2019: Sorria, o Big Brother ainda está de olho em você!

O totalitarismo vai muito além de governos autoritários, inclusive pode existir em democracias. Sorria, o Grande Irmão está de olho em você!

Por Eduardo Migowski, em Voyager

– Alô, é da pizzaria Gordon?
– Não, senhor, é da pizzaria Google. 
– Desculpe, devo ter ligado para o número errado.
– Não o número está correto, o Google comprou a pizzaria. 
– Ah, entendi. Pode anotar o meu pedido?
– Claro, o senhor quer a pizza de sempre?
– Como assim, você já trabalhava aí, me conhece?
– É que de acordo com nossos sistemas, nas últimas 12 vezes o senhor pediu pizza de salame com queijo, massa grossa e bordas recheadas.
– Isso, pode fazer essa mesma.
– No lugar dessa posso tomar a liberdade de sugerir uma de massa fina, farinha integral, de ricota e rúcula com tomate seco? 
– Não, eu odeio vegetais!
– Mas o seu colesterol está muito alto.
– Quem te disse isso? Como você sabe?
– Nós acompanhamos os exames laboratoriais de nossos clientes e temos todos os seus resultados dos últimos 7 anos. 
– Entendi, mas quero a pizza de sempre, eu tomo remédios para controlar o colesterol.
– O senhor não está tomando regularmente, porque nos últimos 4 meses só comprou uma caixa com 30 comprimidos, na farmácia do seu bairro. 
– Comprei mais em outra farmácia.
– No seu cartão de crédito não aparece. 
– Eu paguei em dinheiro.
– Mas de acordo com seu extrato bancário o senhor não fez saque no caixa automático nesse período. 
– Eu tenho outra fonte de renda.
– Isso não está constando na sua Declaração de Imposto de Renda, a menos que seja uma fonte pagadora não declarada. 
– Mas que inferno! Estou cansado de ter minha vida vigiada e vasculhada pelo Google, Facebook, Twitter, WhatsApp, essas porcarias todas! Vou mudar para uma ilha sem internet e sem telefone celular, onde ninguém possa me espionar.
– A decisão é sua, senhor, mas quero lhe avisar que seu passaporte venceu há 5 semanas…

Autor: Desconhecido
Fonte: WhatsApp

A década de 1940 foi varrida pelo poder destruidor das armas da era industrial. E, com o anuncio da era nuclear, pela primeira vez estava claro que a destruição da humanidade era uma possibilidade tangível. É nesses anos que o escritor inglês, George Orwell, publica um dos maiores clássicos da literatura mundial: 1984. Livro que, quase 80 anos depois, continua sendo lido, interpretado, debatido, questionado e detestado.

A pergunta é: por que uma distopia sobre um futuro que já ficou no passado, há mais de 30 anos, continua suscitando tanta discussão? Quando a obra foi publicada, a resposta era simples: o nazismo foi derrotado, mas o totalitarismo não. 1984, portanto, era um alerta sobre os perigos que rondavam e ameaçavam as democracias, que, em tese, haviam derrotado o fascismo. 

E agora? A história não mostrou que a década que a distopia previa como triunfo do totalitarismo marcaria, na verdade, a ruína do comunismo? O que teria de atual num livro que alerta sobre os riscos de uma ameaça superada? Em 1947, 1984 era o futuro próximo. Em 2019, é um passado que, curiosamente, teima em não passar. Por quê?

Os livros de história nos confortam ao lembrar que a Guerra Fria foi superada com o triunfo da liberdade. Alguns dizem até que a história havia acabado ainda no século passado. O alerta de Orwell, porém, ainda não virou assunto apenas para os historiadores. Haveria com o que se preocupar? Talvez tudo isso seja apenas paranoia extemporânea. Ou não? 

Enquanto houver democracia, haverá liberdade. Melhor aproveitar então. Já é tarde, hora de fechar o livro, colocar uma roupa nova e sair para espairecer. Afinal, somos livres para ir e vir e para escolher a maneira que desejamos viver. Anime-se. Esse pensamento é sem dúvida reconfortante. O único problema é que quando você entrar no elevador a plaquinha “sorria você está sendo filmado” irá lembrá-lo que o Big Brother ainda está de olho em você.

O que é totalitarismo? 

A ambiguidade de 1984 está na forma como a obra é lida. E, no centro dessas interpretações que levam a conclusões opostas, está no modo como definimos a noção de totalitarismo. É o modo como entendemos o que seria essa ameaça de um poder total que poderá fazer da ficção tanto uma lembrança de um passado remoto quanto uma profética alegoria do presente. 

Antes de entendermos o que é totalitarismo é preciso esclarecer o que ele não é. Em primeiro lugar, totalitarismo não é uma ideologia e não iguala o comunismo ao fascismo. Totalitarismo é um método político, uma forma de organizar o Estado e exercer o poder de acordo com uma ideologia.

