Perversidade e racismo na justiça penal

Não é preciso de leis para assegurar o racismo institucional quando uma juíza deixa claro que um réu, por ser branco, não tem ‘estereótipo de bandido’

Por Dina Alves, especial para a Ponte

“O réu não possui o estereótipo padrão de bandido, possui pele, olhos e cabelos claros, não estando sujeito a ser facilmente confundido”. A frase da sentença assinada pela juíza Lissandra Reis Ceccon, da 5ª Vara Criminal de Campinas, interior de São Paulo, é um diagnóstico da insidiosa persistência do racismo e da colonialidade da Justiça entre nós. Ela revela uma episteme racial que nos remete aos discursos científicos do século XIX, e demonstra como nosso entendimento sobre crime, espaço e corpo marginais é baseado numa concepção racializada da lei e da ordem. Expressam, assim, ideologias de classe e pertencimento racial no poder judiciário.

O movimento do racismo científico do século XIX utilizou as categorias “raça e gênero” como seus principais instrumentos de análise e de demarcação de corpos desviantes/puníveis. Exemplo disso foi a construção da teoria “criminalidade étnica” propagada pelo médico baiano Nina Rodrigues, que atribuía aos negros e negras predisposição para o crime e, portanto, a culpabilidade e a punição desproporcional. O Direito Penal, herdeiro direto dessa teoria, reproduz um léxico que revela suas origens eugênicas. A sentença da juíza Lissandra reflete a presença persistente desse racismo científico, que apesar de ser teoria do século passado, se mantém vivo no presente, no imaginário e nas práticas forenses do poder judiciário no Brasil.

As posturas comuns de policiais militares na abordagem e produção do “suspeito-padrão” não deixam dúvidas que recai a pretos e pobres o “tipo ideal” do criminoso nato. Exemplos não faltam: um memorando interno da Policia Militar de Campinas (n. 8 BPMI 822/2012, do Comandante da 2ª Cia da PM), orienta os policiais militares a abordarem jovens negros nas blitzes; em 2017, o comandante da Rota (Rondas Ostentivas Tobas de Aguiar, a tropa de elite da PM paulista), tenente-coronel Ricardo Augusto Nascimento de Mello Araújo, orientou policiais a fazer abordagens diferenciadas nas periferias e bairros nobres, na cidade de São Paulo, entre outros casos sistemáticos no cotidiano. Nas ruas, os exemplos que não vemos acontecem todo o tempo.

A persistência dessas teorias também pode ser observada no resultado de pesquisa realizada pelo NEV (Núcleo de Estudo da Violência) da USP (Universidade de São Paulo), no ano de 2011, sobre as “atitudes suspeitas” nos flagrantes realizados pela Policia Militar de SP. O estudo revelou que os PMs se baseiam em um “conhecimento racial” para realizar os flagrantes por acusação de tráfico de drogas. Mais recentemente, a polícia do Rio de Janeiro executou Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, jovem negro, que aguardava a família no ponto de ônibus portando um guarda-chuva preto. A morte de Rodrigo foi justificada pela corporação ao dizer que a polícia “confundiu” o guarda chuva com um fuzil. Essa é a versão oficial. A verdade é que Rodrigo foi vítima da produção racial do “estereótipo padrão de bandido” a que se refere a juíza Lissandra Reis Ceccon. Rodrigo era um jovem negro, pertencente ao território alvo, por excelência, do genocídio antinegro: a favela, a quebrada. Esses são apenas exemplos das dimensões da produção racial dos estereótipos, produzidos e reproduzidos pelo sistema de justiça criminal na vida da população negra.

A frase da juíza nos situa para a produção racial da suspeita e dos estereótipos que não se resume a uma prática da instituição polícia, exclusivamente, mas principalmente do Poder Judiciário. Comumente, juízes se revestem de verdadeiros semi-deuses ao exercerem poder de vida e morte sobre a população alvo. Quando raramente acionados, os instrumentos legais são utilizados não para garantir a lei, mas para produzir privilégios de acordo com a raça e a posição social dos indivíduos acusados de determinados crimes. Embora brancos e negros cometam crimes violentos em idênticas proporções, os réus negros tendem a ser mais perseguidos pela vigilância policial, são mais criminalizados, enfrentam maiores obstáculos de acesso à justiça criminal e têm maiores dificuldades de usufruir o direito de ampla defesa e da presunção da inocência, assegurado pela Constituição Federal de 1988.

Assim, percebemos a persistência de uma estrutura perversa da existência de uma colonialidade da justiça na “democracia”. Ou seja, mesmo com a transição entre Colônia/República/Democracia, as instituições de justiça penal continuam reproduzindo e ecoando as relações sociais do regime escravocrata na produção e filtragem racial para criminalizar e punir determinados grupos sociais.

Por isso um jovem de pele, olhos e cabelos claros, mesmo que tenha cometido um crime, não possui o “estereótipo padrão de bandido”. A frase da juíza demonstrou que, historicamente, o modelo de gestão da ordem pública privilegia o corpo negro como ameaça e como alvo da punição sempre. A letra da sentença pode nos ajudar a entender a relação senzala-favela-punição situando a população negra num continuum penal de punição sistemática e cotidiana. Alvos por excelência do sistema de justiça penal, a maioria dos explorados no mercado de trabalho, segregados nas favelas, mortos pela polícia, enjaulados nas prisões brasileiras, são negros. A criminalização e produção racial de estereótipos aparecem, neste contexto, não apenas como letra fria de narrativas forenses, mas como a reiteração de uma ideologia de desumanização, criminalização, exploração e manutenção da ordem colonial.

A frase atribuída à juíza tem muito a nos dizer sobre os padrões de relações raciais no Brasil contemporâneo. Apesar de todas as garantias constitucionais conquistadas e tratados internacionais ratificados pelo Brasil com o objetivo de que proteger a dignidade da pessoa humana e os direitos humanos, o sistema de justiça penal funciona como um instrumento de dominação racial. Neste sentido, ainda que não haja lei expressa que promova a segregação racial em nosso ordenamento jurídico, o racismo tem espaço e atuação no imaginário do poder judiciário e em suas práticas institucionais. E não é de hoje.

* Dina Alves é advogada e coordenadora do Departamento de Justiça e Segurança Pública do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais)

Foto: Getty Images

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