Michel Gherman: Israel de Bolsonaro é aquela da novela da Record

Judeu imaginário, Jerusalém imaginária, templo imaginário: há um fuso horário com a realidade

Por Morris Kachani, no Estadão

Um presidente brasileiro que enaltece Carlos Alberto Brilhante Ustra, notório torturador, responsável pela morte ou desaparecimento de ao menos 45 presos políticos, de acordo com a Comissão da Verdade, decide visitar o Museu do Holocausto em Jerusalém e sai dele ratificando o pensamento tortuoso de seu chanceler, que atribui o nazismo às esquerdas.

Poderia se dizer que se trata de ignorância, ou brincadeira de mau gosto, tomando emprestada a certeira provocação de Rodrigo Maia.

Mais que tudo, para mim pelo menos, é uma questão de (des)respeito.

Especialmente para com as milhões de vítimas da Segunda Guerra, mas também para com o povo que o elegeu e o povo que o recebeu em terras distantes.

Do lado de lá, goste-se dele ou não, Bibi Netanyahu, seu anfitrião, é um político de reconhecida competência e habilidade. Sua visão de mundo porém, nunca foi e nunca será um consenso entre os judeus.

Do lado de cá, tivemos a consistente rede de apoio a Jair Bolsonaro montada pela comunidade judaica brasileira, desde os primórdios de sua campanha.

O que, de novo, não significa que todos judeus brasileiros se sintam representados neste papel.

Pluralidade e força de argumentação sempre fizeram parte de nossa cultura, e este blog se presta a isso, mesmo em tempos de polarização barata. Barata e perigosa, como se verá na entrevista a seguir.

Michel Gherman é mestre em Antropologia e Sociologia pela Universidade Hebraica de Jerusalém, e doutor em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor e pesquisador, coordena o Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes na mesma universidade. Colaborador do IBI – Instituto Brasil Israel -, lançou recentemente o livro “Início do Sionismo no Brasil: Ambiguidades de uma história” pela Unifesp.

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Historicamente, o que representa a visita de Bolsonaro a Israel?

A visita do presidente brasileiro a Israel tem muito mais relação com o Brasil do que com Israel. Se Bibi Netanyahu se esforça para mostrar que se expande em termos de relações internacionais e de contatos com líderes mundiais, Bolsonaro vê sua visita como um marco teológico-civilizatório. Digo o seguinte: que para Bibi, a visita é pragmática e Bolsonaro é apenas mais um líder que chega a Israel. Poderia ter ajudado mais, transferindo a embaixada para Jerusalém, mas a vinda já demonstra que Bibi está rompendo o isolamento internacional.

Para o presidente brasileiro, não. A visita a Israel significa uma mudança radical na política externa. O Brasil sai do pragmatismo político e entra na estrada de uma política internacional hiper ideológica. Ideológica e teológica. A visita de Bolsonaro a Israel tem como objetivo agradar o eleitor evangélico, mas não só. Sua política internacional acredita em forças do bem combatendo o mal, em uma disputa de civilizações.

Não é casual que a terceira viagem internacional seja a Israel. Temos um grupo que crê que a aproximação do Brasil a Israel ocupa uma etapa teológica, em uma expectativa escatológica, de retorno de Jesus, mas temos outro grupo (esse parece ser efetivamente o grupo de Bolsonaro) que acredita em uma Israel imaginária, que combate os barbáros, que derruba o terrorismo, que é baseada em uma lógica judaico-cristã (seja lá o que isso signifique).

A visita de Bolsonaro é histórica, porque ignora a Israel real e investe naquela Israel de seus sonhos. Vai ao Muro das Lamentações, atira com arma, enfim, dá vazão a seus desejos. Faz isso ameaçando interesses econômicos, lógicas de mercado, tirando o Brasil do pragmatismo internacional, colocando-o em perspectivas apenas ideológicas. A visita de Bolsonaro a Israel prova o que muitos já desconfiavam: o liberalismo do governo dele pode terminar na porta da igreja, ou do quartel.

A cordialidade na relação de brasileiros com israelenses data do voto histórico de Oswaldo Aranha, que nosso presidente praticamente desconhecia até pouco tempo atrás. O que isso simboliza?

Simboliza que o Israel real, da partilha, é um detalhe sem importância. Bolsonaro é um ignorante em história. Ele joga em outro campo, no campo das simbologias políticas e religiosas. Provavelmente nunca havia ouvido falar de Oswaldo Aranha porque desconhece a história da partilha, da votação da ONU. A Israel de Bolsonaro é aquela da novela da Record. E o conflito palestino-israelense deve ser alguma coisa parecida com os filmes de cowboy que via no cinema do interior, que provavelmente já deve ter fechado as portas.