Portanto, a rigor, qualquer ideologia pode ser imposta de forma totalitária. O Estado Islâmico, por exemplo, que segue o wahhabismo, de matriz islâmica, possui muitas semelhanças com as experiências históricas que foram definidas como totalitárias. Esse ponto é importante porque ele tem causado muita confusão, muitas vezes proposital.

Quando os teóricos do totalitarismo comparam o stalinismo ao nazismo, eles estão olhando apenas para a práxis política, não estão comparando ideologias. Segundo a Hannah Arendt, inclusive, a Itália da Mussolini sequer pode ser chamada de totalitária, mesmo sendo o país que inventou o fascismo. 

Em segundo lugar, totalitarismo não é sinônimo de ditadura. É verdade que todo regime totalitário é autoritário, mas o inverso não é verdadeiro.

Ditadores como Pinochet, Videla ou Médici eram, sem dúvida, homens cruéis. Os casos de tortura e desaparecimento no Chile, na Argentina e no Brasil são chocantes. Mas eles não eram totalitários, tampouco fascistas.

Grosso modo, um governo autoritário é aquele que controla os três poderes. Os militares eram autoritários porque deram um golpe e ocuparam o Executivo. O Congresso continuou funcionando, porém, ele poderia ser fechado por uma ordem do presidente. E os famosos Atos Institucionais proporcionavam poderes especiais ao governo e retiravam do cidadão seus direitos mais básicos. Esse é um exemplo típico de um Estado autoritário.
A vida regrada dentro de um dispositivo autoritário foi descrita de modo brilhante pelo compositor baiano Raul Seixas, na canção Metrô Linha 743, vale à pena reproduzir a letra na íntegra:

Ele ia andando pela rua meio apressado
Ele sabia que tava sendo vigiado
Cheguei para ele e disse: Ei amigo, você pode me ceder um cigarro?
Ele disse: Eu dou, mas vá fumar lá do outro lado
Dois homens fumando juntos pode ser muito arriscado!
Disse: O prato mais caro do melhor banquete é
O que se come cabeça de gente que pensa
E os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam
Porque quem pensa, pensa melhor parado
Desculpe minha pressa, fingindo atrasado
Trabalho em cartório mas sou escritor
Perdi minha pena nem sei qual foi o mês
Metrô linha 743
O homem apressado me deixou e saiu voando
Aí eu me encostei num poste e fiquei fumando
Três outros chegaram com pistolas na mão
Um gritou: Mão na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos córneos
Eu disse: Claro, pois não, mas o que é que eu fiz?
Se é documento eu tenho aqui
Outro disse: Não interessa, pouco importa, fique aí
Eu quero é saber o que você estava pensando
Eu avalio o preço me baseando no nível mental
Que você anda por aí usando
E aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custando
Minha cabeça caída, solta no chão
Eu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vez
Metrô linha 743
Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinha
E eu era agora um cérebro, um cérebro vivo à vinagrete
Meu cérebro logo pensou: que seja, mas nunca fui tiete
Fui posto à mesa com mais dois
E eram três pratos raros, e foi o maitre que pôs
Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado
Meu último pedaço, antes de ser engolido ainda pensou grilado
Quem será este desgraçado dono desta zorra toda?
Já tá tudo armado, o jogo dos caçadores canibais
Mas o negócio aqui tá muito bandeira
Dá bandeira demais meu Deus
Cuidado brother, cuidado sábio senhor
É um conselho sério pra vocês
Eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mês
Ah! Metrô linha 743

https://youtu.be/6Mv2k5D_67Y

Essa é basicamente a conduta esperada dentro de um estado autocrático. O indivíduo deve cuidar da sua vida, não se envolver com os assuntos públicos e evitar certos comportamentos suspeitos. A imagem dos homens em movimento, “fingindo apressados”, atrás de algum compromisso incerto, circulando sem destino, presos às suas individualidades e sem tempo para refletir sobre o mundo que o cerca, representa a vida cotidiana no interior de um regime autoritário. O sambista Paulinho da Viola também descreveu com maestria esse tipo de comportamento, na música Sinal Fechado, que simula um encontro fortuito de dois velhos amigos que estão presos esperando o sinal verde. A canção é uma metáfora do contexto político pós AI5:

Olá, como vai
Eu vou indo e você, tudo bem?
Tudo bem, eu vou indo, correndo
Pegar meu lugar no futuro, e você?
Tudo bem, eu vou indo em busca
De um sono tranqüilo, quem sabe?
Quanto tempo…
Pois é, quanto tempo…
Me perdoe a pressa
É a alma dos nossos negócios…
Qual, não tem de que
Eu também só ando a cem
Quando é que você telefona?
Precisamos nos ver por aí
Pra semana, prometo, talvez
Nos vejamos, quem sabe?
Quanto tempo…
Pois é, quanto tempo…
Tanto coisa que eu tinha a dizer
Mas eu sumi na poeira das ruas
Eu também tenho algo a dizer
Mas me foge a lembrança
Por favor, telefone, eu preciso
Beber alguma coisa rapidamente
Pra semana…
O sinal…
Eu procuro você…
Vai abrir! Vai abrir!
Eu prometo, não esqueço, não esqueço
Por favor, não esqueça
Adeus… Adeus…

https://youtu.be/icssDgVDNxs

Na ditadura clássica, portanto, indivíduo é isolado, atomizado e, preso dentro da sua própria subjetividade. Ele é afastado dos assuntos públicos. As organizações coletivas são banidas. Mesmo se ele quiser fumar, na hipérbole construída por Raul Seixas, é preciso ter cautela e evitar qualquer forma de aglomeração. Só assim ele não será confundido com os “homens que pensem”, tipo caçado e devorado pelos “canibais de cabeça”, que, segundo a letra, avaliam o risco de cada um medindo o nível mental que os homens estão usando. Chico Buarque sintetizou de forma magistral quais são os fantasmas que assombram a mente dos ditadores:

