Durante 35 anos, ditador cedeu a aliados políticos uma área total equivalente à Lituânia; principais beneficiários da grilagem no Paraguai, latifundiários brasileiros expandiram sua influência durante o regime
Por Bruno Stankevicius Bassi, em De Olho nos Ruralistas
“Um homem de visão, um estadista”. Com essas palavras o presidente Jair Bolsonaro prestou sua reverência ao general Alfredo Stroessner, ditador que presidiu o Paraguai entre 1954 e 1989. Em 35 anos de governo, Stroessner promoveu um regime de terror que culminou com 425 paraguaios mortos e 20 mil presos políticos, segundo dados da Direção Geral de Verdade, Justiça e Reparação do Paraguai. Entre eles, vários camponeses.
Além da tragédia humana, a ditadura de Stroessner criou uma cicatriz permanente na estrutura fundiária paraguaia, utilizando a distribuição de terras públicas como ferramenta de poder numa escala nunca antes vista na América Latina.
Criada em 2005 com o propósito de investigar as violações aos direitos humanos cometidas durante a ditadura, a Comisión de Verdad y Justicia examinou mais de 200 mil títulos de propriedade rural outorgados entre 1954 e 2003 e constatou que, dos 7,8 milhões de hectares com irregularidades consideradas graves, 6,7 milhões foram repartidos durante o “stronato”. Uma área equivalente à Lituânia em terras griladas.
A homenagem ao ditador foi proferida nesta terça-feira (26) durante a cerimônia de posse do novo diretor-geral da Itaipu Binacional, entidade responsável pela administração da usina hidrelétrica.
Em seu discurso, Bolsonaro enalteceu o papel dos militares brasileiros na construção da usina, especialmente o marechal Castelo Branco, que, segundo ele, “foi eleito presidente da República do Brasil no dia 11 de abril de 1964 e tomou posse no dia 15 de abril de 1964, tudo à luz da constituição vigente naquele momento”. Sobre o ditador paraguaio, Bolsonaro foi ainda mais enfático:
– Isso tudo não seria suficiente se não tivéssemos do lado de cá um homem de visão, um estadista que sabia perfeitamente que o seu país, Paraguai, só poderia prosseguir, progredir, se tivesse energia. Então, aqui também a minha homenagem ao nosso general Alfredo Stroessner.
Além de Bolsonaro, participou da cerimônia o presidente paraguaio Mario Abdo Benítez, filho de um secretário particular de Stroessner, líder do “quarteto de ouro“, grupo de dirigentes que coordenou a política de doação de terras públicas para militares e aliados políticos. O próprio Benítez é dono de 20 mil hectares irregulares no Chaco, recebidos pelo seu pai das mãos do ditador.
Após o fim da ditadura militar paraguaia, em 1989, Stroessner se exilou em Brasília, onde faleceu em 2006, foragido, sem ter prestado contas à Justiça paraguaia por seus diversos crimes – incluindo diversos processos por corrupção. Vivendo na mesma cidade, onde exerceu mandatos consecutivos como deputado federal desde 1991, não há registros de que Jair Bolsonaro tenha sido recebido por Stroessner.
GRILAGEM DE STROESSNER BENEFICIOU BRASILEIROS
Mas a farra das terras públicas não beneficiou apenas os aliados locais do ditador. Muitos dos lotes outorgados pelo Instituto de Bienestar Rural foram repassados a latifundiários brasileiros que buscavam terras mais baratas no país vizinho.
Ao vender uma pequena propriedade de 20 hectares no Brasil, um colono podia comprar o dobro ou o triplo no Paraguai. Junto a isso, Stroessner ofereceu créditos subsidiados pelo Banco Nacional de Fomento del Paraguay, incentivos agrícolas do Plan del Trigo e revogou em 1967 a lei que impedia a venda de terra para estrangeiros na região de fronteira. Como resultado, estima-se que mais de 400 mil brasileiros tenham se estabelecido no país vizinho entre 1970 e 1985.
A política virou até verbo. Quando um político privilegia interesses brasileiros em detrimento dos próprios paraguaios, é acusado de “strossnear” o país. O neologismo foi diversas vezes atribuído ao predecessor de Mario Abdo Benítez, o ex-presidente Horacio Cartes, que ficou no cargo entre 2013 e 2018 – ele mesmo um dos maiores latifundiários do país.
Entre os beneficiários da reforma agrária às avessas promovida por Stroessner está o “rei da soja” do Paraguai, o brasileiro Tranquilo Favero. Maior proprietário individual de terras no país vizinho, Favero – que não possui terras no Brasil – é acusado de ter recebido 3 mil hectares em Ñacunday, onde protagoniza um dos principais conflitos da história recente paraguaia.
Em fevereiro de 2012, enquanto 400 famílias camponesas ocupavam uma fazenda ligada à uma de suas empresas, a Agro Toro, Favero deu uma entrevista à Folha onde declarou-se saudoso dos tempos de Stroessner: “Naquela época você podia dormir com a janela aberta e ninguém te roubava. Só estamos piorando desde então”. Disse ainda que seria inútil lidar com camponeses através da diplomacia: “Têm que ser tratados como mulher de malandro, que só obedece na base do pau”.
‘DE OLHO NO PARAGUAI’ RELATOU INVASÕES E CONFLITOS
Entre 2017 e 2018, De Olho nos Ruralistas contou – em uma série de 36 reportagens – histórias sobre a expansão de latifundiários e empresas agropecuárias brasileiras sobre o território paraguaio. Além dos impactos causados no meio ambiente e os povos do campo, esses atores também acumulam um histórico de ilegalidades no Brasil, em uma espécie de “efeito espelho”.
Dividido em 6 eixos, o especial De Olho no Paraguai obteve repercussão internacional e deu origem a um mapa físico, que será distribuído como recompensa aos assinantes do observatório. Saiba mais na página da campanha: De Olho nos Mil Parceiros.