A política externa exercida pelos governos anteriores (FHC e Lula/ Dilma), no tocante ao conflito árabe-israelense, era mais sensata?

Pode-se ter críticas, mas havia um modelo. Na verdade era uma politica de Estado, não de governo, seguia a história do Itamaraty. Escorregões no pragmatismo eram considerados influência ideológica indevida. Hoje não há escorregões, há ruptura com a politica de Estado, e parece haver adoção de uma agenda ideológica e ultra-conservadora.

O que eu quero dizer é que em suas fases mais complexas, o Brasil manteve uma certa equidistância e independência das relações internacionais. Em alguns momentos, com práticas mais polêmicas, outras com atitudes mais tradicionais, mas o Brasil nunca abriu mão do pragmatismo nas relações internacionais.

Como decisões polêmicas, posso citar o apoio da decisão de sionismo como racismo, em pleno governo militar (precisa dizer que houve ditadura no Brasil?). Mesmo aqui com uma decisão que considero muito equivocada, pode-se encontrar referências à independência e o respeito a multilateralidade.

No governo Lula, a diplomacia foi criticada por tentar ter protagonismo em conflitos de dificílima solução e principalmente pela aproximação com o governo extremista de Ahmadinejad, presidente iraniano. Prática ousada e, pode-se dizer, pouco pensada. Mas havia uma estratégia. Discorde-se ou não o Brasil se pensava como membro de conselho de segurança, enxergava mercados possíveis.

O que temos hoje? Luta contra o globalismo? A civilização judaico-cristã em ameaça? A volta de Cristo? É uma diplomacia quase exclusivamente ideológica, com o pé no fundamentalismo. É quase lisérgico.

Netanyahu e Bolsonaro: feitos um para o outro?

Netanyahu é um gênio da política, com uma habilidade impressionante. Além disso é um sujeito culto, com vasta cultura geral. Foi líder da oposição, serviu em postos diplomáticos nos Estados Unidos. É um político de direita, que tem se aproximando perigosamente da extrema direita.

A comparação com Bolsonaro é difícil. O atual presidente do Brasil tem vida política medíocre, demonstra ter pouca cultura e pouca habilidade. Se foram feitos um pro outro é para que Bibi use Bolsonaro politicamente.

Comente esta frase, do chanceler Ernesto Araújo: “podemos facilmente notar que o nazismo tinha traços fundamentais que recomendam classificá-lo na esquerda do espectro político”.

Essa é uma frase negacionista. Ela está na mesma onda da negação do holocausto ou da escravidão. Não é uma critica responsável, produto de reflexão séria. É novamente o uso da história (ou de partes dela) para preencher desejos políticos. Claro que isso não se sustenta, mas o ministro não quer discutir, quer fechar o debate, quer lacrar.

Além disso, quer manter-se fora do espectro político que produziu o genocídio e transportá-lo para o espectro oposto. Para ele a direita e a extrema direita têm a mesma natureza, então se o nazismo é de extrema direita, ele seria do mesmo campo político que o nazismo. Claro que isso é produto de “aulas rápidas de filosofia política”, lidas como horóscopo de jornal: “Se esquerda é ruim e direita é bom, nazismo é ruim, então é de esquerda.”

O que assusta é que abre espaço pra outros negacionismos, certo? Não está confortável com o apoio cristão à escravidão? Então não houve escravidão, ou ela foi feita apenas pelos próprios africanos. Não está confortável com os militares terem produzido a ditadura? Então não teve ditadura. Não está confortável com o Ocidente (tão “querido” e “civilizado”) ter produzido genocídio de judeus? Então não houve holocausto.

É tudo perigoso demais. Será que o negacionismo está virando política de governo? Pergunto isso depois do próprio presidente ter desqualificado o que viu em Yad Vashem, no Museu do Holocausto de Jerusalém. O sujeito saiu de uma exposição que diz que há que se combater a extrema direita porque dela surgiu o nazismo, e diz que o nazismo é de esquerda. Assusta! É um misto de falta de respeito com ignorância. É a desqualificação do trabalho historiográfico do próprio museu. É a ideologização da memória ate o nível mais desrespeitoso. Impressiona. É o momento de historiadores de profissão disputarem essa narrativa, antes que seja tarde.