O que será, que será?
Que andam suspirando pelas alcovas
Que andam sussurrando em versos e trovas
Que andam combinando no breu das tocas
Que anda nas cabeças anda nas bocas
Que andam acendendo velas nos becos
Que estão falando alto pelos botecos
E gritam nos mercados que com certeza
Está na natureza
Será, que será?
O que não tem certeza nem nunca terá
O que não tem conserto nem nunca terá
O que não tem tamanho…
O que será, que será?
Que vive nas idéias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia a dia das meretrizes
No plano dos bandidos dos desvalidos
Em todos os sentidos…
Será, que será?
O que não tem decência nem nunca terá
O que não tem censura nem nunca terá
O que não faz sentido…
O que será, que será?
Que todos os avisos não vão evitar
Por que todos os risos vão desafiar
Por que todos os sinos irão repicar
Por que todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar
E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá
Olhando aquele inferno vai abençoar
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo…

No regime totalitário a dinâmica é completamente diferente. Em primeiro lugar, o governo não se limita a controlar os poderes. O objetivo é destruir as instituições vigentes e ocupar todos os espaços do convívio social.

Revoluções jamais se confinam puramente à esfera política. Dali estende-se para todas as outras áreas da existência social humana. Economia, cultura, ciência, erudição e arte não ficam protegidas do impacto. (Joseph Goebbels, citado por Evans, pp 150, 2005).

Ao contrário das ditaduras, que alarga o espaço privado e encolhe a esfera pública, o totalitarismo dissolve essas fronteiras, a sociedade civil é absorvida pela política e o Estado passa a regrar a vida cotidiana dos cidadãos.

O ideal máximo de um dispositivo totalitário é controlar até o pensamento e as emoções das pessoas. Enquanto numa ditadura os indivíduos devem ser mantidos afastadas da política e dos assuntos públicos, no totalitarismo as massas são constantemente mobilizadas e devem demonstrar entusiasmo permanente pela ideologia oficial.

A era do individualismo enfim morreu, o indivíduo será substituído pela comunidade do povo(idem). 

O conceito de “comunidade do povo” nega qualquer forma de individualidade, conformando uma unidade quase mística, representada pela ideia de um mesmo “espírito” que seria compartilhado por todos os seus membros. Se na ditadura a conduta individual é orientada pela ideia de uma suposta “neutralidade” (ausência de pensamento crítico), no totalitarismo não há espaço para qualquer forma de “neutralidade”, mesmo ilusória. Quem comunga com o “espírito” do partido é aliado, o restante está fora da comunidade do povo e, portanto, será classificado como inimigo.

Na ditadura vivida por Raul Seixas, escritores censurados poderiam trabalhar em cartório, artistas mais ousados poderiam usar colírio ou óculos escuros para camuflar aquilo que não deveria ser visto. Já no totalitarismo enfrentado pelo pintor polonês Władysław Strzemiński, contudo, não haveria meio termo: ou seria o engajamento total ou, o que acabou acontecendo, a ruína moral, física e simbólica do artista.

Novamente é Joseph Goebbels quem nos explica essa racionalidade:

A arte não é um conceito absoluto, apenas ganha vida a partir da vida das pessoas. Portando, não há arte sem viés ideológico (idem). 

O totalitarismo estabelece um corte social e impõe uma hierarquia entre dois grupos. No topo, os membros da comunidade do povo precisam demonstrar entusiasmos e comprometimento com os valores do partido, caso contrário, podem ser classificados como inimigo interno. Na falta da poesia de um Chico Buarque, precisamos nos contentar mais uma vez com a fria, porém esclarecedora, explicação do próprio Goebbels:

A revolução que fizemos é total. Abrangeu cada um dos setores da vida pública e fundamentalmente reestruturou todos eles. Mudou e remodelou por completo a relação das pessoas entre si, com o Estado e com as questões da existência. Foi uma revolução vinda de baixo. Levada adiante porque ocasionou a transformação da nação alemã em um só povo. Tornar-se um só povo significa estabelecer uma unidade de espírito por toda a nação.

Alguns exemplos para demonstrar como essas ideias funcionaram na prática. No Terceiro Reich, as crianças aprendiam nas escolas a ouvir a conversa dos seus responsáveis e, caso algum membro da família demonstrasse pouca adesão aos ideais do Partido Nacional Socialista, deveriam contar para os professores. A vigilância foi levada para dentro dos lares. Essa cena também foi captada por George Orwell no livro 1984.

