Em Brumadinho como em Mariana… A “irresponsabilidade organizada”. Por Henri Acselrad

Na Folha

Mais uma vez lama, destruição, morte, desamparo e desolação.

Ante o desastre em Brumadinho – MG, algumas falas governamentais inicialmente divulgadas pela mídia evocam a necessidade de orações. Outras declaram perplexidade ante fatos há muito e por muitos prenunciados – desde associações de peritos criminais até inúmeros grupos de pesquisa de Universidade públicas. Outros, ainda, dizem nada poder fazer, por tratar-se, no caso, de evento de responsabilidade de uma empresa privada: “o governo federal não tem nada a ver com isso”.

Ora, o bem público é, por definição, reponsabilidade do Estado e o tal do “meio ambiente” é o mais claro exemplo de um bem estritamente público. Pois se não for o Estado a cuidar de nossos rios e matas, da qualidade do ar de nossas bacias aéreas e da qualidade das águas fornecidas por nossos sistemas de abastecimento, quem o fará? É para cuidar desses bens – dos quais depende fundamentalmente a vida da nossa população – que foram criadas leis e instituições ambientais. Estas instituições não foram feitas para arrecadar recursos, mas para fiscalizar e regular as atividades que podem causar danos à vida e à saúde do povo. E mais: como essas atividades são muitas – é o caso das barragens de resíduos de mineração, por exemplo – essas normas, leis e instituições, no interesse da população, precisam ser não só cuidadas, mas fortalecidas. Para cumprir seu papel, tais organismos da máquina pública requerem conhecimento e, sobretudo, autonomia de decisão ante os poderosíssimos interesses que buscam, sobre eles, exercer sua forte pressão; interesses que, no fundo, prefeririam talvez que estes órgãos nem existissem.

Desde sua criação nos anos 1980 até o presente, as agências ambientais do Estado brasileiro – em níveis estadual ou federal – vêm sendo objeto de uma gradual desmontagem. A opção de seguidos governos pela manutenção do modelo de desenvolvimento neoextrativista, que se instalou no país a partir dos anos 1990, foi acompanhada por esforços permanentes no sentido de flexibilizar a aplicação das leis e das normas inicialmente instituídas. Tratou-se, desde então, de facilitar a instalação no país, a qualquer custo, de empreendimentos intensivos em recursos naturais, isto é, aqueles que exploram para além dos limites os nossos bens comuns. Entre os fatores de competitividade das nossas exportações de commodities, sempre estiveram incluídos componentes que não são contabilizados nos preços, tais como a fertilidade de nossos solos, a pureza de nossas águas, entre outros. A “vantagem competitiva” para alguns, repousa, em grande parte, no repasse, sem pagamento, de partes do nosso patrimônio natural comum que viajam embutidas nas mercadorias exportadas. Mas, devemos somar a isto, também, o afrouxamento das condições de segurança de empreendimentos e a mudança do traçado de áreas de preservação, medidas que foram sendo adotadas com o fim de atrair investimentos internacionais que preferem instalar-se em países com fraco controle ambiental. Alguns economistas chamam a isto de “competitividade espúria” – aquela baseada na predação do patrimônio natural e social dos países exportadores (em lugar de uma competividade baseada em investimentos em educação e na criatividade de nossos cientistas). “Irresponsabilidade organizada” é, por sua vez, o nome que o sociólogo Ulrich Beck deu a essa submissão sistemática dos poderes públicos a interesses privados fortemente dependentes de tecnologias perigosas e intensivas em espaços e recursos naturais. Em nosso caso, espaços e recursos que alguns representantes dos grandes interesses do agronegócio e da mineração desejam subtrair de áreas protegidas – terras indígenas, quilombolas ou de unidades de conservação.

Outro fator de atratividade oferecido aos portadores de investimentos intensivos em energia e recursos naturais, como a mineração, é a não-proteção das populações que trabalham ou vivem em áreas expostas aos riscos associados às minas, fábricas, ou unidades de produção. No desastre da Samarco, em 2015, como no da Vale, agora, em Brumadinho, podemos verificar como a desproteção de rios e matas é, ao mesmo tempo, desproteção da população, notadamente de grupos sociais e étnico-raciais vulnerabilizados – vítimas preferenciais do descaso que provoca tais desastres. No caso da mina do córrego Feijão, a desproteção ambiental mostra-se fortemente associada à desproteção das condições ocupacionais dos trabalhadores, cuja fiscalização era da responsabilidade de instâncias do Ministério do Trabalho, hoje extinto.

É sabido que a desproteção da população aumentou à medida que investimentos em manutenção de equipamentos e instalações foram diminuindo e escolhas técnicas menos seguras foram sendo adotadas, de modo a compensar as quedas nos preços dos minérios. Vemos também que as economias empresariais com gastos de manutenção e a preferência por escolhas técnicas que aumentam a exposição da população a riscos de desastres são correntemente validadas pelos mecanismos do que os críticos chamam de “indústria do licenciamento”. A desconsideração do conteúdo de pareceres independentes e das sinalizações provenientes de lançadores de alerta atentos aos riscos, fazem parte deste processo de “organização da irresponsabilidade”. As atuais propostas de substituição do licenciamento público por autodeclarações empresariais são a linha de frente mais agressiva desse processo. O Projeto de Lei 3729/04,a chamada “LeiGeral do Licenciamento Ambiental”, veio sendo objeto de inúmeras inserções de bancadas empresariais interessadas em acelerar a recuperação dos investimentos em detrimento do respeito à saúde, à vida da população e à integridade do ambiente.

