Prisões brasileiras: relato de dentro do inferno

Para “prevenir a tortura”, deu-se a uma pequena comissão de peritos direito legal de averiguar os presídios e manicômios onde foram confinadas quase 1 milhão de pessoas. Uma integrante deste grupo conta o que viu

por Catarina Pedroso**, em Outras Palavras

No âmbito de um curso sobre os efeitos psicossociais da violência, parece fundamental lançar luz sobre as violações que caracterizam os locais de privação de liberdade. São centenas de milhares de pessoas em presídios, unidades socioeducativas, comunidades terapêuticas, manicômios judiciários, hospitais psiquiátricos etc., submetidas a condições extremamente violentas, o que seguramente produz marcas subjetivas e em suas trajetórias de vida.

Para tanto, o trabalho como perita de um Mecanismo de Prevenção à Tortura pode trazer elementos que, se não respondem diretamente à pergunta fundamental do curso — como lidar com os efeitos psicossociais? —, ao menos podem ajudar a apontar alguns caminhos no que diz respeito ao combate à tortura de maneira mais ampla.

Inicio o texto com a descrição da visita que uma equipe do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (mnpct)1 realizou ao Estado de Roraima, em março de 2017. Quando o Mecanismo Nacional estava preparando a visita ao Estado de Roraima, ainda em fevereiro do mesmo ano, tivemos a notícia de que órgãos do poder público e organizações da sociedade civil estavam com dificuldades para realizar suas costumeiras visitas à Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista. Ainda que o fechamento ao olhar externo seja recorrente no sistema prisional, a situação que relato se deveu a uma conjuntura que reforçou ainda mais as dificuldades enfrentadas por aquelas pessoas que fiscalizam o funcionamento de instituições de privação de liberdade.

Em outubro de 2016, houve uma rebelião, com diversas mortes nessa mesma unidade. Em janeiro de 2017, dias após as mortes que aconteceram no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) de Manaus, houve outra rebelião em Monte Cristo, quando mais pessoas foram mortas. Tudo isso gerou um tensionamento e, por consequência, um fechamento ainda maior dessa unidade às instâncias externas. Assim, as instituições que costumavam entrar para prestar assistência às pessoas presas, como a Pastoral Carcerária, a Defensoria Pública e o Ministério Público, estavam enfrentando dificuldades “por questões de segurança”, como alegava o governo estadual. O Mecanismo, por sua vez, possui algumas prerrogativas previstas em lei, e uma delas é a de entrar em qualquer espaço de privação de liberdade a qualquer momento. A negociação para entrar na unidade, apesar da prerrogativa estabelecida em lei, foi especialmente difícil em Monte Cristo, onde enfrentamos uma série de barreiras,2 até que finalmente pudemos realizar a visita.

Por causa da situação de tensionamento na unidade de Monte Cristo, o estado de Roraima diminuiu a frequência de visitas familiares — antes semanais, passaram a ser quinzenais —, e a maneira que as pessoas presas encontraram para negociar o retorno da frequência anterior foi realizando uma greve da limpeza. A visita familiar é algo muito importante para as pessoas detidas, especialmente numa unidade que não fornece insumos básicos como kits de higiene, para garantir que elas tenham um mínimo de acesso a sabonetes, remédios etc. Além disso, é um contato com o mundo externo, desempenhando, portanto, um papel central. 

Com a greve na limpeza, encontramos marmitas acumuladas há dias, o que provocava um cheiro tão azedo que chega a ser difícil descrever. Moscas varejeiras estavam por todo o ambiente. As marmitas com comidas estragadas estavam acumuladas no corredor, e era sobre elas que tínhamos de caminhar para conversar com as pessoas. Esses são alguns elementos que dão a dimensão do nível de degradação desse lugar.

Embora ali houvesse um acordo de que o serviço de limpeza fosse feito pelos presos, é dever do Estado manter a unidade em condições mínimas de limpeza. Há um discurso que escutamos com muita recorrência: “são os presos que deixaram a unidade desse jeito, estão assim porque querem”. No entanto, a manutenção da unidade é responsabilidade do Estado, que deve zelar pelas condições de privação de liberdade. No fundo, responsabilizar os presos pela condição em que se encontram é uma maneira de justificar e naturalizar as violações estruturais das unidades prisionais.