Havia manuais ensinando as mulheres e se comportarem como uma alemã autêntica. Nesse caso não seria uma etiqueta conservadora, a definir o arquétipo do que seria uma mulher de respeito, mas como elas deveriam agir para contribuir com o engrandecimento da nação. Os manuais diziam com quem elas deveriam casar e até o número de filhos que elas precisavam gerar.

Stalin, de forma muito parecida, passou a reprimir as práticas sexuais consideradas desviantes, pois não eram condizentes com a moral revolucionária (sodomia foi considerada crime, um homossexual poderia passar até cinco anos num gulag).

O aborto, que havia sido liberado pelos próprios bolcheviques na década anterior, passou a ser visto como ato egoísta da mulher, que não contribuía com os ideais revolucionários. Acabou proscrito em 1936. Ter ou não filhos não era uma decisão do casal, mas parte de um projeto nacional, em que ambos deveriam contribuir. Richar Overy nos explica o espaço reservado às mulheres da URSS stalinista: 

As mães eram apresentadas como modelos socialistas heroicos independentes e definia-se a maternidade como um dever socialista. Em 1944, criaram-se medalhas para as mulheres que haviam respondido ao chamado: a medalha para maternidade segunda classe para cinco filhos, primeira classe para seis, as medalhas de glória da maternidade em caso de sete, oito ou nove rebentos; para dez ou mais, as mães eram justamente nomeadas mães heroínas da União Soviética (Richard Overy, pp 268, 2009).

Outro exemplo revelador sobre o funcionamento de um regime com pretensões totais é a descrição, feita pelo historiador Richard Evans, da função política da saudação nazista. Na Alemanha da década de 1930, o famoso comprimento com a mão estendido, acompanhado da frase Heil Hitler, tornou-se onipresente. Praticamente todos os alemães – carteiros, funcionários públicos, crianças, professores etc – repetiam de forma exaustiva esse gesto. Ele era utilizado para delimitar a fronteira entre os membros da comunidade do povo e os inimigos sociais, que eram proibidos de fazer a saudação.

Além de ser parte da nova identidade nacional que estava sendo definida, como destacou Richard Evans, o ritual continha também uma ameaça velada: “era também um gesto franco e quase ameaçador para a pessoa a quem era dirigido, um lembrete ou alerta implícito de que era preciso anuir retribuindo a saudação (Evans, pp 136, 2018). 

A etiqueta tornava a ideologia nacional socialista onipresente dentro da sociedade. A frieza do Heil Hitler impunha distanciamento entre as pessoas, que não mais se tocavam como no tradicional aperto de mãos, cortando os laços de intimidade e unindo os indivíduos apenas pela lealdade e pela obediência que todos demonstravam ao Führer. As implicações das normas comportamentais são profundas e não podem ser desprezadas: 

Quando feitas em público, a saudação alemã militarizava os encontros humanos; identificava os indivíduos com um carimbo, o de membro de uma sociedade mobilizada para a guerra sob a liderança nazista; com efeito, reduzia a noção que as pessoas tinham da própria individualidade, e assim solapava a sua capacidade de assumir a própria responsabilidade moral por suas ações, colocando a responsabilidade nas mãos de Hitler.

Os exemplos acima dão uma boa ideia do funcionamento e dos objetivos das experiências totalitárias. Mas há também interpretações mais elaboradas. A da filósofa Hannah Arendt é sem dúvida a mais complexa e instigante delas. Para a pensadora judia, o objetivo central dos regimes totalitários é a transformação da natureza humana.

Por isso, ao contrário do autoritarismo, o totalitarismo não anula a capacidade política do indivíduo, mas destrói e modifica os grupos e as instituições que constituem a vida privada do sujeito. Assim, ele se torna estranho ao seu próprio mundo, o que permitira a reconfiguração da sua subjetividade, sintetizada na ideia de um novo homem. 

No âmbito ideológico, os regimes totalitários constroem uma narrativa ilusória e coerente do presente, do passado e do futuro, independente de qualquer verificação factual e sem espaço para contestações. Tal narrativa pretende explicar de modo absoluto o curso da história, ou seja, de onde viemos, onde estamos e para onde vamos. O Terror aparece como a maneira de adaptar a realidade ao discurso.

Os regimes totalitários precisam a todo o momento construir inimigos, pois são eles que separam o presente (sempre imperfeito) da concretização da ideologia que se pretende perfeita. Sem inimigos, os sabotadores, não haveria como explicar o descompasso entre ideologia e realidade.

O ápice da utopia do governo total, portanto, não é a vigilância dos corpos, mas a produção de uma nova subjetividade. Desse modo, o próprio indivíduo passaria a desejar para si os mecanismos que o controlam. Por isso que o filósofo Michel Foucault alertou que o combate ao fascismo é ao mesmo tempo político e ético, coletivo e individual: “não somente o fascismo histórico de Hitler e Mussolini — que soube tão bem mobilizar e utilizar o desejo das massas , mas também o fascismo que está em todos nós, que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz gostar do poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e explora”. 

