Um país tropical – e individualista?

Seminário debate recente pesquisa da Oxfam Brasil, que aponta preocupação dos brasileiros com as desigualdades. Conclusão é que o Estado mínimo, defendido pelo governo Bolsonaro, é rechaçado: o povo quer mais políticas públicas e justiça social

Por Inês Castilho, em Outras Palavras

“As coisas só mudam quando deixam de ser vistas como naturais. Assim foi com a escravidão, assim foi com a proibição do voto das mulheres”. E assim poderá ser agora com a desigualdade.

As afirmações entre aspas são do conselheiro Oded Grajew, da Oxfam Brasil, no seminário Nós e as Desigualdades, sobre pesquisa realizada pela organização internacional. A diretora executiva Katia Maia abriu o evento que debateu os resultados do estudo no Tucarena da PUC, em São Paulo, semana passada (dia 9), dirigindo-se a uma plateia de 300 pessoas e organizações.

“Só avançaremos no combate às desigualdades se os temas do racismo, da discriminação de gênero e do respeito à diversidade, da discriminação pelo endereço de moradia, do assassinato de jovens de periferia, tiverem a mesma urgência que os temas econômicos e fiscais”, afirmou.

Conforme a pesquisa, a segunda realizada sobre o tema pela Oxfam Brasil em parceria com o Datafolha (a primeira foi em 2017), quase 9 em cada 10 brasileiros pensam que só haverá progresso no Brasil se houver redução da desigualdade entre muito pobres e muito ricos – e para isso é necessária a intervenção do Estado. A ideia de um Estado mínimo, defendida pelos que hoje ocupam o poder, é claramente rejeitada: brasileiras e brasileiros revelam grande senso de solidariedade social.

A consciência da desigualdade interseccional, de gênero, raça e classe aparece com força na pesquisa. A composição de debatedores nas mesas do seminário, com significativa maioria de mulheres negras, já sinaliza a mudança.

A mesa Desigualdades no Imaginário Brasileiro, mediada pela coordenadora de programas da Oxfam Brasil Tauá Pires, contou com a pesquisadora Esther Solano, o documentarista Henry Grazinolli e o professor Jailson de Souza e Silva, diretor da Universidade Internacional das Periferias. O debate sobre Políticas Públicas para Redução de Desigualdades deu voz à economista Luana Passos, à cientista política Marta Arretche e à jornalista Flávia de Oliveira, da Globonews e da rádio CBN, com mediação da jornalista Adriana Couto, da TV Cultura. Abrir caminho na mídia tradicional para as causas sociais foi um dos caminhos apontados para reduzir as desigualdades.

O seminário foi concluído com uma teatralização do candomblé encenada pelo grupo Acústica Periférica, formado por coletivos que integram o projeto Juventudes nas Cidades, da Oxfam Brasil. Deu lugar assim a outra linguagem na comunicação – e outra geografia da razão, como diz Djamila Ribeiro. A propósito, foi lembrada por Tauá Pires a presença na plateia de Richard, um dos autores do samba-enredo da Mangueira – política em forma de teatro monumental.

Imaginário brasileiro

Como aparecem as desigualdades no imaginário brasileiro, e quais suas consequências? Quais políticas públicas podem reduzi-las no Brasil, um dos 10 países mais desiguais do mundo? O que se espera do governo e do Estado na redução das desigualdades? Estas são as perguntas que estavam sobre a mesa.

“O simbólico institui o real”, observou de saída o educador Jailson de Souza e Silva, reafirmando a importância do campo das representações e da disputa de narrativas. “Não há pobres, mas pessoas empobrecidas e pessoas enriquecidas por um sistema que transfere riquezas da sociedade através de políticas tributárias e de crédito, alocação de equipamentos e serviços. Uma estrutura de reprodução sistemática da desigualdade pelo aparato do Estado e do mercado, que naturalizam as desigualdades e transferem as mudanças para os indivíduos”, afirma Jailson.

As pessoas têm mais consciência da pobreza do que da desigualdade, diz ele, e as soluções precisam vir também das periferias, onde os sujeitos são potentes e não somente vítimas. “Mostrar a favela como alegria, beleza e invenção, criatividade, vida e intensidade – além de dor e violência. Criar novas narrativas a partir dos protagonistas”, afirma.

A importância de dialogar com pessoas comuns, para além dos grupos convertidos, e para isso usar outras formas narrativas, tais como o audiovisual, foi lembrada pelo documentarista Henri. “Contar histórias é uma grande ferramenta no processo de comunicação”, disse ele, sobre a necessidade de transformar números em comunicação emocional. “Contar histórias individuais, sem contudo deixar de lado o estrutural politizado”, considerou Esther Solano.

Pesquisadora de grupos conservadores, Esther lembrou que a questão da linguagem é fundamental na ampliação do diálogo “Não pode ser simplista e infantilizadora, mas também não elitista”. Ressignificar conceitos como feminismo, falando em autonomia e direitos humanos, ou tratar o aborto como questão de saúde pública são exemplos de como isso pode ser feito. “O campo progressista tem estigmatizado, deslegitimado interlocutores válidos”, avalia.