A questão do meio ambiente é por excelência de ordem política. Ela diz respeito à capacidade do Estado controlar as forças que pretendem impor usos privados indevidos aos espaços por todos compartilhados das águas, da atmosfera e dos sistemas vivos. A estas ações governamentais, adotadas com o fim de prevenir riscos decorrentes de grandes empreendimentos degradantes e poluentes, costumamos chamar de políticas públicas de meio ambiente. Nós a chamamos de públicas porque elas visam prevenir a privatização de fato de tais espaços, cuja integridade é vital a todos os cidadãos que os compartilham.  

A ruptura da barragem da mina Córrego do Feijão, da empresa Vale, foi um desastre político e não simplesmente técnico. Ele coloca em discussão toda a estrutura de regulação dos grandes empreendimentos. O que ruiu não foi somente a barragem, mas a fragilidade do processo de licenciamento. O que se revela, de forma calamitosa, é a indisposição do Estado controlar grandes empresas. Ao se colocar, direta ou indiretamente, os processos de decisão nas mãos das próprias empresas, regidas como elas são pela lógica da rentabilidade privada e da remuneração de seus acionistas, libera-se as corporações para que ela adotem economias temerárias de custos de manutenção ou opções técnicas que forçam, além da conta, a capacidade das barragens segurarem os rejeitos. A concepção que vigora nos espaços de poder é de, em nome de “desburocratizar” e “agilizar”, liberar os negócios privados para que usufruam dos bens ambientais públicos do modo que melhor lhes convenha. É possível identificar, ademais, a adoção de esforços destinados a neutralizar o debate público e reduzir a disposição da opinião pública a ouvir os alertas daqueles que, levantando questões do ponto de vista do interesse geral da população, procuram acompanhar os processos decisórios e legislativos, cobrando informações e precaução aos responsáveis pelos empreendimentos. Ora, desde o desastre da Samarco, fomos bombardeados por uma campanha publicitária milionária da empresa envolvida naquele e no presente desastre. A população é submetida a campanhas de marketing que só podem ter por fim reduzir a capacidade da sociedade discutir criticamente os problemas associados à cadeia da mineração. Mais perturbador é o tamanho de um tal investimento – destinado a manter o chamado “capital reputacional” ou a “imagem” da empresa – quando o comparamos ao abandono a que foram relegadas as vítimas do descaso empresarial e governamental que vivem ao longo do Rio Doce.

Passados alguns dias, ante a repercussão e o tamanho do sofrimento imposto às centenas de vítimas, governantes mencionam dimensões políticas e legais. Procura-se ressignificar a promessa de campanha de flexibilizar os processos de licenciamento – “flexibilizar quer dizer respeitar regras rígidas”, dizem. Em seu uso corrente, flexibilizar costuma designar o uso de expedientes que permitam não aplicar normas, alegando-se razões de ordem superior, em geral de ordem econômica, relativa ao desenvolvimento dos negócios. Quando há a pretensão de se aplicar regras rígidas, a regra principal é a de “não flexibilizar”. Rebaixar o nível de risco da barragem da mina córrego do Feijão é um exemplo claro da prática de flexibilização das normas ambientais. “Decisão abominável que beira a insanidade” – foi a expressão da representante da sociedade civil na reunião da Câmara Técnica de Atividades Minerárias do Conselho de Políticas Ambientais do estado de Minas Gerais em 11 de dezembro último quando sua posição, contrária à flexibilização/agilização excepcional do licenciamento, foi derrotada por 8 a 1.

Ao contrário do que se ouviu dizer, há, sim, muito o que fazer. Mas entende-se também que é grande o ceticismo quando um governo subordina suas políticas ambientais e de saúde ocupacional às prioridades do agronegócio e da mineração. Isso já veio acontecendo ao longo de governos passados, tendo apenas se agravado após o impeachment de 2016; mas nunca antes um discurso anti-ambientalista explicito foi adotado por agentes governamentais. Este último episódio dá fortes elementos de razão à tese de que práticas empresariais irresponsáveis, efetuadas com a complacência do Estado, serão tão mais frequentes e repetidas quanto as populações atingidas são de baixa renda, trabalhadoras e pertencentes a grupos étnico-raciais pouco representados na esfera decisória. O que nos cabe esperar é que, enquanto houver espaço para o debate democrático de ideias, uma discussão crítica do modelo de desenvolvimento neoextrativista e o respeito aos alertas dos defensores de direitos socioambientais nos permitam alcançar a punição das empresas responsáveis e uma justa e eficaz prevenção das práticas até aqui correntes  de condescendência do Estado para com a irresponsabilidade social corporativa.

Henri Acselrad é Professor Titular do IPPUR/UFRJ.

Bento Rodrigues, Mariana. Foto: Lorena Dini, 2015. Reprodução Facebook

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