Milícias do Rio, instigadas por Flávio Bolsonaro, ameaçaram juiz Damasceno devido a quadro de Latuff contra genocídio de pobres: ”Até hoje, a polícia nada apurou”

Por Conceição Lemes, no Vi o Mundo

O juiz de Direito João Batista Damasceno tem uma coluna semanal no jornal O Dia, do Rio de Janeiro.

Sai aos sábados. Nesse último, 2 de fevereiro, tratou do Perigo das Milícias (na íntegra, ao final).

São  ‘matadores’.

Já foram chamados de  ‘Esquadrões da morte’, ‘Mão branca’, ‘Grupos de extermínio’  e, agora, ‘Milícias’.

Em 25 de agosto de 2013, o juiz Damasceno pendurou no gabinete, na parede atrás da sua cadeira, o quadro Por uma cultura de paz, de Carlos Latuff.

O quadro denunciava o genocídio dos jovens pobres e pretos das periferias pela polícia.

O então deputado estadual Flávio Bolsonaro (na época PP/RJ) oficiou à presidenta do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), Leila Mariano, que era filha de policial. Ela encaminhou a queixa para a Corregedoria.

Houve, ainda, reação da “bancada da bala” e de algumas associações de policiais.

O corregedor fez uma representação judicial contra Damasceno por suposto descumprimento de dever funcional.

Alegou que a obra de arte tinha  crítica à polícia e que pendurar tal quadro num gabinete era crítica a outra instituição e que tal comportamento era indevido a um juiz.

Em 10 de março de 2014, Damasceno foi a julgamento por pendurar quadro que denuncia genocídio contra pobres.

Por 15 votos a 6 o Órgão Especial do TJRJ rejeitou a representação.

Nesse período, via cartas, telefonemas e postagens em perfis falsos, Damasceno foi ameaçado por milícias instigadas por Flávio Bolsonaro, que chegou a publicar no seu Facebook um modelo de ação judicial para que todos os policiais representassem o juiz.

Uma das postagens é esta abaixo (o negrito, ao final, é nosso):

Esse juiz João Batista Damasceno é um vagabundo safado! AntiPM filho da puta!

Ele já é conhecido por publicar em blogs e revistas, seu ódio contra policiais militares, principalmente após a morte da juiza Patrícia Accioli. Safado do caralho!

Merece ter o mesmo fim da juíza vadia Patrícia Accioli. Canalha! Ladrão do caralho!

Não bastava ele não gostar de PMs, coisa que todos nós sabemos, que juízes não gostam de policiais militares, mas, este merda fez questão de mostrar seu “AntiPeemismo” para todos que adentrassem seu gabinete.

Acho bom este verme tomar cuidado. Acha que por ser juiz, ninguém vai ter coragem de tocá-lo. A morte da juíza em São Gonçalo mostrou que não é bem assim não.

Juiz de merda! Vagabundo defensor de traficantes e toda raça de bandidos! Este juiz desrespeitou toda a instituição e generalizou totalmente os policiais.

Para ele, todos nós somos assassinos, corruptos, etc. Um filho da puta de um juiz como ele, que deve ser imparcial em suas decisões e julgar de acordo com o que a lei determina, mostrou ao expor este quadro em seu gabinete, que não age com imparcialidade porra nenhuma quando um processo de um PM é entregue em suas mãos.

Alô seu juiz de merda, João Damasceno! Você pendurou um quadro de um policial atirando em um homem numa cruz, ou seja, provavelmente representando a figura de Jesus Cristo.

Pois bem, nós não gostaríamos de pendurar um quadro não; gostaríamos de pendurar sua cabeça decaptada, seu filho de uma puta! Já que este juiz de merda fez questão de mostrar que odeia os policiais militares, que ele saiba que nós odiamos estes magistrados de merda!

Cambada de vermes, coniventes com tudo quanto é sujeira que ocorre neste país. Juízes são vermes! E assim como os políticos, traficantes e estupradores, merecem ser exterminados.

Nós, policiais, estamos revoltados com a atitude deste juiz vagabundo, e exigimos a retirada imediata deste quadro do gabinete do Juiz João Damasceno, e um pedido formal de desculpas por parte do mesmo.

E o deputado estadual Flávio Bolsonaro postou em seu perfil no facebook, um modelo de ação judicial para que todos os policiais possam representar contra este covarde que se esconde por de tras de uma tóga. Juiz vagabundo safado (sic) ”.

