Rejeitos de Brumadinho chegam ao São Francisco e autoridades ainda não têm plano

Poderes municipais, estadual e federal ainda não sabem o que fazer para proteger o Velho Chico e as comunidades

Vinícius Sobreira, Brasil de Fato

No último dia 25 de janeiro, quando a barragem de Córrego do Feijão rompeu e devastou Brumadinho, poucos perceberam que o crime e a lama poderiam afetar a região Nordeste do país. Mas não tardou até que os rejeitos de minério matassem o rio Paraopeba, afluente do São Francisco em Minas Gerais, comprometendo a vida vegetal e animal na zona de mata atlântica, e seguissem em direção ao Velho Chico.

No dia 22 de março a Fundação SOS Mata Atlântica divulgou relatório informando que entre os dias 8 e 14 de março o alto São Francisco já apresentava grande concentração de ferro, cobre, cromo e manganês, tornando a água imprópria para o uso da população. Segundo os pesquisadores, em alguns trechos no início do rio a água está visivelmente turva. Em entrevista ao site El País Brasil a pesquisadora Malu Ribeiro, da Fundação SOS Mata Atlântica, afirma que há “trechos com perda de fauna aquática e desaparecimento das aves que viviam no entorno”.

A camada espessa da lama tóxica foi contida ainda na barragem de Retiro Baixo e parte dos minérios estão se sedimentando no fundo do rio antes mesmo da barragem de Três Marias, ambas em Minas Gerais. Mas os minérios finos conseguem passar pelas represas, que seguem funcionando apesar da água escura. “A lama grossa, que chamam de ‘pluma’, ficou contida em Retiro Baixo. Mas a lama fina está passando pelas turbinas e a bacia do São Francisco já está sendo contaminada”, atesta Carine Guedes, integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em Minas Gerais, que mora próxima ao São Francisco. “Mesmo que fechassem as represas e os rejeitos fossem contidos, em algum momento as comportas teriam que ser abertas”, avisa.

Carine diz que não está mais em questão se os rejeitos chegarão ou não às cidades que margeiam o Velho Francisco, mas quando eles chegarão. “Nem nós, nem os pesquisadores, nem a Vale temos como prever. Não sabemos a quantidade de minérios ou o dia em que chegará, mas o provável é que os rejeitos cheguem em todo o curso do rio”. Ela avisa, no entanto, que a contaminação não deve ser com a mesma força que ocorreu no Paraopeba. “O volume de rejeitos não terá a mesma concentração, porque a massa de água do São Francisco é muito maior. Mas isso não significa que estamos livres da contaminação. Ela chegará à nossa água, nosso alimento e pode afetar nossa saúde”, lamenta. “A cor do rio não mudou em alguns trechos e alguns ribeirinhos continuam utilizando a água do rio. Mas é um envenenamento a conta-gotas”, completa Malu Ribeiro ao El País.

A vereadora Cristina Costa (PT), de Petrolina, integra uma comissão de parlamentares que têm se voltado para o tema. Ela e o vereador Ronaldo Souza (PTB) visitaram Brumadinho e cidades da região no curso do Paraopeba e alto São Francisco, estudando os impactos sociais, ambientais e econômicos causados pelos rejeitos, além de buscar informações com autoridades mineiras e com a própria Vale. “As cenas são muito tristes pela devastação causada na natureza e na sociedade. A lama estraçalhou corpos, deixou famílias sem seus entes queridos e o rio Paraopeba está morto, com a margem do rio completamente preta”, recorda a vereadora.

Após a incursão, Costa trouxe para o estado amostras de água para serem estudadas na Universidade do Vale do São Francisco (Univasf) e na Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, que possui um centro de pesquisa ecorregional em Petrolina), numa tentativa de pensar maneiras de reduzir o impacto dos minérios. “Nossa preocupação não é Petrolina ser reconhecida como atingida, mas unir forças para impedir a contaminação no nosso trecho. O São Francisco é a sobrevivência dos pescadores”, diz Cristina.