Como interpretar a visita de um supporter de Brilhante Ustra, declarado torturador pela Justiça, ao Museu do Holocausto?

Em primeiro lugar acho que todos devem visitar o Museu do Holocausto, principalmente os adoradores de Ustra, afinal eles devem aprender que o legado dos direitos humanos e de direito a alteridade vêm no pós holocausto. Ensinar isso para quem já sabe é menos importante. Gostaria que os que apoiam torturadores, ditaduras, fossem visitar os campos de extermínio, fossem aos museus, enfim.

O problema é um adorador do torturador ir ao museu como presidente, mas aí não temos o que fazer. Mas no caso do Bolsonaro, como de amplos setores conservadores, o holocausto é um dado e não produto de um processo. Discursos como o dele possibilitaram a exclusão dos judeus alemães. Suponho que ele não tenha entendido isso na visita.

Como colegas seus da academia israelense reagiram a estas falas?

Meus colegas israelenses têm visto o governo brasileiro com muita preocupação e curiosidade. Ninguém entende ainda como esse elefante subiu na árvore.

O que sei é que as manifestações em Israel contra a presença do presidente contaram com israelenses e não somente com imigrantes brasileiros. O que mostra que Bolsonaro caminha, também em Israel, para ser uma agenda internacional. De repúdio, mas é uma agenda internacional. Já é alguma coisa, certo?

O que lamentar no Muro das Lamentações?

Olha, a visita ao lugar mais sagrado dos judeus foi parte da campanha eleitoral de Bibi e um aceno de Bolsonaro ao público evangélico. Aqui temos o estrito uso político de um lugar sagrado, o que já é lamentável. Mas isso pode ter consequências. Mais uma vez, o governo ignora a tradição diplomática brasileira e estabelece uma prática teológica política nas relações internacionais do país. Ir ao Muro das Lamentações e não ir à mesquita que fica a dois passos – não ir à Palestina, aliás –  pode causar problemas para a diplomacia brasileira e para os mercados do país.

Faz sentido mudar a embaixada para Jerusalém? 

Faz, para evangélicos faz, por fazer parte de um plano divino de retorno de Cristo. Para a extrema direita faz, porque Jerusalém serve como barreira para e expansão de um oriente imaginário. Para o governo de Israel faz, porque ele quer construir a ideia de Jerusalém indivisível. A pergunta é se faz sentido para o Brasil, para seus interesses pragmáticos e econômicos? Aí diria que não. Que não faz sentido e é perigoso para os interesses do país.

Por que esta fixação de Bolsonaro com Israel?

Não é fixação com Israel, é aproximação com  grupos que lidam com uma Israel imaginária e não com Israel real. A Israel deles está vinculada com demandas especificas e afinidades ideológicas. Assim a fixação de Bolsonaro é com Israel armado, mas ele ignora Israel LGBT. Bolsonaro gosta da Israel conservadora e religiosa, mas ignora a Israel das drogas.

Enfim, Bolsonaro é aficcionado a si próprio, ou às bandeiras de grupos próximos, Israel real é apenas um detalhe que atrapalha.

Edir Macedo veste kipá e talit

Então, essa kipá e esse talit (solidéu e xale usados nas preces religiosas) são elementos cristãos que usam o judeu imaginário. É apropriação cultural mesmo. Aliás, veja que as relações que Macedo busca têm mais a ver com o judaísmo sacerdotal do que com o judaísmo moderno. Ele é um sacerdote. Tenta ser, claro. Narciso acha feio o que não é espelho, então setores da comunidade judaica acham que ele é aliado, mas novamente as demandas são deles. Judeu imaginário, Israel imaginária. Jerusalém imaginária, templo imaginário, há um fuso horário com a realidade.

Macedo fala sobre o que é importante pra ele, não sobre o que é importante para o judeu real. Não há judeu secular, progressista, há apenas judeus que são reconhecidos como tal por Macedo. O templo não é o de Jerusalém, que já foi, mas o de Jerusalém que será, na suposta volta de Cristo.

Bolsonaro contou com apoio significativo da comunidade judaica no Brasil. O que explica este apoio?

Primeiramente, segundo pesquisas especificas, o apoio dos judeus a Bolsonaro está no campo dos 60%, abaixo do apoio que ele teve nas classes A e B, basicamente o recorte populacional representado pelos judeus brasileiros. Assim, pode-se dizer que os judeus votaram menos em Bolsonaro do que seus vizinhos.