O estudo revelou que uma maioria da população concorda que gênero (64%) e raça (52%) impactam na renda; que a cor da pele influencia na contratação por empresas (72%) e na decisão de uma abordagem policial (81%), e que a justiça é mais dura com negros (71%); e discorda que mulheres devam dedicar-se somente a cuidar da casa e dos filhos, e não trabalhar fora (86%).

A economista Luana Passos ressaltou a importância de políticas públicas de cuidado para enfrentar as desigualdades interseccionais, o cruzamento de vulnerabilidades de classe, gênero e cor – que têm no centro as mulheres negras. “As mulheres têm menos tempo para dedicar ao trabalho assalariado, porque têm de cuidar das crianças e dos idosos, pois não há creches nem pré-escolas, nem políticas para os idosos. Os direitos igualitários não são cumpridos, daí a necessidade das políticas afirmativas”.

Reforma tributária

Segundo o estudo, estamos maduros para uma reforma tributária do sistema regressivo vigente no Brasil, em que os pobres arcam com o peso maior dos impostos. O estudo da Oxfam revela que 77% concordam com o aumento dos impostos de pessoas muito ricas para financiar políticas sociais (eram 71% em 2017); e 94% concordam que o imposto pago deve beneficiar os mais pobres.

Combater os privilégios fiscais do Imposto de Renda, taxar as grandes fortunas (como diz a Constituição) e acabar com a isenção de lucros e dividendos de pessoas físicas teria um impacto grande, diz Luana. A cientista política Marta Arretche concorda: “A isenção de imposto sobre os dividendos é um enorme fator de desigualdade, só existe no Brasil e na Lituânia. Aumenta as desigualdades e reduz a arrecadação em 40 bilhões de dólares.”

Marta ressaltou a importância das políticas redistributivas adotadas entre meados dos anos 90 e 2015. “Elas foram muito importantes, e estão sob ataque”, lembrou. “O que tem sustentado famílias nesses tempos de crise são as aposentadorias e pensões. A política de aumento do salário mínimo foi importante tanto para o crescimento quanto para evitar o aprofundamento social da crise. O SUS contribuiu para corrigir as desigualdades em saúde. A população universitária tem hoje maioria feminina. A grande dívida é com os não brancos, os pardos e negros, e as políticas afirmativas tiveram um papel nisso. Estamos perdendo a disputa dessa narrativa”, disse.

Outra narrativa cuja disputa estamos perdendo, aponta Esther Solano, é a da responsabilidade do Estado. “As pessoas querem Estado, isso ficou evidente nas respostas sobre universalização dos serviços de educação e saúde, mas nós estamos perdendo a narrativa com o público. A narrativa que está vencendo é a do Estado mínimo, da individualização e do mérito”.

Entre as prioridades para a redução de desigualdades, o combate à corrupção recebeu nota 9,7, quase a mesma que os 9,6 de investimento público em saúde e educação, aumento da oferta de emprego e aumento o salário mínimo.

“O pior impacto da corrupção, em nossa opinião, mais do que o desvio em si, é o efeito que ela tem na confiança das pessoas em relação às instituições públicas. Como ninguém quer o que está aí porque todo mundo é corrupto, ninguém acredita no papel do SUS, ninguém acredita no papel das universidades públicas porque ‘é um bando de doutrinador e está tendo desvio’, e ‘o SUS não funciona, é uma porcaria’. Reforça-se uma narrativa de que o sistema público todo é um erro. Isso é um grande problema porque as pessoas, ao mesmo tempo, dependem desse sistema”, considera o cientista político Rafael Georges, coordenador de projetos da Oxfam Brasil, em entrevista à Publica.

Fé e mérito

Outro resultado, talvez inesperado, foi a presença da fé, ao lado do acesso a estudo e saúde como prioridades para uma vida melhor, para 2 em cada 3 brasileiros. “O campo progressista ainda não entendeu a importância da fé na organização das subjetividades”, alerta Marta. “Ouve-se pouco as igrejas, precisamos trazê-las para o lado progressista”, atenta Luana. “A esquerda está perdendo essa oportunidade. O cristianismo prega amor, não violência e desigualdade”.

A questão da meritocracia gerou um debate acalorado: as desigualdades podem ser superadas por mérito individual ou é necessária a presença do Estado? O estudo da Oxfam mostra dados aparentemente contraditórios. Revela que 49% das pessoas concordam que uma criança pobre que estuda tem as mesmas chances que uma criança rica que estuda – na pesquisa de 2017 eram 43%. Ao mesmo tempo, mostra que 84% concordam ser obrigação dos governos reduzir a diferença entre muito ricos e muito pobres – em 2017 eram 79%. E que 75% apoiam a universalidade do ensino público fundamental e médio, assim como 73% defendem o atendimento universal em postos de saúde e hospitais.

