Os índios entram na Academia Brasileira de Letras. Por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

Ore Ru Nhamandu Tupã Ore Ru
‘Nossos primeiros pais Nhamandu e Tupã’
(Canto sagrado Guarani Mbya)

A língua Guarani ecoou, nesta terça (16), na Academia Brasileira de Letras (ABL), santuário da língua portuguesa. Lá, a cacica Jurema Nunes de Oliveira e um coral de 14 crianças da aldeia Mata Verde Bonita, de Maricá (RJ), cantaram música sagrada guarani no Salão Nobre reservado a sessões solenes, encantando funcionários e até mesmo o acadêmico e filólogo Evanildo Bechara, de 91 anos. O presidente da ABL, Marco Lucchesi, destacou a diversidade linguística do país, lembrando que 2019 foi declarado pela ONU como o Ano Internacional das Línguas Indígenas.  

Diante da extinção alarmante de línguas ameríndias, a entrada do idioma guarani na ABL teve um peso simbólico, quando a cacica Jurema doou à biblioteca da Academia o livro “Guarani Mbya: aspectos da gramática da língua” (2017) elaborado pela linguista Ruth Monserrat com professores Mbyá. Foi uma retribuição aos livros de literatura em português presenteados há duas semanas pela ABL à biblioteca da Escola Pará Poti no âmbito do projeto “Yvy Mareÿ” (Terra Sem males) que busca um diálogo permanente da entidade com as culturas e línguas indígenas.

Fez parte desse diálogo intercultural e bilíngue a visita presencial dos Guarani, guiados pelos atores Paula Sandroni e Alexandre Mofati. Na entrada, o casal vestido com roupas do séc. XIX, encenou a história da Academia e do Petit Trianon, assim conhecido porque o prédio, construído pela França e doado à ABL em 1923, é uma réplica do pavilhão de caça do Castelo de Versalhes. “As crianças ficaram encantadas com o que viram e ouviram” – disse a cacica Jurema. E o que elas viram?

Os índios na literatura

Na visita guiada, os guarani viram lustres de cristal e peças de porcelana de Sèvres no saguão com piso de mármore. Viram literatura, quando transitaram pelas salas dos Poetas Românticos e a dos Fundadores. Nas diferentes dependências da ABL pelas quais circularam, visitaram o Teatro Magalhães Jr., o Arquivo Múcio Leão, o Centro Cultural e a exposição permanente, além de curtirem o jardim com a escultura em bronze de Machado de Assis e a inscrição do lema da ABL: “Esta a glória que fica, eleva, honra e consola”.

Na Sala Machado de Assis, as crianças trocavam impressões cochichando em língua guarani, ao observarem os objetos pessoais e a escrivaninha onde trabalhou o maior cultor da língua portuguesa no Brasil. Ficaram admiradas com o “mata-borrão” destinado a secar o excesso de tinta usada na escrita da época. Conheceram parte do acervo museológico da ABL, a Sala de Sessões, o Salão de Chá e a Biblioteca, onde ouviram pela primeira vez nomes de autores, cujas narrativas, quase sempre carregadas de preconceito, excluíram do Salão Nobre da literatura os índios, suas músicas e suas línguas.

Os índios figuram em três poemas épicos precursores do indianismo: O Uraguai (1769) de Basílio da Gama, Caramuru (1781) de Santa Rita Durão e A Confederação dos Tamoios (1856) de Gonçalves de Magalhães. Estão presentes nas obras de Gonçalves Dias: Os Timbiras (1857) e Dicionário da Língua Tupi (1858) e nas de José de Alencar:  O Guarani  (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874).

Até Machado de Assis incursionou nesse campo com “Americanas” (1875), coletânea de poemas, um deles sobre Potira, a “índia cristianizada” que resiste ao estupro, o outro que retrata o amor entre um casal indígena (Última Jornada) e um terceiro com guerreiros que lamentam a extinção de seu povo (A visão de Jaciúca).  Já no séc. XX, os acadêmicos que abordaram a questão como tema central foram Roquete Pinto, Darci Ribeiro e Afonso Arinos, autor do ensaio magistral O Índio brasileiro e a Revolução Francesa (1937).

