Por Camilla Veras Mota, da BBC News Brasil
Alinhando-se quase automaticamente aos posicionamentos da política externa dos EUA no Oriente Médio, o Brasil não apenas corre o risco de se isolar internacionalmente, mas abre mão de um esforço diplomático na região que vem sendo construído desde o governo Fernando Henrique Cardoso.
Uma política de Estado – e não de partido – de buscar uma postura autônoma da diplomacia brasileira em relação aos conflitos internacionais “para avaliar o que interessa ou não ao país”, diz a historiadora Arlene Clemesha, professora de História Árabe da USP (Universidade de São Paulo).
Pesquisadora da questão judaica e da História da Palestina Moderna, ela avalia as declarações e posicionamentos do governo Bolsonaro sobre a região – como a possibilidade de abertura de uma representação comercial brasileira em Jerusalém, após recuo na decisão de transferir a embaixada para a cidade, e o voto contrário na ONU a uma resolução que condenava a ocupação israelense nas Colinas de Golã – e as possíveis consequências da visita do presidente a Israel, que tem início neste domingo.
Em entrevista à BBC News Brasil, ela faz ainda avaliação sobre o governo do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, que concorre à reeleição em meio a uma série de denúncias de corrupção, e sobre o futuro do conflito entre israelenses e palestinos.
BBC News Brasil – Historicamente, qual o posicionamento do Brasil em relação ao Oriente Médio?
Arlene Clemesha – O Brasil sempre teve uma posição de amizade com as duas partes, com Israel enquanto país, Estado, e com os palestinos, fosse qual fosse a representatividade do momento, desde a existência da Autoridade Palestina (estabelecida em 1994).
O país sempre procurou ter uma posição, digamos, de equidistância. Isso porque é muito difícil falar em equilíbrio – uma posição de equidistância não significa de equilíbrio, porque a situação é essencialmente de desequilíbrio, há um lado forte e um lado fraco.
Mas a posição histórica do Brasil foi procurar uma equidistância e, ao mesmo tempo, uma posição de respeito a direitos humanos, lei internacional, resoluções da ONU. Isso significou sempre uma postura de condenação da ocupação israelense em territórios palestinos (delimitados na partilha que deu origem ao Estado de Israel, em 1948), que é considerada ilegal pela ONU.
Isso não significa uma inimizade com Israel, nunca significou – mas, sim, um respeito à lei internacional.
BBC News Brasil – A política externa do governo Bolsonaro, mais alinhada à dos EUA quando se fala na região, parece ser um ponto de inflexão nesse sentido. Qual é o efeito prático disso?
Clemesha – Vai significar um isolamento do Brasil em relação a todo o resto do mundo, praticamente, que condena a ocupação israelense dos territórios de Gaza, Cisjordânia (que pertencem aos palestinos) e Colinas do Golã (que pertence à Síria).
Dentro da Assembleia Geral da ONU, os EUA costumam ficar bastante isolados em suas posições em relação à ocupação israelense, junto com alguns ‘paisezinhos’, países-satélite.
O Brasil vai passar a ficar em um conjunto isolado dentro da comunidade internacional, mesmo que seja um lado forte – pelo poder político que ainda têm os EUA, como potência mundial, com força para vetar resoluções no Conselho de Segurança e aplicar sua vontade internacionalmente.
Em termos de comunidade internacional, isso é muito ruim, porque coloca o Brasil dentro de um campo isolado.
Além disso, o que eu acho que é muito nocivo é o fato de o Brasil, com isso, lançar por terra um esforço que vem desde o período FHC (Fernando Henrique Cardoso), e que continuou no período PT – e que não é de partido, mas de governo, de Estado -, de buscar uma postura autônoma do Brasil no mundo.
De ter uma voz autônoma, uma avaliação autônoma dos diferentes conflitos internacionais pra saber o que interessa ou não ao Brasil.
E sempre interessou ao Brasil se posicionar como um país em prol do diálogo, da paz, de uma construção pacífica das relações internacionais.
Ao fazer isso, ao se alinhar quase que automaticamente aos EUA, a gente está abrindo mão da construção dessa posição autônoma do Brasil.
Isso é muito nocivo em termos de legitimidade do país no mundo. E o Brasil não é qualquer país, é um país continental, não poderia ter esse alinhamento tão automático – com qualquer que fosse o país. Poderia ser a Rússia, a China, qualquer potência.