“Hoje, as pessoas lutam com uma corrente que vai contra elas: a corrente das três horas no ônibus, da mulher ter que cuidar sozinha do idoso e das crianças, da casa etc. Se o Estado de fato atua para tirar essa contracorrente e equalizar um pouco as condições, o mérito pode se manifestar. Por isso, não acho que é contraditório. O empate técnico [nesse quesito da pesquisa] me dá uma noção de muito realismo de uma boa parcela da população, de que não dá para se basear só em mérito”, considera Rafael. O copo meio cheio ou meio vazio.

A jornalista Flávia de Oliveira, assim como Jailson, são conclusivos ao afirmar que meritocracia não é saída para desigualdade. Ressaltando a dor e a perplexidade por que passa “o povo pobre, preto e periférico” – Flávia se atrasou por causa das chuvas torrenciais que mataram 10 pessoas no Rio de Janeiro, no dia seguinte ao do assassinato do músico Evaldo dos Santos Rosa com 80 tiros de militares –, ela lembrou que só muito recentemente foram criados instrumentos linguísticos e de métrica para escancarar as desigualdades.

“Nos anos 80 os anúncios de emprego ainda pediam boa aparência, e a gente sabe o que isso significa. Ainda se acreditava em democracia racial, se naturalizava o assédio sexual. A gente até agora está na construção de assumir os cabelos crespos e nossos corpos, encontrar beleza neles. E tem quem fale em vitimismo, mimimi”, declarou ela, num discurso tão preciso quanto apaixonado. “A pesquisa do IBGE Percepções étnico-raciais da sociedade brasileira, de 2011, foi uma das primeiras ferramentas para mostrar o racismo institucional, a discriminação racial no mercado de trabalho, no casamento. Até então, racismo e machismo eram ‘coisas da sua cabeça’”.

A desigualdade tem cor e tem gênero, ressaltou Flávia, ao defender que as políticas públicas sejam pensadas à luz das desigualdades. “Debate-se a qualidade de ensino para alcançar quem? E os grupos vulneráveis que não têm como chegar na escola? As meninas que estão fora da escola são as que engravidaram, porque não têm política de saúde, creche para bebês, e elas têm de assumir os afazeres domésticos. Temos que carimbar o gasto orçamentário em benefício dos mais prejudicados pelo tamanho dessas distâncias, basicamente mulheres e negros, mas sobretudo mulheres negras”, reiterou.

A solidão das mulheres negras que ocupam espaços de poder como a mídia foi lembrada pela jornalista Adriana Couto. “A gente se percebe a vida inteira como uma exceção. Não dá para esquecer a desigualdade”.

Para Luana, contudo, a questão central não é mérito, mas igualdade de oportunidades. E a desigualdade também tem idade, lembrou.

“É preciso falar da discriminação por faixa etária. O cuidado com os idosos é penoso, ainda mais do que com as crianças. E tem o sofrimento do idoso, que muitas vezes tem de voltar ao mercado de trabalho enfrentando a discriminação. Os que não têm família ficam completamente desamparados, daí o suicídio de idosos”, observou. A transferência de renda da aposentadoria do idoso para a família também foi notada.

Falta foco

O estudo da Oxfam retrata ainda uma população com visão pouco clara de quem vive na pobreza e de quem são os ricos neste país, e de onde a própria população se situa hoje e estará amanhã – o que requer ampliação da consciência de que vale perder um pouco individualmente para ganhar em qualidade de vida coletiva.

“O fato de 85% dos brasileiros se colocarem na metade mais pobre da população é um problema para o combate à desigualdade social, pois se todo mundo se acha pobre ninguém quer dar, todos acham que dão demais, que já é hora de receber”, considera Rafael.

Outra visão desfocada é sobre a linha de pobreza, situada entre 701 e 1000 reais por 53% dos entrevistados, enquanto a linha oficial de pobreza é de 637 reais mensais, ou 5,5 dólares (21,20 reais) por dia, segundo o Banco Mundial. Quase 44 milhões de brasileiros vivem nessa condição, segundo relatório da instituição divulgado no dia 4 de abril. Só entre 2014 e 2017 eles aumentaram em 20,5%.

Por fim, e paradoxalmente, o estudo revela otimismo individual – 70% acreditam que em cinco anos estarão na classe média ou classe média alta – e ceticismo social – 57% não acreditam que as desigualdades serão reduzidas nos próximos anos. A ver.

Metodologia

A amostra da pesquisa de opinião, composta por 2.086 pessoas em nível nacional, teve como objetivo refletir o perfil da sociedade brasileira de acordo com o último Censo.

Foram realizadas entrevistas em 130 municípios de pequeno, médio e grande portes, incluindo regiões metropolitanas e cidades do interior, no período de 12 a 18 de fevereiro de 2019.

A margem de erro é de 2% para mais ou para menos, considerando um nível de confiança de 95%.

Imagem: Di Cavalcanti

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