O deputado estadual pernambucano Lucas Ramos (PSB), natural de Petrolina, coordena a Frente Parlamentar em Defesa do Rio São Francisco e conta que o grupo de deputados tem buscado informações sobre os possíveis impactos ao longo do Velho Chico. “As famílias de agricultores, que geram a maior parte dos alimentos consumidos por nós, dependem das boas condições do São Francisco”, alerta Ramos. O deputado lembra ainda que o turismo ecológico é forte na região, tendo como principal atrativo o rio.

O parlamentar também alerta que a contaminação tende a afetar a principal atividade econômica da região: a fruticultura. “Além da água que consumimos em casa, tem a questão da irrigação agrícola, com 200 mil postos de trabalho que dependem diretamente do São Francisco”, diz Lucas Ramos. A vereadora Cristina Costa também teme possíveis impactos para os trabalhadores da fruticultura. “A poluição pode afetar a qualidade das frutas. Tomara que não usem mais agrotóxicos na tentativa de conter os metais nas frutas. Isso compromete a qualidade do alimento e a saúde dos trabalhadores do ramo. Já temos um índice alto de câncer na região”, completa.

No último dia 28 de março a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) divulgou nota técnica confirmando a chegada dos rejeitos de minérios ao alto São Francisco. A Fundaj vem monitorando o curso da lama através de imagens capturadas por satélites. Os pesquisadores usaram um algoritmo para calcular a diferença de energia eletromagnética refletida pelo rio a cada período de tempo, permitindo detectar a contaminação que não está visível aos olhos humanos. Pelos cálculos da Fundaj os rejeitos chegaram ao São Francisco no dia 12 de março. Carine Guedes, do MAB, esteve no Recife para acompanhar os estudos apresentados pela Fundaj. “Importante termos esses laudos independentes, que não passam pelas mãos da Vale”, afirma.

A falta de informações tem sido uma violação extra por parte do poder público e da Vale contra as pessoas que já foram atingidas ou estão no caminho dos rejeitos de minérios. “Não existe qualquer nota da Vale sobre a chegada dos minérios ao São Francisco. A empresa mantém essas informações”, se queixa Carine Guedes. Segundo a militante do MAB, a população mineira tem buscado informações principalmente através do Ministério Público e do movimento. “Boa parte do PIB (Produto Interno Bruto) de Minas Gerais vem da mineração. Então existe uma articulação da Vale por dentro dos municípios e do próprio estado”, lamenta Guedes, que aponta concentração de informação nas mãos da Vale e a dificuldade criada para os atingidos terem acesso a dados importantes. “Se quem tá próximo de onde ocorreu o crime já tem dificuldades de ter informações oficiais, imagine quem está mais distante”, alerta.

O deputado estadual Lucas Ramos (PSB) também se queixa quanto aos posicionamentos oficiais. “As pessoas estão inseguras, com pouca informação e há um sentimento de completo abandono por parte do poder público”, diz o deputado, que lembra ainda que o Ministério do Desenvolvimento e Interior chegou a negar que o São Francisco estivesse contaminado. O discurso foi repetido pela Agência Nacional de Águas (ANA) e Ibama. A vereadora Cristina Costa (PT), que foi até a Vale buscar informações, sentiu as dificuldades na pele. “A usina de Três Marias pertence a Cemig (empresa estatal de energia de Minas Gerais) e eles não estão permitindo o acesso a informação. A relação se dá apenas entre a Vale e o Governo de Minas. Os municípios estão sendo deixados de fora e a população está tentando se mobilizar para receber indenização”, lembra a vereadora.

Costa se disse chocada com o domínio que a empresa Vale exerce sobre o poder público em Minas Gerais. “Quem administra Minas Gerais é a Vale. Os órgãos estão todos juntos num clube: Ibama, Ministério Público e outros – mas a Vale é quem manda. É ela quem atende aos atingidos”, conta Cristina. “A menina dos olhos de Minas Gerais não é o Paraopeba, não é o São Francisco, mas a Vale. Eles estão preocupados de verdade em proteger a Vale. Mas nós não. Aqui temos que proteger o São Francisco”, resume. Mas ela insiste na busca para que as cidades possam se preparar para conter o impacto dos rejeitos. “Precisamos receber esses dados para fazermos o acompanhamento”, diz a vereadora. O rio São Francisco passa por cinco estados brasileiros e banha mais de 500 municípios. Em Pernambuco, municípios do sertão como Petrolina, Lagoa Grande, Santa Maria da Boa Vista, Cabrobó, Belém do São Francisco, Floresta, Petrolândia e Jatobá estão no curso do rio e podem ser afetados em maior ou menor medida pela contaminação por rejeitos de minérios de Brumadinho.