Esse alinhamento automático não condiz com o papel que o Brasil vinha construindo na comunidade internacional.
BBC News Brasil – O Brasil chegou a anunciar que, também como os EUA, transferiria a embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, voltou atrás em seguida, mas não descartou a possibilidade de abrir alguma representação na cidade. Quais seriam as consequências de uma mudança como essa?
Clemesha – A consequência é a possibilidade de retaliação comercial, mais do que qualquer outra coisa, de países árabes e muçulmanos – são 22 países árabes e cerca de 40 muçulmanos.
A comunidade muçulmana no mundo soma 1,5 bilhão de pessoas, e a questão de Jerusalém pega muito fundo para muçulmanos – é a terceira cidade mais sagrada para o Islã, com a maior mesquita.
A primeira grande mesquita construída no Islã foi a de Jerusalém, a mesquita de Al-Aqsa, com o Domo da Rocha. No início do Islã, as rezas se dirigiam a Jerusalém, e não a Meca – depois é que passou a Meca, ainda durante a vida de Mohammed (Maomé).
Jerusalém é uma cidade muito importante, não só para o judaísmo, o cristianismo, mas também para o Islã. Isso vai repercutir muito além do que a gente pode imaginar.
A gente está olhando para uma possível retaliação comercial árabe, mas a gente não sabe o que pode vir em relação ao descontentamento que isso vai causar com a comunidade islâmica no mundo.
BBC News Brasil – Há também o caso das Colinas de Golã, que os EUA reconheceram como território de Israel. Recentemente o Brasil votou contra uma resolução da ONU que pede o fim da ocupação israelense na região. Declarou considerar o território como ocupado, mas afirmou que o texto era parcial, porque criticava apenas as violações cometidas por Israel, mas não pelo governo sírio. Faz sentido esse argumento?
Clemesha – A resolução aprovada na ONU é um chamado para que Israel encerre a ocupação militar das Colinas do Golã, tomadas da Síria em 1967.
Ao votar contra, o Brasil demonstra que é conivente com a ocupação israelense e fica em minoria na Assembleia Geral da ONU.
Os argumentos que a representante do Brasil (Maria Nazareth Farani Azevedo) empregou na ONU para justificar seu voto – como a ausência de uma menção a violações de direitos humanos por parte da Síria – demonstram que ela ignora propositalmente a natureza do caso.
Não cabe a essa resolução, cujo intuito é eliminar a fonte de injustiça e de conflito na região – isto é, a ocupação -, falar em “violações dos dois lados”. Isso seria igualar a ocupação (uma violação da lei internacional) com a população ou o país ocupado, que teve suas terras usurpadas.
Vale lembrar, inclusive, que a lei internacional reconhece a legitimidade do direito de defesa em situações de ocupação militar.
O Brasil felizmente não chegou ao ponto de declarar as Colinas do Golã como pertencentes a Israel, como fez Trump, mas o voto contrário à resolução da ONU de condenação a esta ocupação militar nos coloca muito próximos disso.
BBC News Brasil – Em novembro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, defendeu a transferência da embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém afirmando que o Brasil apoiaria políticas para frear o Irã, de maioria xiita, para conseguir apoio dos palestinos, de maioria sunita. A senhora comentou na ocasião que o filho do presidente tinha uma “visão superficial” do Oriente Médio. Como funciona o xadrez político hoje na região e o que os Bolsonaro não estão levando em consideração?
Clemesha – Em relação a Jerusalém, acho que a primeira coisa a se entender é que foge ao xadrez geopolítico. É uma cidade que capta a imaginação, os anseios religiosos, a fé, tanto de xiitas quanto de sunitas – quanto de outras derivações islâmicas, já que existem várias correntes.
A outra coisa é que a cisão xiismo/sunismo não é a única cisão e nem é automaticamente aplicável para qualquer situação ou qualquer país. A economia e a política acabam falando mais alto em muitos casos – e não respondem a divisões fáceis como sunismo e xiismo.
O bloco ao qual Bolsonaro se aproxima no Oriente Médio, que é EUA, Arábia Saudita, alguns outros pequenos países na região, é um bloco próximo de Israel.
Então o maior receio que o Brasil – enquanto interesses brasileiros no mundo – pode ter é justamente de que Bolsonaro vai viajar para a região já alinhado a um grupo muito específico e muito claramente delimitado.
Ele não está preocupado com a postura histórica do Brasil, essa postura de construção de paz, de equidistância de diferentes atores em conflitos como o do Oriente Médio.