O conselho do filósofo é: nunca se apaixone pelo poder. 

O olho do poder e o nascimento da biopolítica

Recentemente o conceito de totalitarismo ressurgiu . Alguns historiadores, concordando com as críticas que foram feitas ao longo das décadas, estão propondo um reexame dessa categoria analítica. Um dos principais trabalhados recentes que tenta reavaliar a noção de totalitarismo é o livro “Cortina de Ferro”, da historiadora Anne Applebaum:

Muito embora a própria ideia de controle total possa parecer ridícula, absurda, exagerada e fútil, e ainda que a palavra em si tenha perdido a capacidade de impacto, é importante lembrar que totalitarismo é mais que um insulto mal definido. Historicamente houve regimes que aspiraram o controle total.

Para que os compreendamos – e para compreendermos a história do século XX – precismos entender como o totalitarismo operava, tanto na teoria quanto na prática. A noção de controle total tampouco está obsoleta. O regime Norte Coreano, erigido nos moldes stalinistas, mudou pouco nos último setenta anos. Por mais que hoje em dia novas tecnologias pareçam tornar os princípios de controle total mais difíceis de almejar, quanto mais de realizar, não podermos estar certos de que celulares, internet e imagens de satélites, não se tornarão instrumentos de controle nas mãos de regimes que também aspirem a abranger “tudo dentro do Estado”. O Totalitarismo é ainda uma qualificação útil e necessária. Já faz bastante tempo que requer um reexame. (Cortina de Ferro, Anee Appleubaum)

A historiadora reconhece que houve exageros no uso do termo, porém, afirma que tais divergências devem ser usadas para reexaminarmos o totalitarismo, não para descartá-lo. Para Applebaum, alguns Estados tiveram a pretensão de ser totais e isso já faria deles diferentes dos demais e, portanto, precisariam de um conceito capaz de diferenciá-los.

O linguista Búlgaro, Tzvetan Todorov, ressalta que só é possível entender de forma satisfatória o nível de brutalidade verificado na Alemanha nazista e na URSS stalinista se usarmos a categoria de campo totalitário:

A resposta a essa questão (o terror dos campos de concentração) para mim é um ponto de partida, e não de chegada: é seu caráter totalitário. De fato, esse é o único traço em comum que tiveram a Alemanha e a União Soviética, a Bulgária e a China (Todorov, pp 185, 2013). 

A proposta teórica da Anne Applebaum, do totalitarismo como busca do controle absoluto e não necessariamente como uma realidade fática, é muito interessante. Porém, ao contrário do que a historiadora imagina, essa visão não serve para atualizar a definição de totalitarismo, mas para a superação do conceito. Explico. Apesar da erudição e do brilhantismo de autores do quilate de uma Hannah Arendt e de um Tzvetan Todorov, todos os teóricos do totalitarismo caíram no mesmo erro. A saber, o foco excessivo no aparelho estatal como única fonte de controle.

A afirmação de Anne Applebaum, de que as novas tecnologias podem ser usadas como forma de controle, reacendendo as utopias totalitárias, é verdadeira. Esse é justamente o espírito da ideia do Big Brother. Porém, é preciso lembrar que tais mecanismos agem de forma independente de um comando centralizado. O que a historiadora não percebeu é que as novas tecnologias já estão normatizando e controlando a vida das pessoas há algum tempo e elas são mais eficientes justamente nos países ditos democráticos.

Na distopia de Orwell, o mundo do pós-apocalipse nuclear teria dois bilhões de pessoas vigiadas por um governo totalitário. Numa coincidência assustadora, esse é o número atual de usuários do Facebook. A diferença é que os olhos do Big Brother não alcançavam os pensamentos individuais, os mesmos que hoje são captados pelos algoritmos virtuais. 

Michel Foucault apresentou o “panóptico” como metáfora das sociedades contemporâneas. O panóptico foi um modelo penitenciário do século XVIII projetado para exercer uma vigilância ininterrupta dos detentos. Para tanto, a arquitetura do prédio seria circular e no centro estaria uma torre com um vigia que poderia inspecionar as celas, mas que não seria avistado pelos prisioneiros. A onipresença do olhar estaria na sua invisibilidade, causando uma sensação permanente de vigilância. Desse modo, o sujeito que estariam sendo observado passaria a regrar a si mesmo.

