“Meu amigo Trump me ensinou”

Bolsonaro buscou inspiração nos EUA para orientar seus primeiros 100 dias de governo e implantar um projeto neofascista onde o presidente eleito é o principal inimigo da democracia e das políticas públicas

por José Roberto Cabrera, em Outras Palavras

A eliminação dos 35 Conselhos e órgãos Colegiados pelo governo federal revela um ódio à democracia e à participação popular, que vai muito além de um distúrbio autoritário do ex-capitão, é o seu projeto de governo e de Estado.

A família Bolsonaro ultrapassou os 100 dias de governo. Esse é um período adequado para se fazer um balanço inicial dos caminhos escolhidos pelo presidente e seus aliados e de suas possíveis consequências.

Embora exista ainda alguma perplexidade diante das escolhas na composição do governo e das desconexões dos discursos, em especial por terem mais de 140 caracteres, Bolsonaro mostra-se coerente com sua história, com sua visão sobre política e seu projeto para o futuro. Ele faz no governo exatamente o que ele disse que iria fazer e é o significado disso que devemos buscar nessa trajetória.

A influência de um astrólogo preso em preconceitos e arrogâncias medievais, o pacto construído com os líderes neopentecostais e as ligações com as milícias complementam, de forma grotesca, o caminho escolhido pelo capital financeiro para contornar a crise de acumulação vigente.

Entre as expectativas do mercado e o mundo real de Bolsonaro existe um cânion quase intransponível. O discurso ideológico se impôs sobre o pragmatismo do mundo dos negócios enquanto a diplomacia brasileira, construída ao longo de décadas pelo Estado brasileiro, sucumbe diante das incertezas produzidas por um governo que afirma sua intenção de desconstruir e de votar na ONU orientado pela Bíblia.

O capital financeiro hegemônico e seus aliados fizeram uma escolha para garantir a manutenção do fluxo de recursos em direção ao topo da pirâmide. A figura do capitalista empreendedor, gerador de emprego e renda, cuja riqueza derivava do setor produtivo foi substituída pela do rentista, o qual se apropria dos recursos públicos através da dívida pública, se beneficia de mecanismos de isenção, de transferência de capital para paraísos fiscais e depende fundamentalmente de um Estado submetido ao mercado.

Como a economia real não tem dado mostras de recuperação, mantendo níveis baixos de retorno, exceção feita a poucos setores e regiões do planeta, a pilhagem da sociedade via Estado garante a transferência líquida, num fluxo contínuo, para os mais ricos e exige que, para isso, os governos mantenham políticas austeras, com cortes de programas sociais e direitos, e remunerem bem ao capital. Esse é o papel de Paulo Guedes.

A proposta de “Reforma” da Previdência, os cortes anunciados em áreas estratégicas, a proposta de desvinculação dos gastos públicos prevista na Constituição e a paranoia com as privatizações são reflexos desse movimento, o qual não admite sequer o debate acerca da racionalidade econômica, dos efeitos sociais e dos procedimentos democráticos que envolvem transformações desse quilate.

A inspiração em Trump revela o quanto o governo de Bolsonaro pactua com esse modelo dominante, que nem lá o Obama, nem cá o Lula e a Dilma conseguiram ou tentaram enfrentar.

Essa ligação com Trump pode revelar mais coisas do que podemos imaginar. O professor John Bellamy Foster escreveu um livro sobre os 100 dias do governo Trump chamado Trump in the White House, Tragedy and Farce1. Nele, Foster define aquilo que chama de um projeto neofascista para os Estados Unidos onde o presidente desempenha papel fundamental no ataque à democracia e às políticas identitárias construídas no governo anterior.

Nos Estados Unidos, a extrema direita inspirada, entre outros, por Steve Bannon, o mesmo que auxiliou a eleger Bolsonaro por aqui, defende, além da agenda ultraliberal, uma cruzada na defesa da tradição judaico cristã e o combate a qualquer política igualitária. Para implementar esse projeto Foster identifica uma espécie de Gleichschaltung2 de Trump, promovendo ajustes no aparelho de Estado com vistas a garantir um alinhamento das instituições às premissas ideológicas de seu governo, tal qual o movimento feito pelos nazistas em 1934.

Embora existam similaridades quanto à construção do discurso fascista3, no campo das medidas econômicas o eixo de aproximação é incrível. A crise econômica de reprodução do capital nos anos 1930 impeliu um ajuste de força sobre os trabalhadores, garantindo formas de ampliação da reprodução com uma participação ativa do Estado. Na crise atual, o Estado não apenas promove cortes, como amplia as formas de controle sobre a força de trabalho e suas organizações. A proteção da propriedade se põe em primeiro plano. “Como Mussolini declarou: ‘O regime fascista não tem intenção de nacionalizar, ou pior, burocratizar toda a economia nacional é o suficiente para controlá-lo por meio de uma disciplina através das corporações … As corporações fornecem a disciplina e o Estado somente assumirá os setores relacionados à defesa, à existência e à segurança da pátria. Hitler também declarou: “Defendemos a manutenção da propriedade privada … Nós protegeremos a livre iniciativa como a mais conveniente, ou melhor, a única ordem econômica possível”.(Foster, 26)