Ele está interessado em conceder declarada e explicitamente um apoio a EUA, Arábia Saudita e Israel na região.
Com isso, a gente pode, sim, esperar declarações que vão desagradar a várias partes, a vários regimes árabes que não estão alinhados nesse eixo. E não é só o eixo Irã-Síria, a gente tem a Turquia, o Catar, a Jordânia, que tem muita relevância em Jerusalém, porque é ela que tem a administração do Haram al-Sharif (Monte do Templo, também sagrado para judeus, cristãos e muçulmanos).
BBC News Brasil – Em 2010, quando Lula visitou a região, o fato de ele ter declinado uma visita ao túmulo de Theodor Herzl, fundador do movimento sionista, gerou mal estar em relação à comitiva brasileira. Quais os riscos de Bolsonaro cometer uma gafe parecida, mas no sentido oposto, que estremeça ainda mais as relações com os países árabes?
Clemesha – Foram poucos meses de governo e o presidente Bolsonaro já mostrou uma falta de tato muito grande nas declarações que tem feito.
Ele não tem agido como estadista, mas como candidato do Twitter. O estadista teria obrigação de pesquisar minimamente a história, o contexto político, saber das sensibilidades de uma região antes de fazer qualquer declaração.
Então, qualquer fala vinda de Bolsonaro pode criar um mal estar dentro de uma situação de conflito histórico como o do Oriente Médio – um conflito que se alastra na verdade há cem anos, entre o sionismo e a comunidade palestina local.
BBC News Brasil – O presidente visita Israel às vésperas das eleições, marcadas para 9 de abril. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu está no poder há uma década e busca reeleição em meio a uma série de denúncias de corrupção. Mesmo com a rejeição, ele ainda é um premiê relativamente popular. Por quê? A questão da segurança pesa muito?
Clemesha – Justamente. Ele constrói muito a ideia de vulnerabilidade israelense no Oriente Médio, o medo na população – que é um elemento muito importante nos conflitos, o fator medo, que consegue criar na população uma ideia de perseguição.
Então ele tem todo um contexto ideológico que constrói eficazmente – e há bastante tempo – que o ajuda a se colocar em um papel de liderança forte, militarizada, necessária para defender a segurança de Israel no Oriente Médio.
É uma construção. Tem ainda a questão das alianças (como aquela com os EUA), que lhe têm garantido essa permanência, e um perfil cada vez mais de direita, indo cada vez mais para a extrema-direita.
BBC News Brasil – Nesse sentido, até que ponto a própria atuação do movimento palestino acaba fortalecendo o discurso do premiê? Depois de um primeiro mandato entre 96 e 99, em que não conseguiu reeleição, Netanyahu voltou ao poder em 2009, vindo de um período em que o território israelense foi alvo de uma série de ataques.
Clemesha – A origem do que temos hoje não é a resistência palestina. Não é ela que fortalece a extrema-direita.
Eu vou dividir em duas partes a resposta. Primeiro, o que fortalece e que, portanto, pode ser visto como a origem da atual extrema-direita no poder em Israel foi o crescimento dos grupos religiosos desde 67.
A conquista de Jerusalém, isso foi um ponto de guinada histórica, em que começaram a crescer os grupos religiosos dentro do sionismo.
Na época da criação de Israel, por exemplo, o movimento sionista era bastante laico, os grupos religiosos eram minoritários. A conquista de Jerusalém em 67 mudou isso.
Houve uma outra guinada, com o assassinato de Yitzhak Rabin (primeiro-ministro morto em 1995) por um desses extremistas religiosos, um fundamentalista judeu.
Esse foi o segundo assalto, digamos assim, à ala mais liberal sionista.
O assassino de Yitzhak Rabin declarou ter cometido o ato porque Rabin tinha aceito um acordo com os árabes (os Acordos de Paz de Oslo, mediados pelo presidente americano Bill Clinton e firmado com o líder palestino Yasser Arafat em 1993). Sendo que o acordo estabelecido foi muito favorável a Israel, se a gente for analisar. Os árabes aceitaram o acordo em posições bem flexíveis.
A gente não tem como analisar todos os Acordos de Paz de Oslo neste momento, mas Oslo não negociou a paz. O que se negociou foi o caminho para se chegar a uma condição em que se pudesse negociar a paz (os palestinos passariam a governar de fato os territórios de Gaza e da Cisjordânia, por exemplo, até então controlado militar e administrativamente por Israel).
