Um mês de luto sem corpo em Brumadinho. Familiares “morrem um pouco a cada dia”

Bombeiros ainda buscam por 131 pessoas desaparecidas após rompimento da barragem da Vale. Sobreviventes e parentes de vítimas tentam cicatrizar as dores e o trauma após tragédia

Por Heloísa Mendonça, no El País Brasil

Há um mês a auxiliar de cozinha Paloma da Cunha, de 22 anos, não consegue parar de rebobinar em sua cabeça as lembranças do tsunami de lama produzido após o rompimento da barragem I da mina de Córrego do Feijão, em Brumadinho. A enxurrada de rejeitos da mineradora Vale engoliu sua casa, levando embora o marido, o filho de 1 ano e 6 meses, a irmã de 13 anos e o futuro como ela tinha imaginado. Paloma foi a única da residência que sobreviveu.

“Primeiro veio aquele barulho forte, parecia um helicóptero caindo. Depois, a luz acabou e, quando me levantei da cama para ver o que era, só sentia as coisas me esmagando”, conta a auxiliar de cozinha que morava em frente à pousada Nova Estância também devastada pelo tsunami de rejeitos. Levada pela correnteza, Paloma foi arremessada pela onda para o lado esquerdo e se agarrou ao que encontrou pelo caminho para sair da enxurrada.

Com muita dificuldade, chegou até um dos pilares de um pontilhão de uma linha de trem rompida pela força da lama. Neste ponto, conseguiu escutar a voz de Claudiney Coutinho, funcionário da Vale, que a localizou e lançou uma corda para resgatá-la. Afundada na lama, Paloma mal conseguia se mexer. O resgate, filmado por um amigo de Coutinho pelo celular, foi uma das imagens mais impressionantes da retirada de sobreviventes da tragédia de Brumadinho, que deixou pelo menos 179 mortos . Ao menos 131 seguem desaparecidas.

“Eu já não estava aguentando mais, a lama é muito pesada. Sentia muitas dores, quebrei o osso esterno, o nariz, estava sangrando muito, mas eu só pensava na minha família. Naquele momento, eu achei que todo mundo poderia estar vivo como eu”. As esperanças de Paloma, no entanto, foram diminuindo ao longo dos dias que esteve internada em um hospital em Belo Horizonte. Primeiro veio a notícia de que o corpo do marido Robson Andrade, de 26 anos, tinha sido encontrado. Sem poder deixar o centro médico, Paloma lamenta não ter podido dar o último adeus.

No dia 7 de fevereiro, quando já tinha retornado a Brumadinho, o corpo da irmã Pamela foi identificado. O velório aconteceu no dia seguinte, com o caixão lacrado. “Depois de tudo que eles fizeram com a gente, ainda temos que enterrar com o caixão fechado. A gente fica pensando, será que é a pessoa? É horrível. O meu bebê Heitor ainda não foi encontrado, eu fico ligando para saber notícias, mas até agora nada”, se emociona.

Sentada em um sofá de uma casa alugada pela Vale e ainda com o rosto bastante machucado, Paloma reclama do descaso da mineradora após a tragédia. “Só consegui esse lugar aqui porque eu procurei eles e insisti que queria uma casa. Quando voltei do hospital e fui à Estação do Conhecimento [espaço da mineradora usado para auxiliar parentes e amigos de vítimas e desaparecidos], as pessoas falaram que nem sabia que eu existia. Como pode?”, diz. Para Paloma, dinheiro nenhum trará sua família de volta, mas está empenhada em lutar até conseguir todos os seus direitos e encontrar também o corpo do bebê.

Ela não consegue entender como sobreviveu, mas acredita que, se essa foi a vontade de Deus, foi para que ela siga em frente. Decidiu adotar no último mês a estratégia de viver um dia de cada vez. “Já não faço planos como fazia, fiz tantos planos com a minha família e não aconteceu nada do que eu sonhei. Para que pensar muito no futuro se em um minuto a gente pode perder todo mundo que a gente amava?”

Às vezes, Paloma se questiona se diante de tamanha perda e dor sua “ficha já caiu”. “Parece que eu estou viajando, longe de casa, e na hora que eu voltar vai estar todo mundo me esperando. Ainda mais o meu filhinho, eu amava demais, era meu sonho ter ele”, lamenta.

Marcos de Paula Rodrigues e Andreza Rodrigues, pais de Bruno, funcionário da Vale, que está desaparecido desde a tragédia de Brumadinho. DOUGLAS MAGNO

A sede de justiça e o amor de mãe é o que também faz o coração de Andreza Rodrigues continuar batendo um mês após a tragédia. Moradora de Mário Campos, cidade vizinha a Brumadinho, ela busca incansavelmente notícias sobre o filho Bruno Rocha Rodrigues, engenheiro, que trabalhava na Vale. Ele tinha sido efetivado em 2018 na mineradora após trabalhar dois anos como estagiário. “O que sentimos é um descaso em relação às buscas dos mais de 100 desaparecidos. A intensidade diminuiu ao longos dos dias, temos menos helicópteros circulando, menos informações do que está sendo feito. Já estamos completando um mês de luto sem corpo. A gente está morrendo um pouquinho cada dia”, diz Andreza. Segundo o Corpo de Bombeiros, as buscas ainda não têm prazo para finalizar e podem durar meses. Eles explicam que os trabalhos entraram em uma nova fase, mais complexa e lenta, de escavações e uso de maquinário, e menos sobrevoos de varredura.

A mãe de Bruno chegou a visitar o local de trabalho do filho a convite da empresa há alguns meses e questionou uma funcionária que dava uma palestra na companhia se a barragem desativada não corria risco de rompimento. “Ela me falou que não, que era monitorada diariamente. Ou seja, mascarado diariamente. Eles sabiam que estavam levando nossas famílias para o matadouro. Quem assinou os relatórios sabia do risco que todos sofriam”, afirma.

