O mal-ajambrado Código Moro. Por Patrick Mariano

Na Cult

No mesmo dia em que veio a tona um possível texto da “reforma” da previdência, o ex-juiz Sergio Moro apresentou para alguns governadores um documento que intitulou Projeto de Lei Anticrime. No ambiente virtual, notícias como “65 anos como idade mínima e 25 anos de contribuição” se misturavam a outras como “legítima defesa para policiais” e endurecimento das penas, entre outros termos relativos.

No artigo “A farsa da pátria armada”Marcelo Semer foi certeiro quando pinçou parte da entrevista de Moro dada ao canal GloboNews em que ele expõe a finalidade da pena e da punição no neoliberalismo. Disse lá o ministro que “aprovar medidas com apoio popular (como leis penais) mobiliza capital político que pode ser usado para reformas vistas como menos populares, como a reforma da Previdência”. Por evidente, não é obra do acaso o fato dos dois documentos virem a público no mesmo dia.

O mal-ajambrado Projeto de Lei Anticrime não é nem projeto de lei, nem mesmo anticrime, mas sim um documento que não apresenta justificativa para cada uma das alterações pretendidas, furtando do público os motivos das mudanças ou mesmo os eventuais estudos realizados e seus possíveis impactos. O documento não fornece, também, nenhuma comparação da alteração pretendida com a legislação atual, inexistem quadros comparativos para que o cidadão comum e aqueles que querem entender as mudanças possam ver o que se pretende.

A ausência de um mínimo de preocupação técnica científica e apreço quanto à forma do documento, apresentando por ninguém menos que o ministro de Estado da Justiça, revela a sua transferência para o plano do fetiche normativista e do populismo penal mais barato. O desprezo de Moro quanto à técnica se revelou, também, na própria entrevista quando disse que buscava fazer a lei “para produzir efeitos práticos e não para agradar professores de direito penal”. A postura contradiz com a versão de antes da posse, quando afirmava que sua aceitação para a função se deu em razão de ser um “cargo técnico”.

Das muitas mudanças desnecessárias propostas pelo documento, chama atenção a estranha criação da legítima defesa para policiais. Primeiro porque hoje qualquer pessoa que pratique um ato em legítima defesa sua ou de terceiro não será punido pelo crime (Art. 25 do CP).

A medida parece ser um delivery a pedido da bancada da bala do Congresso Nacional, pois além de desnecessária, tornará muito mais difícil a responsabilização de agentes públicos que cometem crimes. Basta recordar que apenas no ano de 2017, 5.012 pessoas foram mortas por policiais no Brasil – 790 a mais que em 2016. A polícia brasileira está entre as mais letais do mundo e as vítimas são em sua ampla maioria jovens pobres e negros.

Outra parte do documento é relativa à chamada prisão em segunda instância. Mero engodo e perfumaria. Moro finge desconhecer que o STF julgará duas ações de constitucionalidade sobre este tema em abril que definirão o enquadramento jurídico a ser adotado nesses casos. Ou seja, as medidas propostas por Moro no documento são inócuas neste ponto. Outro estelionato neste debate, e que o documento reforça, é que jamais esteve proibida a prisão em segunda instância, desde que justificada e fundamentada suas razões.

Outro ponto que torna o “pacote de Moro” puro engodo: o documento desconsidera por completo que o Congresso Nacional há anos tem debatido e votado dois novos códigos de processo e direito penal, sendo que todas as medidas quando – e se – forem levadas ao Parlamento fatalmente serão anexadas a esses documentos. Parece que aqui há uma demonstração inequívoca de um desejo implícito de legislar autoritariamente, desejo esse já manifestado por integrantes da Operação Lava-Jato e pelo próprio Moro quando do exercício da magistratura.

O texto não diz como o Poder Executivo absorverá no sistema carcerário, caso implementadas, essas medidas. Moro parece querer legislar em um mundo imaginário e não em um país cujas taxas de encarceramento são as maiores do mundo. Ou seja, a premissa do documento, baseada em uma suposta sensação de impunidade e falta de endurecimento penal é uma falácia irresponsável.

De acordo com estudo da Associação Latino-Americana de Direito Penal e Criminologia (Alpec), o Código Penal brasileiro apresenta atualmente 1.688 hipóteses de crime. O estudo aponta ainda que, entre 1940 (data da edição do Código Penal) e 1985 (fim da ditadura militar), foram editadas 91 leis com conteúdo penal, ou seja, uma média de 2.07 leis penais ao ano. Já no período de março de 1985 a dezembro de 2011 foram editadas 111 novas leis penais com conteúdo penal, o que resulta numa média de 4,27 leis penais ao ano. Ou seja, o Brasil, após a democratização, criminalizou mais que o dobro em praticamente metade do tempo, em comparação com o período da ditadura militar.

Como se pode ver, as justificativas para o “Código Moro” não acompanham o documento. Estão soltas por aí como em uma nuvem virtual que aglutina entrevistas, falas soltas e momentos em que o media training falha. Antes, na chamada República de Curitiba, Moro agia como um mimado jogador de futebol que falava apenas quando lhe convinha. Agora, mesmo com toda a blindagem da grande mídia, tem que se expor mais e, ao fazê-lo, termina por deixar rastros.

Como numa daquelas ações que vez ou outra são expostas pelas câmeras em grandes centros, Moro agiu como aquele que dá o empurrão e desvia a atenção da vítima, enquanto a receita ultraliberal de Paulo Guedes tranquilamente assalta a carteira de milhões de brasileiros com a sua reforma da previdência.

PATRICK MARIANO é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP

Sérgio Moro e Paulo Guedes. Foto: Wilton Júnior /Estadão Conteúdo

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