Uma das formas de trocar informações, reunir os órgãos e levar o tema para a imprensa e para a população é a realização de debates abertos. Com esse objetivo estão sendo agendadas para o mês de maio audiências públicas para apresentar informações e pensar um plano de ações que reduzam os impactos de uma contaminação do Velho Chico. “Temos que fazer debates públicos sobre isso em escolas, igrejas, praças e câmaras municipais para divulgarmos essas informações. Temos que acompanhar sem pânico, mas trazendo verdade para a população”, sugere Carine Guedes. Na primeira semana de maio a audiência pública será no Recife; no dia 17 de maio as cidades de Cabrobó (pela manhã) e Floresta (à tarde) também terão audiências sobre o tema. Nos próximos dias deve ser confirmada uma audiência também em Petrolina. Os debates estão sendo promovidos pela Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) em parceria com as câmaras de vereadores de cada cidade.

O Brasil de Fato fez contato com a Prefeitura de Petrolina, mas até o fechamento desta matéria o executivo municipal não deu respostas. Mas através das redes sociais, em resposta a questionamentos de cidadãos sobre a ausência de informações sobre o tema, o perfil oficial do prefeito Miguel Coelho (PSB) afirmou que a prefeitura tem intensificado a medição da qualidade da água e de a entender que sim, a cidade será afetada. “Todos os municípios no curso do São Francisco e dos demais rios por onde a lama passou são vítimas do grave crime de Brumadinho. Estamos sujeitos a esse desastre, assim como as demais cidades afetadas”, escreveu.

Quanto a possíveis medidas para reduzir os impactos dos rejeitos, Coelho deu uma resposta mais resignada. “Infelizmente Petrolina não tem como consertar o erro acontecido em Minas Gerais, visto que nem o Governo Federal ou a Vale conseguiram. Manteremos nossa fiscalização contínua no rio, mas nós enquanto Prefeitura não temos muito o que fazer”, pontuou. Buscado pelo Brasil de Fato, o Governo de Pernambuco seguiu a mesma linha de não tomar a responsabilidade para si. Através da Agência Pernambucana de Águas e Clima (APAC), o Governo do Estado afirmou que “a gestão das águas do rio São Francisco é feita pela ANA. O Governo do Estado participa de reuniões periódicas com a Agência”, resumiu. Contatada pelo Brasil de Fato, a ANA respondeu que não tem dados para confirmar que o São Francisco esteja contaminado. A agência solicitou à Vale que sejam instalados novos pontos de monitoramento da água, mas o foco prioritário tem sido o rio Paraopeba, cujos dados têm sido divulgados pelo Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM), pertencente ao Governo de Minas Gerais.O BdF também contatou a empresa Vale para esclarecimentos, mas não obtivemos respostas.

A vereadora Cristina Costa (PT) considera que os estados do Nordeste precisam se organizar e pressionar o Governo Federal e o Governo de Minas Gerais para que seja adotada uma legislação mais rígida para barragens de mineração. “Os governantes do Nordeste precisam se unir em defesa do São Francisco. Bahia, Pernambuco, Sergipe, Alagoas e Paraíba somos banhados pelo São Francisco”, cobra a parlamentar. “Se os estados precisarem comprar água mineral vai ficar muito caro. É preciso ‘ir para cima’ do Governo Federal. Eles têm estrutura lá em Brasília, mas cedem ao assédio da Vale”, avalia. O deputado Lucas Ramos (PSB) concorda. “Pernambuco não possui nenhuma barragem de minério e isso não deveria ser uma preocupação do nosso estado. Mas Minas Gerais tem uma grande quantidade de barragens e uma acidente lá repercute no Nordeste”, lembra. “Não podemos só esperar Minas tomar uma decisão. Temos que pressionar. É inadmissível esperar novos acidentes para fazer mudanças”, cobra Lucas Ramos.

Edição: Marcos Barbosa.

Imagem: Rio São Francisco passa por cinco estados e mais de 500 municípios / Vinícius Sobreira/Brasil de Fato

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