Em semana de mobilização em Brasília, delegação dos povos Terena, Kinikinau e Guarani e Kaiowá pede revogação do parecer que paralisa demarcações
por Tiago Miotto, em Cimi
Uma delegação de indígenas dos povos Terena, Kinikinau e Guarani e Kaiowá foi à Advocacia-Geral da União (AGU), na manhã desta quinta (21), protocolar um documento em que pedem a revogação imediata do Parecer 001/2017, conhecido como Parecer Antidemarcação e publicado ainda sob a presidência de Michel Temer. O pedido dos indígenas baseia-se em recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF).
No último mês de outubro, o ministro do STF Celso de Mello reconheceu um recurso do Ministério Público Federal (MPF) no caso que trata da demarcação da Terra Indígena (TI) Limão Verde, do povo Terena, anulada pela Segunda Turma da Suprema Corte em dezembro de 2014 com base na tese do chamado marco temporal.
Esta tese, defendida por ruralistas, estabelece que os indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, exceto nos casos em que tivesse ocorrido “renitente esbulho” – ou seja, expulsão comprovada dos indígenas.
Ao admitir o recurso, na prática, Celso de Mello, relator do caso na Corte, reconhece que há divergências entre a interpretação adotada pela Segunda Turma no caso Limão Verde e a posição do Pleno do STF no caso Raposa Serra do Sol – primeira vez em que o marco temporal apareceu em uma decisão do Supremo. Com a decisão, o recurso contra a anulação da TI Limão Verde passará a ser apreciado pelo plenário do STF, ante a divergência confirmada.
Jurisprudência arbitrária
O caso Limão Verde é uma das bases centrais do Parecer 001/2017 da AGU, que foi publicado em 2017 pela então Advogada-Geral da União, Grace Mendonça, e assinado pelo então presidente Michel Temer.
Sob a justificativa de cumprir a jurisprudência do STF sobre demarcações de terras indígenas, o Parecer busca obrigar toda a administração pública a aplicar o marco temporal em todos os processos que envolvam demarcações de terras, inclusive para os quilombolas.
Desde a data de sua publicação, entretanto, a medida passou a ser duramente questionada pelo movimento indígena, por entidades indigenistas e pelo próprio MPF. Em nota técnica, o órgão avaliou que o Parecer 001/2017 foi “uma ação deliberada de negativa de direitos consagrados na Constituição da República, no Direito Internacional dos Direitos Humanos e na legislação infraconstitucional”.
Comemorado por parlamentares ruralistas antes mesmo de sua publicação, o Parecer da AGU possui bases frágeis. Ele assume como “jurisprudência consolidada” três decisões tomadas pela Segunda Turma do STF em 2014, durante uma reinterpretação do caso Raposa Serra do Sol que resultou na anulação da demarcação da TI Limão Verde, do povo Terena, no Mato Grosso do Sul; da TI Guyraroka, dos Guarani Kaiowá, no mesmo estado; e da TI Porquinhos, do povo Kanela Apãnjekra, no Maranhão.
As três decisões foram tomadas sem que as comunidades afetadas fossem sequer ouvidas, e os indígenas prejudicados ainda tentam revertê-las.
Em sua nota técnica, o MPF aponta que o Parecer da AGU fazia “a tentativa, temerária e precipitada, de produzir efeitos vinculantes de uma tese minoritária”. Para o órgão, a medida “se utiliza de artifícios para sonegar os direitos dos índios aos seus territórios”.
Parecer enfraquecido
A recente decisão de Celso de Mello enfraquece ainda mais as já débeis bases do Parecer 001/2017, explica Rafael Modesto dos Santos, assessor jurídico do Cimi.
“A tese do marco temporal aparece de forma isolada, periférica, no caso Raposa Serra do Sol. Celso de Mello reconheceu que a aplicação da tese no caso Limão Verde não condiz com a vontade e o entendimento do STF no julgamento do caso Raposa”, explica o advogado.