O mais interessante do projeto panóptico é que o poder é exercido a partir de uma arquitetura, produzindo efeito de forma independente de um controle centralizado. Foucault destaca que é irrelevante haver ou não um vigia no interior da torre de segurança. A sensação de vigilância seria a mesma.[2] 

O que Foucault mostra é que, mais que uma prisão, o panóptico representava um ideal de sociedade. A partir dele seriam feitas diversas reformas urbanas e uma nova forma de controlar os corpos emergiria: a disciplina. Explico: a disciplina requer vigilância. A vigilância disciplina. E, por fim, a disciplina produz corpos dóceis e úteis. Essa nova racionalidade seria estrutural dentro de um continuum de dispositivos que empregavam os métodos disciplinares, formando uma nova tecnologia do poder que Foucault chamou de “sociedade disciplinar”:

Aqui cabe uma ressalva. Não deixa de ser interessante perceber que a sujeição dos corpos é potencializada justamente quando o absolutismo é substituído pelo liberalismo e a liberdade é festejada como a maior conquista da história humana. Como diria Foucault:

As luzes que trouxeram a liberdade também inventaram a disciplina. Luis XIV orgulhava-se do seu poder e se dizia o Estado em pessoa. Na prática, porém, estava preso em Versalhes. As estradas precárias, as informações demoradas e a baixa capilaridade do Estado permitiam que os camponeses vivessem longe da presença do Rei. Com a modernidade essa lógica se inverteu. Os políticos defendem a livre iniciativa, o Estado mínimo, porém o campo de atuação do poder foi ampliado em uma velocidade e intensidade que os monarcas absolutistas não poderiam sequer imaginar, nem nos seus sonhos mais grandiosos. No absolutismo, o Estado era o monarca e nada mais ao mesmo tempo. Na modernidade, o Estado não é nada e absoluto. 

Resumindo o que foi dito até aqui. Disciplina são métodos que normatizam formas mecânicas de comportamentos pela repetição e regramento. Tecnologia de poder é a forma que as relações de poder estão dispostas e agem num determinado território. E a sociedade disciplinar é uma tecnologia de poder que atua dentro de um continuum de dispositivos institucionais que aplicam os métodos disciplinares.

Pois bem, olhando para esses conceitos, podemos perceber que até aqui o poder está agindo diretamente sobre uma individualidade somática. No século XIX, contudo, haveria uma sofisticação e a barreira da subjetividade seria rompida com a emergência daquilo que Foucault chamou de “biopolítica”. Ou seja, a incorporação da biologia no cálculo político. 

O conceito de biopolítica na obra de Foucault é fragmentário, ambíguo e ensejou muita discussão ao longo do tempo. Mas, de forma resumida, podemos dizer que ele inverteu a lógica do poder soberano, verificada nos séculos anteriores. No absolutismo, o monarca tinha direito de decidir pela vida ou pela morte dos seus súditos. Ou seja, ele poderia fazer morrer ou deixar viver. No século 19 tal racionalidade é invertida e os efeitos políticos desse movimento serão enormes. As revoluções liberais resgataram a ideia de direitos naturais, dentre eles à vida. A biopolítica seria caracterizada pelo imperativo de fazer viver ou deixar morrer. 

Mas o que isso significa na prática? É aqui que começam as ambiguidades. De qual vida estaríamos falando: da biológica ou da política? Foucault, usando o mesmo conceito, ou termos muito parecidos, como biopolítica e biopoder, faz referências às duas noções de existência. Por tal motivo, de modo a evitar as ambiguidades, iremos usar a distinção proposta pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, que divide em duas categorias:

A zoé seria a “vida nua”, biológica, o homem vivente e o bios é usado para fazer referência à vida política. A biopolítica irá agir nesses dois campos. A zoé seria alvo de políticas públicas, sanitárias, higieniza e ensejaria todo um aparato médico e científico de controle da existência biológica das populações. Não por acaso a Medicina Social aparece no século XIX. 

O bios, por outro lado, seria regrada por um processo que outro filósofo italiano, Antonio Negri, chamou de produção biopolítica. A produção biopolítica é caracterizada pelo advento de novas técnicas de controle que alcançariam a subjetividade do sujeito, iniciando um processo de subjetivação e de construção de formas de vida conectadas à aos dispositivos de controle. Ou seja, a biopolítica irá alterar a aquilo que a Hannah Arendt chamou de natureza humana, produzindo “novos homens” condicionados e desejosos da própria sujeição. Ora, isso não era justamente o que a filósofa chamava de totalitarismo? É o sonho das ditaduras sendo realizado sem os ditadores.

O admirável século XXI e o paradoxo do totalitarismo

Existe uma contradição básica que impõe limites ao avanço de um regime totalitário: quanto maior o controle, maior será a sensação de aprisionamento e maior será o desejo de liberdade. Ou seja, o efeito da busca pelo controle total é o afloramento da resistência e não, como pretendido, a apatia e o conformismo. Por isso que o ideal de um novo homem é o objetivo máximo desses regimes, pois, como já foi dito, o sujeito deve desejar para si os mecanismos que o controlam. 

Aqui a outra contradição. O totalitarismo pretende fabricar o novo homem por meio do controle, porém, em tese, esses mecanismos serão aceitos passivamente apenas no momento que esta nova subjetividade estiver formada. Ou seja, as instituições totalitárias atuam diretamente sobre os corpos dos “velhos” homens, justamente aqueles que ainda não estariam preparados para se submeter ao controle absoluto. Forma-se uma dualidade: o mesmo alemão que levantava a mão em público e gritava Heil Hitler a plenos pulmões, poderia, em outro momento, fazer graça e ridicularizar o ato: como no caso descrito por Richard Evans dos artistas de circo que foram denunciados por estarem treinando macacos para saudarem Hitler.