A pergunta que devemos fazer é como a elite econômica brasileira votou em um candidato que despreza tanto a democracia e que tem um discurso tão violento? Mas aí é outra questão.

Sobre os judeus, há uma visibilidade excessiva porque judeus vinculados a posições mais conservadoras votaram em Bolsonaro e estes são mais visíveis do que judeus mais integrados. Mas não se deixe enganar. Mesmo com todos os símbolos pró-Israel e judaísmo do candidato, foi no seio da comunidade judaica que ocorreu a maior ruptura por conta de Bolsonaro.

Me refiro à palestra no clube Hebraica do Rio, quando um grupo grande de judeus (muito deles de movimentos sionistas) organizaram uma manifestação ruidosa contra a presença dele. A ruptura entre esses grupos pró e contra Bolsonaro permanece até hoje, o ethos de “unidade” construído por anos na comunidade ruiu, foi por água abaixo, em praça publica. Isso mostra oposição dentro da comunidade.

A impressão que tenho é que tanto no Brasil como em Israel, o campo progressista de direita ou esquerda moderada, ficou muito restrito. Amós Oz vai fazer falta.

Não sei, no Brasil houve uma candidatura do campo progressista que foi pro segundo turno. Em Israel há uma eleição disputadíssima onde Bibi Netanyahu pode perder o poder. Claro, são apenas expressões eleitorais. Mas elas podem demonstrar alguma coisa. O que eu acho é que tanto lá como aqui, uma extrema direita parece exigir a realização de uma guerra cultural contra quem não é como ela. Ela é mais barulhenta, mas há reações. Quem parece ter se enfraquecido é a direita liberal. O que é muito preocupante. Amós Oz? É, sempre faz falta alguém como ele, mesmo se vivesse até os 150 anos, mas ele deixou sua obra, ela está aí à disposição de todos.

Existe apartheid em Israel?

Dizer que há apartheid em Israel é absurdo tanto como dizer que o nazismo é de esquerda. Interessa dizer isso para grupos ideológicos definidos. O problema é que isso pega.

Há ocupação nos territórios palestinos conquistados em 1967. Essa ocupação tem que acabar e há necessidade de um Estado Palestino neles. Segundo pesquisas, 70% da população israelense acha isso, inclusive os árabes desse país que tem ao menos 4 partidos no parlamento e são força política fundamental contra o fortalecimento da extrema direita.

Dizer que há apartheid em Israel é desconsiderar esses cidadãos. Além de ser falso é falta de respeito a eles e a uma esquerda que está em Israel lutando pela manutenção do perfil democrático do Estado.

Com a visita de Bolsonaro a Israel, veio à tona o caráter anti-semita da ditadura brasileira. Poderia discorrer a respeito?

Na verdade já na campanha quando Bolsonaro resolveu falar sobre o assassinato do Vladimir Herzog e citou a famosa frase de Giesel (“essa gente se suicida mesmo”). Mas não podia ser diferente, um regime racista, homofóbico e machista, também tinha que ser anti-semita. E era. Mas como eu disse, isso ficou claro na campanha, só não viu quem não decidiu ver, ou você acha que o discurso das minorias (“aceitem ou desapareçam”) passou desapercebido? É um discurso típico do anti-semitismo do século XX. Aliás, o discurso que leva em conta apenas o judeu imaginário, monolítico, também é anti-semita.

Isso já estava claro antes da vitória, não foi uma surpresa. Vladimir Herzog foi um símbolo de que Bolsonaro era não apenas um representante da ditadura hoje, mas era um representante de seus porões, e seus porões eram anti-semitas e racistas.

Como o sionismo de raiz dialoga com Bolsonaro?

Olha quem dialoga com Bolsonaro é um sionismo de extrema direita, considerado por muitos estudiosos como neo sionismo, ou seja, não somente não é o sionismo de raiz como já teria deixado de ser sionismo. É mais uma representação da extrema direita que incorpora o discurso da Israel imaginária. O que ocorre (principalmente no Brasil) é que esses grupos de extrema direita que se reivindicam sionistas são na verdade mais próximos de um discurso ultra conservador do que de um discurso de sionismo de raiz. Ele olham para a esquerda sionista por exemplo como inimiga, e para os neopentecostais pró Israel como aliados. Há um discurso de conversão e desconversão.

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Veja também depoimento gravado por Michel Gherman, postado na página do Instituto Brasil-Israel – IBI:

https://www.facebook.com/institutobrasilisrael/videos/342559939706640/

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