“O parecer se sustenta justamente na tese de que o STF havia ‘pacificado’ a matéria, e que essa pacificação seria na forma que a Segunda Turma aplicou nos casos Guyraroka, Limão Verde e Porquinhos. Agora, fica claro que isso é desconexo, suas contradições ficam ainda mais evidentes, jogando por terras o Parecer 001/2017 da AGU”, sustenta Rafael.
Com base nisso, uma representação dos povos Terena, Kinikinau e Guarani e Kaiowá cobrou da AGU a revogação do Parecer Antidemarcação.
“Tivemos uma audiência com o chefe de gabinete da AGU, onde cobramos a imediata revogação do Parecer 001/2017 da AGU, ou pelo menos sua suspensão até ter uma definição pelo STF”, relata Lindomar Terena, que participa da delegação presente em Brasília.
“Prova diabólica”
O voto do falecido ministro Teori Zavascki, relator do caso Limão Verde na Segunda Turma, introduziu na tese do marco temporal um parâmetro ainda mais restritivo, ao redefinir o conceito de “renitente esbulho”.
Segundo o voto de Zavascki, acompanhado por Gilmar Mendes e Carmen Lúcia, uma comunidade só seria considerada vítima de “renitente esbulho” quando o conflito se estendesse, por via judicial ou por “circunstâncias de fato”, até 5 de outubro de 1988.
Para o advogado do Cimi, tal interpretação contradiz a vontade do constituinte originário e do próprio STF no caso Raposa Serra do Sol.
“A Segunda Turma ressignificou o conceito de esbulho, transformando ele também num marco temporal, porque ele reduz a elaboração das provas à data de 5 de outubro de 1988. O caso Limão Verde foi o primeiro em que o STF trouxe o renitente esbulho e criou um precedente. Agora, ele perdeu força com essa divergência”, explica Rafael.
Ele acrescenta que a forma como o “renitente esbulho” foi definido no caso Limão Verde também ignora o fato de que, até 1988, os indígenas eram tutelados pelo mesmo Estado que era, muitas vezes, diretamente responsável por expulsá-los de suas terras. Não tinham, portanto, autonomia para ingressar em juízo e reclamar seus direitos na Justiça.
Além disso, o advogado aponta que os indígenas são sobrecarregados com ônus de provar o esbulho, mesmo não sendo parte nos processos, por serem considerados tutelados pela Funai.
Nos últimos anos, diversas decisões do conjunto dos ministros do STF vêm apontando em um sentido oposto ao definido naqueles julgados. É o caso do julgamento das Ações Cíveis Originárias (ACOs) 362 e 366, em 2016, quando a Corte reafirmou por unanimidade o caráter originário – ou seja, anterior à própria formação do Estado – dos direitos indígenas, e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239, que questionava a titulação de terras quilombolas e tinha o marco temporal como um dos argumentos centrais.
Neste julgamento, favorável aos quilombolas, o ministro Ricardo Lewandowski chegou a classificar a exigência de um marco temporal como uma “prova diabólica”, dada a dificuldade que impõe aos povos e comunidades afetados.
“Sabemos que tem um só fazendeiro querendo derrubar nosso direito, mas nós sabemos que o direito é nosso. Para nós, esse marco temporal causa até confusão, porque antes da Constituição, nós já existíamos lá. Temos a história dos nossos anciões. Esse marco temporal não faz sentido para nós, por isso a gente tem esperança de reverter essa decisão do STF”, afirma Sebastião Caetano Delfino, cacique da aldeia Limão Verde.
Semana de lutas
Além da reivindicação feita na AGU, durante a semana de mobilização em Brasília os indígenas Kinikinau, Terena e Guarani e Kaiowá tiveram outras agendas de incidência em defesa de seus direitos originários. Acompanharam uma sessão no plenário do STF, participaram de uma audiência com a Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM)na Câmara dos Deputados, reuniram-se com a Sexta Câmara do MPF e tiveram agendas em outros órgãos públicos federais.
–
Mbo’y Jeguá, uma das lideranças que integram a delegação indígena composta pelos povos Terena, Kinikinau, Guarani e Kaiowá, na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados. Foto por Adilvane Spezia, da Ascom Cimi