Oito funcionários da Vale, entre gerentes e integrantes de equipes técnicas, estão presos sob acusação de “conluio” para ocultar informações sobre os riscos da barragem de Brumadinho.

Junto com o marido, Andreza tem participado de distintas reuniões sobre a tragédia para fazer um clamor para que os desaparecidos não sejam esquecidos. “O presidente disse que a Vale é uma joia, mas quem são as joias são os nossos entes queridos que estão soterrados lá”, disse Andreza.

A mãe de Bruno –assim como outras 264 famílias– recebeu uma doação de 100 mil reais da Vale por ter tido um parente vítima do rompimento. Outras 56 pessoas foram contemplados com 50 mil reais por residirem em imóveis na zona de Autossalvamento. “Teve a questão das doações e agora começam as propostas de indenização, tudo é muito triste, quanto vale a vida do meu filho e dos outros? Ele era tudo que eu tinha. Fui mãe aos 14 anos, vivi uma vida dedicada a ele”, diz.

Na última quinta-feira, o casal se somou a um encontro promovido pelo Ministério Público e a Defensoria Pública da União, realizado no bairro Parque da Cachoeira, em que foi esclarecido aos moradores algumas dúvidas sobre o acordo assinado pela Vale, no qual a mineradora se comprometeu a pagar uma indenização de um salário mínimo mensal por um ano a todos os moradores de Brumadinho adultos, meio por adolescente e um quarto para crianças. O documento prevê também o mesmo pagamento aos moradores de comunidades até um quilômetro do rio Paraopeba.

A notícia do acordo suscitou dúvidas de várias pessoas da comunidade que queriam saber se o valor seria descontado da indenização futura que atingidos irão receber e se as doações oferecidas pela Vale – de 100 mil reais e 50 mil reais – continuavam valendo. Um dos moradores questionou se era justo que pessoas que perderam familiares, casas, local de trabalho, recebessem a mesma indenização de moradores ricos de Brumadinho que não tiveram suas vidas afetadas.

“Ninguém perdeu nenhum direito porque o outro ganhou. Se vocês se desunirem vai ser pior e é isso que a Vale quer”, replicou o promotor de Justiça André Sparling. Na avaliação dele, reconhecer um acordo para todo o município – que possui 39.520 habitantes, segundo o IBGE- é uma vitória já que, além dos atingidos diretamente pelo rompimento da barragem, várias pessoas, comércios e pousadas foram afetadas indiretamente. Ainda não há, no entanto, previsão de quando esses valores serão liberados para a população.

Em compasso de espera, o agricultor Leonice Fernandez Ferreira, que assistia também à reunião não sabe como serão os seus próximos dias. A horta em que trabalhava foi levada pela lama e, apesar de já ter feito o cadastro pedindo uma doação emergencial de 15 mil reais da Vale por ter perdido seu ambiente de trabalho, ainda não recebeu nada. Desde a tragédia vive de alimentos básicos que estão sendo doados na comunidade. “O que eu sei mexer nessa vida é na horta, não sei para onde ir”, lamentava. Segundo a Vale, a doação de 15 mil reais para quem teve negócios impactados está em fase de cadastramento.

José Maria Medeiros, Ana e Maria Aparecida dos Santos vivem há um mês em um quarto de hotel após terem a casa engolida pelo tsunami de rejeitos após o colapso da barragem. DOUGLAS MAGNO

Vida dentro de um quarto de hotel

Vivendo há um mês com a filha e o marido em um quarto de hotel com três camas em Brumadinho, a operadora de moagem Maria Aparecida dos Santos também tem pressa por respostas e providências da Vale. A casa e a fazenda em que trabalhavam foram engolidas pelo tsunami da lama no dia 25 de janeiro. Ela e a filha de 9 anos estavam na residência na hora do rompimento, mas conseguiram sair a tempo de não serem atingidas. “Desde o primeiro dia, que cheguei só com a roupa do corpo, estou pedindo um aluguel de casa, uma assistência pra gente. Aqui é uma passada, não uma moradia, um mês já passou”, explica.

Assim como Maria Aparecida, cerca de outras 100 pessoas também estão atualmente desalojadas após a tragédia, morando em quartos de hotéis e casas de parentes. Famílias que viram suas vidas mudaram de uma hora para outra e passam o dia entre o quarto e as dependências das pousadas, sem saber o que será do futuro.

“O que é mais difícil é a falta de liberdade. Estamos sem emprego, sem casa, sem nada. Já fiz os cadastros e protocolos possíveis, troquei minha filha de escola, porque ela está traumatizada e não quer mais voltar para o Córrego do Feijão. A casa alugada a Vale já poderia ter providenciado”, afirma Maria Aparecida. A operadora de moagem diz que tem sido tratada muito bem na pousada, mas quer um lugar para chamar de seu. Confessa, no entanto, ter passado por situações constrangedoras, como num dia em que, segundo ela, foi impedida de almoçar no restaurante localizado no hotel sob alegação que a comida tinha sido suspensa. “Foi uma situação absurda da Vale, que tirou a minha casa, a minha liberdade, e agora estava restringindo a alimentação de uma criança de 9 anos”, conta.

Enquanto os dias passam, a dor de Maria Aparecida, que além da casa perdeu um número grande de amigos e vizinhos, parece crescer. “Essa dor não sei se vai cicatrizar não. O porquê é o que ninguém responde. Por que ninguém tomou providência sobre isso e deixou o dinheiro falar mais alto? Assinaram que a barragem estava segura por causa do dinheiro”, diz de maneira enfática. “Dinheiro demais faz desordem. Matou todo mundo”, conclui.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

20 + quatro =