O Guarani da Tico-Tico

No final, as crianças assinaram o livro de visitas com seus nomes em guarani e em português, depois do lanche que lhes foi servido no pátio interno. Não houve tempo de folhear a revista ilustrada Tico-Tico, cuja coleção faz parte do acervo da Biblioteca da ABL. São 1.500 exemplares (de 1905 até 1970), alguns com cantos, fábulas, narrativas míticas e farta ilustração. Lá pode ser encontrada a versão em quadrinhos do romance O Guaranide José de Alencar, tendo como herói o índio Peri, que rivaliza com Reco-Reco, Bolão e Azeitona, personagens da revista.

O Guarani, ambientado na floresta do Rio de Janeiro, desenvolve parte de sua trama às margens do rio Paquequer, onde o fidalgo português Antônio de Mariz, pai de Ceci, tem uma fazenda. Orgulhoso por tê-la ocupado, ele naturaliza a violência do conflito entre índios e colonizadores com discurso triunfalista:

— Aqui sou português! Nesta terra que me foi dada pelo meu rei e conquistada pelo meu braço, nesta terra livre, tu reinarás, Portugal, como viverás n’alma de teus filhos. Eu o juro!

Se o índio de Alencar não lutou por suas terras usurpadas é porque ele é “cheio de bons sentimentos portugueses”, como ironizou Oswald de Andrade. Peri, o índio Goitacá, é produto da “civilização” lusa: 

– “Crede-me, Álvaro, [Peri] é um cavalheiro português no corpo de um selvagem” – diz Antônio de Mariz, sem explicitar o que entende por “cavalheiro”.

José de Alencar não conseguiu apreender os modos de ser e de viver guarani (o nhanderekó), suas formas de pensar, suas imagens poéticas, sua cosmogonia. Sem conhecimento de qualquer língua indígena, foi na contramão do seu próprio discurso quando reconheceu que “o verdadeiro poema nacional” exigia “o conhecimento da língua indígena que é o melhor critério para a nacionalidade da literatura”.

Literatura da floresta

A construção da literatura nacional tendo como fonte a temática indígena foi alvo de críticas, algumas pertinentes, outras preconceituosas. Na virulenta polêmica travada em 1875 nas páginas de O Globo, Joaquim Nabuco criticou a “falsa literatura tupi” de José de Alencar. Recém chegado da Europa, Nabuco extrapolou quando se referiu às línguas indígenas como “dialetos selvagens”, portadoras de “religião grosseira e mitos confusos”, indignas da “pretensão de tornar-se a literatura brasileira”

Quando o romantismo já entrava em declínio, alguns escritores estudaram e documentaram a Língua Geral ou o Guarani para registrar as narrativas orais dos índios e traduzi-las ao português, entre eles Batista Caetano, Charles Hartt, Barbosa Rodrigues, Stradelli, Brandão Amorim e Maximiano José. Denominados de tupinólogos, deram grande contribuição intelectual à linguística universal, mas apesar da importância de sua obra que inspirou o movimento modernista, eles ficaram de fora da ABL.

O tupinólogo mais importante foi Couto de Magalhães (1837-1898), falecido um ano depois da fundação da Academia. Ele retirou o índio do terreno “do pitoresco, do plano sentimental a que o romance de Alencar e a poesia de Gonçalves Dias, sem dúvida respeitáveis, o haviam conduzido”,como sinalizou em 1975 Vivaldi Moreira, presidente da Academia Mineira de Letras.

Couto de Magalhães compartilha a preocupação do indianismo romântico com a tradição indígena, mas usa procedimentos mais rigorosos na coleta da literatura oral e no conhecimento da língua. Com paixão, mas com método, implodiu a etnografia fantasiosa que reduzia os índios aos padrões dos romances de cavalaria e representou os indígenas de outra forma.

