Quando as elites toparam esgarçar as instituições para forçar a saída de Dilma, uma perigosa linha foi ultrapassada. Não que antes reinasse a mais perfeita a harmonia, mas pelo menos durante duas décadas o país se manteve perto de um eixo de estabilidade política, sem graves crises institucionais. Para o insuspeito ex-ministro do Supremo Joaquim Barbosa, o processo que derrubou Dilma foi “patético”, “bizarro”, “uma farsa”, “um impeachment Tabajara” que devolveu ao país o status de “República das Bananas”. Eu chamo de golpe mesmo. De lá para cá, o desrespeito à ordem constitucional virou padrão e, em muitos momentos, contou com o apoio popular.
A Lava Jato teve papel decisivo nesse processo de degradação institucional. Sempre em nome do bem, desrespeitou sistematicamente as leis, desafiou poderes constituídos e se tornou um poderoso grupo político com braços em todas as esferas de poder. A grande imprensa teve papel fundamental na canonização do grupo, atuando como assessoria de imprensa e fechando os olhos para as arbitrariedades. Com apoio popular, a Lava Jato pavimentou o caminho de Bolsonaro ao Planalto, assumiu o ministério da Justiça e já não aceita nenhum freio da democracia. Tornou-se comum, por exemplo, ver procuradores da República insuflando a população contra o Supremo nas redes sociais. O que era para ser uma aberração, virou corriqueiro. Criou-se um monstro populista.
As novas batalhas desta semana entre Lava Jato e STF, portanto, não podem ser classificadas como uma nova crise. São só mais um episódio de uma crise institucional permanente.
A delação premiada, lei sancionada por Dilma sem vetos, virou um instrumento de chantagem dos lavajatistas do Ministério Público contra setores do Estado. Delações são sistematicamente vazadas de forma criminosa para a imprensa e, mesmo que se comprovem falsas, o dano moral e político para os delatados é irreversível. A existência de uma indústria das delações premiadas é um fato que ninguém mais pode negar. Os escritórios especializados em acordos com a Lava Jato não me deixam mentir. Os joesleys da vida também não. O doleiro Youssef, protagonista de grandes escândalos de corrupção envolvendo diversos partidos, foi condenado a 121 anos de prisão, mas, graças a um acordo bondoso proposto por Sergio Moro, já está livre e fazendo o que mais gosta: operando em dólar. A Lava Jato tem um jeitinho de combater a corrupção que é só dela.
A vítima da chantagem agora é o STF. Desta vez, o vazamento ilegal de um email escrito há 12 anos, que nem constava nos autos da PGR, colocou uma nuvem de suspeita sobre o ministro Dias Toffoli. O site Antagonista e a revista Crusoé, que costumam obter vazamentos da Lava Jato com exclusividade, publicaram uma reportagem relatando que Marcelo Odebrecht revelou que Toffoli era conhecido como “amigo do amigo do meu pai” nas conversas entre executivos da empresa. O “amigo do meu pai”, segundo o delator, era Lula. Na época da troca de e-mails, o ministro era advogado geral da União e, segundo sugere a reportagem, favorecia os interesses da empresa em suas obras com o governo Lula. Nada além da delação tardia e sem provas de Marcelo Odebrecht indica que isso seja verdade.
Pelo o que apurou o BuzzFeed, ministros do STF foram informados por advogados de Odebrecht que houve pressão dos procuradores para que Toffoli fosse citado. O objetivo seria colocar a faca no pescoço da Corte às vésperas do julgamento que pode reverter a decisão que autoriza prisões após condenações em segunda instância. A consequência seria a soltura de Lula, o que representaria uma derrota política da Lava Jato. Pelo histórico de atuação dos procuradores, é bastante provável que a intenção tenha sido mesmo desmoralizar o STF e jogar mais lenha na parte bolsonarista da população que já está incendiada contra os ministros.
E o que fez o STF diante do vazamento criminoso? Logo após a publicação da reportagem, Alexandre de Moraes, a pedido do próprio Toffoli, determinou que ela fosse retirada do ar. Sim, os ministros lançaram mão da censura para frear a Lava Jato. Uma arbitrariedade para barrar outra. O STF retaliou usando o mesmo modus operandi lavajatista.
O caso foi incluído no inquérito aberto por Toffoli que apura a publicação de fakes news e mensagens que atacam a honra de ministros do STF. Os ataques são graves e merecem ser investigados. Há indícios de serem orquestrados. Mas o inquérito também tem um caráter autoritário. Por mais que a interpretação dada por Toffoli ao regimento interno permita a sua instauração — há controvérsias —, não parece razoável que as próprias vítimas dos ataques resolvam abrir investigação, apurar e julgar. Faz até lembrar de Sérgio Moro e Marcelo Bretas, que acumulavam as funções de juiz e auxiliar da promotoria ao mesmo tempo.
Alexandre de Moraes determinou a busca e apreensão de telefones, tablets, computadores e o bloqueio das redes sociais dos acusados. Assim como no caso da censura à reportagem, que jogou luz no que o STF queria esconder, o efeito do inquérito também foi negativo. Atiçou ainda mais os ânimos dos bolsonaristas, que, ironicamente, agora se apresentam como defensores da democracia e da liberdade de expressão.
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que parecia distante da treta entre MP lavajatista e STF, entrou no jogo e pediu ao Supremo que arquivasse o inquérito, o que não faz sentido. O inquérito é do STF, e a PGR não tem poder para arquivar. Dodge pediu ainda a anulação de todas as provas encontradas durante a investigação. O pedido, claro, foi negado por Alexandre de Moraes.
Como se não bastasse tantos absurdos, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) seguiu o corporativismo de Dodge e entrou com pedido no STF para arquivar o inquérito e impedir que integrantes do MPF prestem depoimento na apuração dos ataques contra os ministros. É um habeas corpus coletivo e preventivo para todos os seus associados. Além disso, requisitou devolução dos aparelhos apreendidos. O que teme a ANPR? Procuradores por enquanto não são alvos da investigação. E, se vierem a ser, qual é o problema? Eles temem que os métodos da Lava Jato sejam aplicados contra eles? Bom, se for isso, eu entendo. Karma é um negócio sério.
Quando se arromba uma porta institucional, todos as outras portas se tornam arrombáveis. As consequências desse acúmulo de arbitrariedades é óbvia: instabilidade jurídica, política e aumento do descrédito da população na democracia. O faroeste jurídico parece ser um caminho sem volta. E o bolsonarismo, com seu DNA antidemocrático, segue se alimentando dos escombros institucionais.
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Os buracos são de tiros. Foto: Bruno Itan. Fotógrafo e morador do Complexo do Alemão