Pelo mesmo motivo, Foucault concluiu que seria impossível a eliminação total das práticas delituosas, pois, para tanto, seria necessário em grau tão sufocante de vigilância, que, cedo ou tarde, tornar-se-ia insuportável e obrigaria o indivíduo a quebrar as regras que deveriam ser preservadas. O Estado totalitário, portanto, nunca será de fato total. Seu avanço no presente deixará as sementes do seu recuo no futuro. 

A grande questão é: até que ponto o controle pode ser ampliado? Para furar a barreira da resistência, os dispositivos políticos devem concomitantemente controlar os corpos e produzir novas subjetividades. Isso explica o motivo do nascimento da biopolítica no século XIX e como tais técnicas foram acopladas à disciplina.

Na segunda metade do século XX, porém, a sociedade disciplinar entrou em crise e, aos poucos, seria substituída por outra tecnologia de poder: o controle. Isso aconteceu porque, de um lado, o crescimento populacional verificado após a Segunda Guerra Mundial impossibilitou o controle somático disciplinar e, ao mesmo tempo, a tecnologia informacional permitiu que a vigilância atuasse também nos lugares abertos.

Ou seja, no momento do colapso da sociedade disciplinar, após os movimentos de 1968, haveria, de um lado, uma nova geração de homens e de mulheres que recusavam o confinamento imposto pela sociedade disciplinar e, de outro, uma nova tecnologia política que permitiria a vigilância desses corpos também nos lugares abertos. O controle pulou o muro das instituições junto com os indivíduos que buscavam superá-lo.

A juventude finalmente poderia sentir a luz do sol ardendo nas suas peles, símbolo da vida pós-confinamento e da conquista da tão sonhada liberdade. Porém, o mesmo raio que iluminava suas cabeças, formaria, abaixo dos seus pés, a perpétua sombra do poder, que acompanharia cada passo desse novo homem que percorria livremente as trilhas abertas e regradas pela sociedade de controle. 

Na distopia de Orwell o lema era: escravidão é liberdade. No admirável século XXI podemos dizer que a liberdade oferecida escraviza. Um exemplo:

A privatização dos serviços públicos é defendida em nome da liberdade. O indivíduo poderia escolher onde estudar, onde trabalhar e como se aposentar. Poder escolher, de fato, é um privilégio de homens livres. O único inconveniente é que a prática é um pouco diferente. O substrato do avanço da economia de mercado é o homem endividado. O sujeito precisa parcelar sua educação, sua saúde, sua moradia, seu lazer para ganhar mais dinheiro e pagar todas as dividas acumuladas. Depois precisa cuidar dos seus filhos e, no fim, da velhice. Ou seja, a vida livre dos serviços públicos é a vida sufocada pelas dívidas.

E, se liberdade é poder escolher, o homem endividado não tem escolha: ele precisa se submeter a empregos precários, salários menores, longas jornadas de trabalhos, pois ele está sempre buscando comprar uma liberdade parcelada que o impede de ser livre. 

Como Deleuze destacou, a principal mudança trazida por esta nova tecnologia de poder é que na sociedade disciplinar o indivíduo era mantido em lugares fechados e estava sempre começando uma nova etapa, saindo e entrando nas instituições que regravam a sua vida. Ou seja, na infância era a escola. Concluída esta etapa, vinha a fábrica e, no fim, o asilo. Caso não se submetesse a tais regras, ele poderia ser enviado para uma prisão ou para um hospício.

Na sociedade de controle ninguém determina nada. O indivíduo é regrado pela lógica empresarial e concorrencial. Portanto, a educação é ininterrupta: escola, curso técnico, faculdade, pós-graduação, MBA, mestrado, doutorado, pós-doutorado, aperfeiçoamento, idiomas etc. A tecnologia da informação tornou o trabalho e a educação onipresentes, a ponto de ser quase impossível separar a vida doméstica do trabalho e da educação. 

A vida contemporânea é mediada pela tecnologia da informação. A tecnologia da informação não é neutra, ela, além de registrar o movimento individual, produz informações sobre cada um dos indivíduos. Tais informações formam um gigantesco banco de dados que é compartilhada entre as agências e pode ser usados para diversos fins: desde a espionagem, caso clássico da NSA, até para a propaganda.

Recentemente saiu a notícia que o aplicativo Wase vende, para as agências de seguros, informações sobre os hábitos dos usuários. A velocidade média. Os lugares em que o motorista passa. Os horários em que ele costuma trafegar, etc. Tais informações ajudariam a compor o preço final do seguro. Imagine agora o nível que esse controle poderá atingir quando o carro automático se tornar uma realidade. 