Ainda na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, percebemos que as pessoas passavam o dia inteiro presas nas celas. É uma unidade que não tem rotina de atividades, porque tem um efetivo de agentes penitenciários muito baixo e um número muito grande de pessoas presas. Está praticamente em ruínas: há espaços que estão literalmente desmoronando. A direção alega que não há condições de segurança para garantir as atividades ordinárias de uma penitenciária. As celas são um misto de grade com chapa, tendo uma abertura na altura do chão e outra na altura do rosto, por onde se passa a comida. 

As únicas atividades rotineiras na unidade eram as entradas sistemáticas, três vezes ao dia, das forças de segurança que acompanhavam os agentes penitenciários na distribuição das refeições. Nestas ocasiões, os agentes entravam fortemente armados, com o rosto encoberto, usando escudos, cães e outros tipos de instrumentos repressivos. Em formação ofensiva, abriam as galerias para que os agentes entregassem as comidas. Nesse momento, segundo os relatos, frequentemente disparavam dentro das celas através das aberturas da porta de chapa, ocasionando inúmeras e graves lesões nas pessoas que se encontravam presas.

A agonia das pessoas por estarem nessas condições, sem poder relatar o que estavam vivendo para ninguém, era tamanha que elas falavam conosco colocando o rosto ou o braço no chão, através da abertura. Estávamos, portanto, diante de corredores inteiros onde havia pessoas tentando conversar com a nossa equipe por meio dessas pequenas aberturas através das quais se espremiam ou expunham feridas do corpo. A falta de roupas e sapatos perfaz esse quadro inicial que eu gostaria de trazer: a situação absolutamente cruel a que estavam submetidas aquelas pessoas presas.

O fato de termos encontrado a unidade em situações tão deploráveis reforça a importância de instrumentos que permitam o monitoramento em locais de privação de liberdade. Os peritos puderam conversar com pessoas que ali estavam há muito tempo sem ser ouvidas por ninguém.

Sobre o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura

É necessária uma breve explicação sobre o trabalho do Mecanismo Nacional. Não será possível, neste espaço, fazer uma avaliação mais substancial sobre a implementação e o funcionamento do órgão, de modo que apenas descreveremos, em linhas gerais, quais as atribuições e ações do Mecanismo, ainda pouco conhecido.3 O mnpct é fruto de um compromisso diplomático que o Brasil assumiu: desde os anos 1970, há um grande debate internacional sobre como prevenir e evitar a tortura nas unidades de privação de liberdade, discussão que passa pela ideia do monitoramento e visitas frequentes — princípio básico dos mecanismos preventivos. Esse debate internacional levou à criação do Protocolo Facultativo à Convenção Contra Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (opcat, na sigla em inglês). 

Em seu Artigo 3º, o Protocolo diz que cada Estado Parte deve designar um órgão de visitas encarregado da prevenção da tortura e de outros tratamentos ou penas cruéis e degradantes, denominados mecanismos nacionais, e o Artigo 4º estabelece que os mecanismos devem visitar qualquer lugar sob sua jurisdição e controle onde pessoas são ou podem ser privadas de sua liberdade. É um mandato que tem uma compreensão alargada do que é a privação de liberdade: permite que os mecanismos visitem não apenas unidades prisionais, mas também unidades socioeducativas, delegacias, instituições de acolhimento para crianças e adolescentes, hospitais psiquiátricos, comunidades terapêuticas e instituições de longa permanência para pessoas idosas.

O Brasil ratificou o opcat em 2007 e, ao fazê-lo, comprometeu-se a instalar tanto um mecanismo nacional quanto mecanismos estaduais. Os marcos legais de criação do Mecanismo Nacional são o Decreto 6.805, que promulga o Protocolo Facultativo em 2007, a Lei 12.847/2013 que institui o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (snpct), o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (cnpct) e o próprio mnpct, e o Decreto 8.154/2013, que regulamenta com mais detalhes a composição e o funcionamento desses órgãos.

