do povo, o que se entende é que o ambiente de impunidade tem estimulado as ameaças, as violações de decisões judiciais, o livre trânsito de posseiros hostis aos Pankararu pela terra indígena e, temem os indígenas, o assassinato de alguma liderança mais “da dianteira dessa luta antiga”.

O MPF, em Serra Talhada, determinou à Polícia Federal a abertura de inquérito para investigar o incêndio ocorrido no posto de saúde e na escola situados na aldeia Bem Querer de Baixo. A procuradora da República Maria Beatriz Ribeiro Gonçalves requereu também que sejam implementadas rondas policiais diárias no local. A assertiva ocorreu em outubro de 2018; em dezembro, a Igreja na aldeia Caldeirão foi incendiada. “Parece que não adianta nada. As decisões da Justiça saem e não acontece nada. Ao contrário, os policiais federais estiveram na aldeia e foram dizer que se o povo não estava satisfeito com a liderança indígena, tinha o direito de trocá-la. Chegaram aqui para investigar um crime de 2017, com um monte ocorrido depois, e ainda trataram de assuntos que nada têm relação com a investigação”, se revolta um Pankararu presente na reunião com os policiais.

A impunidade, apontam os Pankararu, permite que os posseiros adotem estratégias variadas para “sair da Terra Indígena, mas permanecendo nela”. Antes de se retirarem das casas, os posseiros articulam quem as irá ocupar. Conforme os Pankararu, indígenas próximos a eles são cooptados para entrar imediatamente na posse, assumindo roças e demais benfeitorias. No entendimento dos Pankararu, isso tem ocorrido para que os imóveis não sejam absorvidos pela organização social do povo, representada na Comissão de Terras, e destinados às famílias indígenas fora da articulação dos não-indígenas. “O desejo deles é que a posse fique, de uma forma ou de outra, sob o controle do posseiro. A Terra Indígena então permanece com as duas aldeias (Bem Querer de Baixo e Caldeirão) sem o usufruto exclusivo, com partes controladas por grupos externos e gente que nos ameaça aqui dentro”, destaca o Pankararu.

No documento entregue às autoridades públicas, neste mês de janeiro, os indígenas ressaltam o aspecto de que as investigações, quando ocorrem, dificilmente apontam os responsáveis pelas violências, vandalismos e ameaças contra integrantes do povo, sobretudo lideranças e destruição de equipamentos de utilidade pública. “São anos assim. Inúmeras vezes deram tiros na porta da casa da liderança Pankararu de Bem Querer de Baixo. Temos indígenas no Programa de Defensores de Direitos Humanos, outros que passam semanas sem poder sair de casa. Pedimos para que as autoridades garantam as investigações, cheguem nos responsáveis e retire os não-indígenas posseiros que seguem em nossas terras. É o que pedimos. Não basta só dar a decisão de mandar tirar, passar um dia aqui jogando bombas e achar que cumpriram a missão dando as costas e indo embora. É preciso fiscalizar, saber que tem retaliação, os mais exaltados voltam”, encerra.

Histórico da ocupação Pankararu

Em artigo publicado pelo jornal Brasil de Fato, a antropóloga Lara Erendira Andrade entende que “os indígenas Pankararu, que ocupam aquele território há séculos, esperam há mais de 90 anos que o processo de regularização territorial seja finalizado. Apesar de concordarem que as condições oferecidas pelo Incra não são as ideais para os não-indígenas, os indígenas aguardam que o processo seja finalizado para poderem ter melhores condições de vida. São mais de 7500 indígenas que vivem “impensados entre as serras”, como se diz localmente”.

Lara Erendira cita o historiador e antropólogo José Maurício Arruti, professor da Universidade Federal de Campinas (UNICAMP). Em seu estudo, ele comprova que a localização da Terra Indígena Pankararu corresponde ao sítio de uma antiga missão da ordem religiosa de São Felipe Néry. Essa missão, elucida o antropólogo, reuniu em fins do século XVIII, no Brejo dos Padres, atual coração da Terra Indígena, localizada na Serra de Tacaratu, índios de diferentes origens. Conforme o antropólogo, no local em que foi instalada essa missão já existia uma “maloca indígena denominada Cana Brava, formada pela reunião de índios Pancarus, Umaus, Vouvês e Geritacós, presumivelmente do grupo linguístico Kariri”.

O primeiro registro de aldeamento data de 1700, de acordo com a carta régia de 1703. De acordo com documentos históricos, em 1877 Dom Pedro II, em viagem pelo Rio São Francisco fez a doação de uma sesmaria, ou seja, uma légua em quadra, 14.294 hectares marcada a partir da igreja que está na aldeia Brejo dos Padres.  Quase um século depois, na década de 1940, os limites das terras reivindicados não foram respeitados e o território foi reduzido para 8.100 hectares. Assim ficou oficialmente determinado. Já em 1984, a Funai se mostra disposta a corrigir o erro e voltar aos marcos dos 14.294 hectares. Resultado: até hoje o território Pankararu continua com 8.100 hectares.

Corrida do Imbu, ritual realizado tradicionalmente na TI Pankararu. Foto: arquivo do povo Pankararu

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