O Facebook é o novo mito da caverna. A realidade virtual é gerenciada pelos algoritmos, é essa inteligência virtual que decide aquilo que irá aparecer na tela dos computadores. A pergunta é: qual seria o critério para selecionar tais conteúdos? Bem, numa sociedade capitalista, ganha quem paga mais caro. Assim, se a indústria vegana resolver investir mais que à pecuária, os usuários do Facebook podem ser inundados com dicas de bons restaurantes naturais e matérias sobre a crueldade praticada contra os animais. O efeito desse tipo de manipulação não é apenas econômico. O usuário pode se compadecer com o sofrimento animal, virar um ativista e colocar tal causa no topo das suas prioridades eleitorais.

Esse cadastro virtual já demonstrou seu poder de influenciar aquilo que as pessoas tem de mais íntimo, seus sentimentos. Recentemente, o próprio Mark Zuckerberg admitiu que realizou uma experiência em que, durante um único dia, notícias e mensagens tristes tiveram prioridade em relação às demais.[3] O sujeito entrava na sua página pessoal na rede social e via apenas pessoas deprimidas. Em pouco tempo, ele também começava a compartilhar posts tristes e demonstrava desanimo com o mundo. Ou seja, houve uma clara influência de uma ÚNICA empresa nos sentimentos de milhões de pessoas no mundo inteiro.

A manipulação da subjetividade nesse nível e de modo tão simples é um assustador alerta sobre o potencial político dessas tecnologias. Pessoas desanimadas são apáticas e a apatia permite maior controle. Não custa lembrar que o afeto humano é a principal barreira contra o totalitarismo.

Em 1984, os diários eram proibidos, pois simbolizavam a individualidade, ponto cego do poder. No admirável século XXI, os diários são virtuais e públicos, o Big Brother sabe o que você escreve e, ainda mais, define o que você irá pensar antes mesmo de ser compartilhado textualmente. Tal fenômeno seria impensável para qualquer regime totalitário do passado, incluindo os da ficção. A ruína do Estado totalitário pode ter sido o triunfo do totalitarismo.

Outro exemplo é a rede montada pelos Think Tanks conservadores. Na distopia literária havia o ministério da verdade que produzia livros em série para o povo. Aqui a distopia virtual também é mais eficiente, pois permite um fluxo contínuo de informação cuidadosamente pensada para ser absorvida de forma rápida e mecânica. Tal conteúdo define quais seriam os verdadeiros problemas que o indivíduo deveria se preocupar e aponta as soluções. Tudo de forma bem simples e direta. 

O resultado é um exército de indivíduos que comentam sobre qualquer coisa, até os assuntos mais complexos, e tem respostas para todos os questionamentos. Não há debate, não há dúvida e não há pensamento. A reflexão já foi “refletida”, a crítica já “criticou”, os dados já foram coletados, selecionados, interpretados e agrupados em pacotes com o selo da ideologia na qual eles irão justificar. Ou seja, o conhecimento está acabado e, para melhorar, ele se encontra ao alcance de todos no Google.

O sujeito livre ainda pode escolher a narrativa da bolha de sua preferência, personalizada e formatada de acordo com a sua individualidade. Pronto! Agora é só diversão. Ele poderá navegar pelos os quatro cantos do globo virtual e colecionar lacrações ou mitadas (a palavra adequada depende da bolha escolhida) para depois compartilhar seus prints com os seguidores, que irão massagear o ego ao destacar a inteligência do sujeito em questão. 

A satisfação de, aos 15 anos, já ter destruído “Einstein”, desmascarado “Marx” e enterrado definitivamente “Freud”, porém, irá durar pouco. É preciso acordar cedo no dia seguinte para continuar sendo livre. Darwin terá que esperar mais 24 horas para ser demolido por este jovem prodígio, sempre pronto para quebrar os paradigmas virtuais enquanto se submete aos padrões que normatizam sua vida rebelde dentro da sociedade de controle. 

Se o século XIX inventou a biopolítica, o XX inventou a produção biopolítica. As últimas décadas levaram tais práticas ao paroxismo. Esse é o admirável século XXI. Sorria, vc está sendo filmado, vigiado, catalogado e controlado. Aproveite a liberdade concedida, mas, lembre-se, é preciso moderação. Pois, nesse mundo pós-totalitário, o Big Brother está de olho em você.

Notas e referências

[1] FOUCAULT, Michel – O Anti-Édipo: Uma Introdução à Vida não Fascista (PDF)

[2] No século XVIII estas relações de poder começaram a mudar. O soberano recua e aparecem, em seu lugar, as instituições disciplinares. Emerge um novo dispositivo de poder que Foucault chamou de sociedade disciplinar. Dentro dessa economia política, o sujeito é formado pelas instituições, em lugares fechados. Assim, ainda na infância, entra no colégio que tem como função prepará-lo para o trabalho. Após esse período, ao crescer, ingressa numa atividade produtiva: vai para a fábrica, para o exército, ou para o seminário, onde sua força será direcionada a um fim específico. No fim da vida provavelmente ingressará num asilo ou, se todas essas instituições falharem, pode ser levado à prisão ou ao hospital psiquiátrico (Migowski, pp 30, 2017).

[3] Época – “Inovador”, diz executiva do FB sobre experimento que manipulou emoções de usuários

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