A fim de complementar o mnpct na tarefa de realizar o monitoramento das visitas, e considerando a dimensão territorial do país, a complexidade das temáticas, a diversidade cultural etc., foi criado também o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que é um órgão misto composto por entidades da sociedade civil e representantes do poder público, que tem a atribuição de acompanhar a política de prevenção e combate à tortura no nível mais amplo, além de realizar a seleção dos peritos e peritas. 

As prerrogativas do Protocolo Facultativo são o grande diferencial dos Mecanismos. A prerrogativa central é a de autonomia: os Mecanismos precisam ter independência para fazer as visitas que considerarem necessárias, no momento definido por eles como importante, com metodologia própria, e sem qualquer tipo de vinculação política — seja com o Executivo ou com o Legislativo. Não à toa, compõem o órgão especialistas que devem ter um olhar técnico sobre a situação observada, independência para fazer relatórios, reuniões e toda a articulação necessária em torno do que foi observado. Se houver qualquer tipo de violação à autonomia, o Mecanismo fica muito prejudicado, deixando de fazer as considerações necessárias, de apontar as violações observadas etc.

Outra prerrogativa é a de acessar qualquer unidade, sem aviso prévio, e acessar qualquer espaço dentro da unidade, alcançando pessoas e lugares que não são nunca visitados. O órgão pode, ainda, entrevistar qualquer pessoa, seja privada de liberdade, seja funcionário, coletar ou ter cópias de documentos, ter acesso a qualquer informação relativa às unidades de privação de liberdade visitadas e fazer registros audiovisuais.

É válido fazer uma reflexão sobre como o órgão foi implementado no Brasil. A autonomia está, de fato, garantida em lei. No entanto, o mnpct está vinculado à secretaria de Direitos Humanos, hoje inserida no ministério de Direitos Humanos,4 e não goza de autonomia orçamentária nem administrativa. Depende, portanto, tanto da estrutura administrativa da Secretaria, quanto da estrutura orçamentária — para compra de passagens, pagamento de diárias aos peritos etc. —, o que fragiliza bastante o órgão e sua autonomia.

Nos dois primeiros anos do Mecanismo, foram visitados os Estados de Amazonas, Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte, Distrito Federal, Rondônia, Maranhão, Roraima, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Pará, Paraíba, São Paulo e Santa Catarina. As áreas contempladas nas visitas foram referentes ao sistema prisional, ao sistema socioeducativo, ao Sistema Único de Assistência Social (Suas) — especificamente instituições de longa permanência para pessoas idosas — e à Saúde Mental —especialmente comunidades terapêuticas e Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (hctps).

Sobre a metodologia de visita, está previsto em lei que as equipes devem ser compostas de ao menos três pessoas peritas. As visitas têm três momentos fundamentais: a pré-visita, a visita ao estado e à instituição, e a pós-visita. A pré-visita é o momento de buscar informações para a construção de um mapeamento qualificado da situação do estado. É também o momento de interlocução com a sociedade civil e com o poder público, para acessar o acúmulo de debates no território: em um período de um mês, ligávamos intensamente para as pessoas, buscávamos relatórios, documentos para poder definir quais unidades seriam visitadas, quais temáticas priorizadas. É um momento fundamental de qualificação das informações sobre o estado, o que faz muita diferença porque permite ter um olhar mais apurado no momento da visita.5 Também é importante ter ciência, previamente, sobre quais são os debates locais sobre cada temática, a fim de alinhar e fortalecer as lutas que estiverem sendo construídas a nível local.

Chegado o momento da visita ao estado, a primeira etapa era a organização de reuniões com a sociedade civil, isto é, o momento de consolidar as informações obtidas anteriormente, mas também de encontro com as pessoas com quem entramos em contato previamente — e isso tem um diferencial, pois há informações sensíveis que as pessoas não passam por telefone ou pela internet. Outra etapa importante são as visitas a locais específicos que dialogam diretamente com as temáticas com as quais estamos lidando. Houve estados em que visitamos o iml, para entender melhor como é feito o trabalho de perícia, o exame de corpo de delito e estabelecer um diálogo direto com o órgão, entender quais são suas demandas e como poderíamos fortalecê-lo. Em alguns estados nós acompanhamos as audiências de custódia6 e realizamos reuniões com o poder público: com o sistema de justiça de infância e adolescência, de execução penal. Há ainda uma reunião final, que varia conforme o estado visitado. Em alguns, fizemos apenas com o governador ou governadora; em outros, tivemos reuniões mais amplas, com vários órgãos e entidades relacionadas às temáticas que foram visitadas. O objetivo da reunião final é trazer para o poder público observações que podem ser apresentadas preliminarmente e fazer algumas recomendações.