Flávio Bolsonaro, agora senador pelo PSL/RJ, é o filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro, ambos defensores das milícias.

Até novembro de 2018, o gabinete do ex-deputado estadual Flávio Bolsonaro empregou a mãe e a mulher do capitão Adriano Magalhães da Nóbrega , tido pelo Ministério Público do Rio como o homem forte do Escritório do Crime , milícia suspeita do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes.

Além de empregar as familiares de Adriano, Flávio Bolsonaro por duas vezes homenageou o atual chefe do Escritório do Crime.

Acusado há mais de uma década por envolvimento em homicídios, o miliciano foi alvo de um mandado de prisão, mas não foi localizado pela polícia; encontra-se foragido

”Em relação às ameaças a mim, até hoje a Polícia nada apurou”, afirma Damasceno ao Viomundo.

” O pior é a constatar a intercessão das milícias com os três poderes ou destes com as milícias”, arremata.

***

O perigo das milícias

por João Batista Damasceno, em O Dia

Milícias são grupos atuantes à margem da lei, mas não do Estado. São agentes públicos ou particulares a estes vinculados no exercício de suas próprias razões e em atendimento aos próprios interesses.

Potentados locais, no Brasil Colônia, Império e República Velha – senhores de engenho e cafeicultores – tinham as suas milícias. O regente Feijó recenseou as milícias, deu-lhes organização e as chamou de ‘Guarda Nacional’. De acordo com o número de comandados o potentado rural era nomeado de tenente a coronel.

As atuais milícias remontam ao primeiro grupo de homens autorizados a matar, formado em 1958. Em maio de 1957, Juscelino Kubitschek nomeou Amauri Kruel para chefe do Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP), órgão que antecedeu o Departamento de Polícia Federal (DPF).

No ano seguinte Kruel viajou a Washington, em companhia do coronel Danilo Nunes, chefe do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), entrevistando-se com o presidente estadunidense Dwight Eisenhower.

Um chefe de departamento de polícia no Brasil foi recebido pelo presidente dos Estados Unidos. Na volta, Kruel promoveu campanhas contra a criminalidade e montou um grupo de homens autorizados a matar. Este grupo, com alguns acréscimos, foi condecorado por Carlos Lacerda como ‘Os 11 homens de ouro da polícia’.

Em 1959, após uma discussão com o deputado federal udenista Meneses Cortes, membro da CPI instituída para apurar atos de extorsão, execuções e corrupção no DFSP, Kruel agrediu fisicamente o parlamentar e por isto foi exonerado.

Hoje seria homenageado por parlamentares que apoiam a truculência e a extorsão. Marielle Franco e Marcelo Freixo não foram os primeiros parlamentares a enfrentar milícias.

Com o golpe empresarial-militar de 1964 sucederam-se outros grupos paramilitares visando à perseguição aos inimigos do regime: comunistas, humanistas, nacionalistas e líderes populares. Tais grupos passaram a ser chamados de “Esquadrões da morte”.

Com a redemocratização e descentralização política, os ‘matadores’ se constituíram como líderes políticos locais. Muitos se elegeram para cargos públicos ou ocuparam cargos de livre nomeação. Os ‘Esquadrões da morte’ passaram a ser chamados de ‘Mão branca’, depois ‘Grupos de extermínio’ e, agora, ‘Milícias’.

Com as peculiaridades de cada local e de cada tipo de atividade desenvolvida, esses grupos têm em comum o fato de serem aliados ou pertencentes aos quadros do Estado, atuarem com violência ilegítima e enriquecerem com extorsões ou negócios ilícitos. Suas presenças em todos os poderes são danosas às instituições.

Em 2013, por haver pendurado um quadro do cartunista Carlos Latuff em minha sala de audiências, pude vivenciar a extensão dos tentáculos de tais grupos no seio dos três poderes do Estado.

A atuação de tais grupos contra defensores de Direitos Humanos, da democracia e da justiça social leva à preocupação com segurança, que todo defensor da dignidade da pessoa humana deve passar a ter. A ampliação do poder e dos seus campos de atuação propicia riscos pessoais, mas também à própria democracia.

Destaque: “Por uma cultura de paz”, de Carlos Latuff, agosto de 2013

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