Baseados num eleitorado branco, de classe média baixa, com amplo espectro evangélico, muito similar com aquele que deu suporte ao nazismo, Trump mobiliza forças em torno dos interesses do capital dirigido por um discurso patriótico. As primeiras medidas contrárias aos imigrantes e aos acordos comerciais ou climáticos definem uma parte do projeto, o qual ainda incorpora a misoginia, a homofobia e o racismo, mecanismos de transferência de renda para os 1% mais ricos via Estado e a apropriação de bens comuns, num processo descrito, por David Harvey, de acumulação por espoliação, em especial aqueles relacionados às populações originárias.

Um dos primeiros embates do governo Trump foi garantir que o Judiciário lhe desse suporte, no caso das deportações em massa e da prisão de crianças. Embora o processo fosse um tanto quanto diferente do nosso, as aproximações são contundentes. Por exemplo, lá ele trabalha para qualificar o movimento negro Black Lives Matter como organização terrorista.

Ainda que as políticas ambientais dos governos do Partido Democrata não fossem respeitáveis em termos ambientais, Trump não perdeu tempo em eliminá-las. Não foi apenas a saída do tímido Acordo de Paris, mas a promoção de cortes substantivos no orçamento e a garantia da presença dos negacionistas do aquecimento global, financiados pelo lobby da indústria dos combustíveis fósseis, nas principais agências ambientais.

Além de abandonar o Conselho de Direitos Humanos da ONU, os órgãos de controle social sobre educação e meio ambiente foram esvaziados, assim como as políticas de privatização passaram a ser conduzidas dentro de uma perspectiva financeira missionária. Conforme a bilionária empresária educacional e ministra de Trump, Betsy DeVos afirma “que, ao privatizar as escolas, nosso desejo é confrontar a cultura de maneira a continuar avançando no Reino de Deus”. (Foster, 39)

Assim como aqui, toda a resistência e crítica foi tratada com dureza. Em Berkeley, uma manifestação contra a presença de Milo Yannopoulos, um supremacista branco, misógino aliado de Bannon e apoiador de Trump, produziu um tweet ameaçando cortar fundos federais para a instituição, ao mesmo tempo que anunciava a criação de um “Professor Watchlist” para monitorar professores ‘perigosos’.

Amparado pelos esquemas da pós-verdade, Trump ataca as empresas da mídia tradicional que lhe critica, conclamando seus apoiadores ao boicote e chamando-as de mentirosas e de “inimigas do povo americano”.

Nesses quase dois anos suas políticas produziram uma maior concentração de riqueza, do qual é beneficiário, assim como diversos membros de seu governo.

Esse neofascismo fez escola. Embora não seja exatamente uma cópia, o governo Bolsonaro tem uma inspiração que orienta seus primeiros passos.

Por exemplo, na política externa, se é correto afirmar que tenhamos uma, a postura do governo em relação ao Mercosul, ao mundo árabe, à China e à Ásia indicam que o caminho escolhido, a despeito dos efeitos econômicos, políticos e estratégicos atingidos, está amparado nas premissas dos teóricos do extrema-direita americana em sua cruzada Judaico Cristã.

O esvaziamento dos Conselhos Federais, das Agências Reguladoras, as demissões do pessoal técnico administrativo, os questionários aplicados por diversos órgãos do Estado, o conluio com as estruturas da Lava-Jato e do Judiciário, a MP 873 que ataca as finanças dos sindicatos, como continuidade da Reforma Trabalhista de Temer, as mudanças propostas na legislação ambiental, flexibilizando as multas, a desestruturação da FUNAI, a indicação de militantes de extrema direita no ministério da educação, o controle dos ruralistas na liberação dos agrotóxicos e seu ataque sistemático sobre os indígenas e quilombolas, entre outras medidas, revelam um conteúdo que os tweets não revelam.

Enquanto o planeta queima e enfrenta os efeitos do aquecimento global e a desigualdade aumenta, existe um projeto de consolidação de uma estrutura capaz de manter controle sobre o trabalho, as organizações dos trabalhadores, as estruturas do Estado de modo a garantir, nessa fase monopolista do capital financeiro, a reprodução ampliada da transferência de capital via Estado para os mais ricos, mesmo que para isso as instituições pereçam. As milícias, a Damaris, o Olavo de Carvalho fazem parte desse projeto.

1 Foster, John B. – Trump in the White House: Tragedy and Farce, New York: MR Press, 2017.

Gleichschaltung refere-se ao movimento de alinhamento ou sincronização feito pelos nazistas para submeter todas as instituições do Estado alemão

3 Ver “America First”, discurso de posse de Donald Trump, disponível em www.valor.com.br/internacional/4843344/america-first-leia-integra-do-discurso-de-posse-de-trump

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