– “É claro que não podemos negar a existência de visões perfeitamente românticas das culturas indígenas americanas, mas a facilidade com que esse adjetivo é aplicado a qualquer descrição positiva dessas culturas é em si mesmo um sintoma inegável de preconceito –  escreve Lúcia Sá no seu ensaio “Literaturas da Floresta”.

A narrativa mítica oral qualificada por Dell Hymes como “the first literature of America” emerge agora sob nova forma, com a apropriação da língua portuguesa e o domínio da escrita pelos índios. Segundo Censo do INEP (2017) havia nas universidades brasileiras 56.750 estudantes indígenas autodeclarados, alguns mestres e até doutores.

Daí e de outros lugares surgiram escritores consagrados como Graça Graúna, Eliane Potiguara, Daniel Munduruku, Ailton Krenak, Davi Yanomami, Kaká Werá, Olívio Jekupe, Cristino Wapixana, Ademário Ribeiro, Jaime Diakara, Juvenal Payayá, Márcia Kambeba, Jaider Esbell, Yaguarê Yamã, Dauá Puri, Lúcio Flores Terena, e tantos outros.

Constituem amostra expressiva dessa literatura a série Visões Indígenas dirigida por Daniel Munduruku, a Coleção Narradores Indígenas do Rio Negro criada pela Federação das Organizações Indígenas (FOIRN) em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), as publicações do Grupo Mulher-Educação Indígena (Grumin) e as edições do Núcleo de Pesquisas Transdisciplinares Literaterra, coordenado por Maria Inês de Almeida na UFMG.

– “Há uma literatura escrita por indígenas, há uma demanda crescente por esse tipo de escrita” –  avalia Daniel Munduruku, que menciona pelo menos 40 autores indígenas, pertencentes a 20 povos diferentes oriundos de todas as regiões brasileiras “que estão produzindo material literário com certa regularidade” nos últimos vinte anos e, às vezes, em edições bilíngues.

O bilinguismo é marca de parte dessa literatura. O domínio de uma língua não implica a exclusão de outra. Por isso, quando Joaquim Nabuco escreve “Nós somos brasileiros, não somos guaranis; a língua que falamos, é ainda a portuguesa” – quer expulsar da nacionalidade os falantes de línguas indígenas, renegando a diversidade que é reconhecida como patrimonial. Hoje, como Itabira, Nabuco é “apenas uma fotografia na parede” contemplada por crianças bilíngues que cantam e falam guarani e português no coração da Academia que ele ajudou a fundar.

OBS: Fotos Rodrigo Martins e Ana Paula da Silva

Referências bibliográficas

COUTINHO, Afrânio. (Org.). A polêmica Alencar-Nabuco. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.

GRAÚNA, Graça. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013.

JEKUPÉ, Olívio. Literatura escrita pelos povos indígenas. São Paulo: Scortecci, 2009.

JECUPÉ, Kaka Werá. A terra dos mil povos: história indígena brasileira contada por um índio. São Paulo: Peirópolis, 1998.

MEDEIROS, Sérgio. Makunaíma e Jurupari. Cosmogonias ameríndias. São Paulo. Perspectiva. 2002.

MONSERRAT, Ruth & pesquisadores guarani. Guarani Mbya: aspectos de gramática da língua. Belo Horizonte. Fino Traço. 2017 (Elaborada no Projeto Saberes Indígenas na Escola – UFMG, UERJ. USP, UFES, UEM, UFRGS e UFSC. Coordenação Geral Ana Maria R. Gomes.

MUNDURUKU, Daniel.  Visões de ontem, hoje e amanhã: é hora de ler as palavras. Prefácio. In: POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. São Paulo: Global. 2004

SÁ, Lúcia. Literaturas da Floresta. Rio. Eduerj. 2012

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