E essa condição criava realmente uma camisa de força para a resistência palestina. Oslo representou uma armadilha para a resistência palestina. Os palestinos deixaram de ter um movimento forte de resistência depois de Oslo. Foi um acordo inteligente por parte da liderança sionista.
Yitzhak Rabin foi, mesmo assim, acusado pela ala extremista sionista fundamentalista judaica de ter aceito um acordo com os árabes – o que seria impensável (na visão desse grupo), inconcebível, porque, afinal de contas, aquela terra havia sido entregue por Deus e, portanto, nenhum pedaço dela poderia ser cedido.
Realmente, o fundamento do acordo era que, lá na frente, se discutiria troca de terra por paz. Como isso era o que norteava o lugar aonde o acordo iria algum dia chegar – porque ele ainda não negociava isso -, Yitzhak Rabin ficou visto dessa forma.
Isso tudo abriu as portas para o crescimento da ala fundamentalista judaica dentro de Israel.
Então não foi a resistência palestina, por lançar foguetes contra Israel, num ato de resistência, que justificou aos olhos da opinião pública os ataques israelenses.
Realmente é visto dessa forma, muitos retratam e entendem que isso tenha acontecido. Mas essa é uma visão que esvazia o direito de resistência dos palestinos e que ignora os fatores internos israelenses que levaram ao crescimento da ala fundamentalista e de extrema-direita em Israel – e que não diz respeito aos palestinos, mas aos próprios israelenses.
BBC News Brasil – A senhora mencionou os acordos de Oslo, e essa parece ter sido a última vez que houve alguma esperança de resolução do conflito entre israelenses e palestinos. Qual a possibilidade concreta de que haja uma solução de dois Estados – ou seja, a criação de um Estado Palestino?
Clemesha – Possível é. Tecnicamente é possível, mas, politicamente, está muito distante. Não há qualquer negociação em curso, a autoridade palestina está muito desacreditada entre os palestinos e a liderança israelense – ou seja, o governo de Netanyahu – é o governo mais à direita que já vimos na recente História israelense.
É um governo que não quer chegar a um acordo, não tem interesse em um acordo, enquanto a liderança palestina não tem legitimidade sequer entre os palestinos para liderar um acordo.
Por outro lado, todos os esforços de acordos baseados na ideia de dois Estados que até hoje aconteceram incluíram um elemento muito difícil de os palestinos aceitarem, que sempre foi a ideia de troca territorial e de abrir mão de Jerusalém.
Isso é muito difícil, para qualquer liderança, seja com legitimidade ou não. Na época de (Yasser) Arafat (líder da Autoridade Palestina que participou dos Acordos de Paz de Oslo), ele não pôde estabelecer um acordo porque toda proposta envolvia abrir mão de Jerusalém e, com isso, não se avançou no processo.
Abrir mão de Jerusalém era muito difícil, e não se chegou a uma resolução do conflito mesmo com uma liderança forte como a de Arafat, que era capaz de chegar para a população e pedir concessões maiores do que já tinham sido feitas.
BBC News Brasil – O lado palestino é inflexível em relação ao direito de retorno dos 5 milhões expulsos do território desde 1948 – o quanto isso é realista e o quanto atrapalha as negociações de paz?
Clemesha – O direito de retorno, na prática, já foi muito flexibilizado.
Mesmo na proposta árabe de paz de 2002, que foi uma proposta séria, muito importante, a ideia de retorno é, antes de mais nada, a ideia do reconhecimento do direito por parte de Israel.
E, a partir daí, da negociação de um número – que, provavelmente, como tem se falado desde a década de 90, dos anos 2000, em 300 mil, 350 mil (pessoas).
Não seria algo nem próximo dos 5 milhões de palestinos refugiados registrados na Agência da ONU para os Refugiados Palestinos.
Então já se abriu mão, historicamente falando, de um direito absoluto de retorno, de uma aplicação desse direito.
Do que não se abre mão, para os palestinos – porque aí é uma questão histórica, de orgulho, de reconhecimento do sofrimento de gerações, de reconhecimento de uma injustiça histórica – não se abre mão do reconhecimento desse direito.
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‘O Brasil não poderia ter esse alinhamento tão automático com qualquer que fosse o país – Rússia, China ou qualquer potência’, diz a historiadora Arlene Clemesha, professora de História Árabe da USP (Universidade de São Paulo)