Sobre as visitas às unidades de privação de liberdade em si, nós construímos uma metodologia que lança mão de todas as prerrogativas do Mecanismo para buscar fazer a triangulação de informações e chegar a uma análise mais sólida do que se passa nas unidades visitadas. De acordo com essa metodologia, inicialmente era feita a apresentação do mnpct à direção da unidade, a fim de estabelecer uma abertura de campo. Em seguida, a depender da unidade, ou seguia-se diretamente para a entrevista das pessoas privadas de liberdade, ou buscava-se um conhecimento mais geral do espaço da unidade, realizando registros audiovisuais, acesso à documentação, entrevistas com funcionários e com a direção. Por fim, era realizada uma conversa de encerramento com a direção, durante a qual, em alguns casos, eram feitas recomendações mais imediatas.

Na entrevista com a direção, buscava-se um olhar institucional da unidade, com a coleta de dados oficiais e básicos sobre a instituição: lotação, público, tipos de atividade etc. Já com os funcionários, procurava-se entender quais são as condições de trabalho. No Mato Grosso do Sul, por exemplo, os agentes têm um regime de doze horas trabalhadas para 72 horas de folga, mas muitos fazem hora extra, chegando a 33 horas seguidas de trabalho, em uma unidade com treze agentes por turno para 2.500 pessoas presas. É possível imaginar as condições de trabalho e o nível de tensionamento que esse contexto produz. Buscávamos estas informações na medida em que elas, de alguma forma, se relacionavam com a possibilidade da prática.

Sobre as entrevistas com as pessoas privadas de liberdade, entendemos que, ao lado da autonomia, este é outro núcleo central do Mecanismo. As entrevistas são sigilosas, pela delicadeza das informações que são manejadas e para não vulnerabilizar as pessoas que falam. Sempre buscamos fazer com que as entrevistas aconteçam de modo que os agentes ou funcionários não acompanhem nem vejam quem está sendo entrevistado; na impossibilidade disto, procuramos entrevistar muitas pessoas ao mesmo tempo, para não particularizar as informações obtidas. Essas entrevistas podem ser tanto coletivas quanto individuais, nas celas, nos quartos, preferencialmente dentro dos alojamentos. Entendemos que a escuta deve levar em conta a situação daquela pessoa e buscar construir alguma confiança, um espaço de conforto mínimo para que ela possa falar sobre questões tão delicadas e graves. A possibilidade de entrar nos espaços, sentar, seja na cama, num banco, almofada… Estes são elementos essenciais para um trabalho que lida com a complexidade da tortura. É importante, ainda, que as entrevistas tenham tempo, que possam acontecer com tranquilidade, no tempo que a entrevista demanda. É difícil conjugar as tarefas: cumprir um roteiro de visita em todos os espaços, lidar com as tensões inerentes a este trabalho e ainda fazer entrevistas com tranquilidade.

No período de pós-visita é feito um relatório, cujo prazo para entrega é definido por lei em trinta dias. Este é um problema da nossa legislação em relação a outros países: para a produção de um relatório tão denso e tão complexo, é pouco tempo. Neste relatório, é feita uma análise da situação encontrada, as violações, as normativas e, por fim, um campo de recomendações para diversos órgãos do poder público no sentido de alterar a situação encontrada. Embora as violações estejam acontecendo permanentemente, a atuação é no sentido de reverter esse quadro geral. Além do relatório, o Mecanismo realiza encaminhamentos individuais para os órgãos pertinentes e monitora as recomendações emitidas.

Um caso bastante interessante para pensar a perspectiva preventiva do Mecanismo é o do Amazonas. Em dezembro de 2015, fizemos uma visita ao Estado e, em nosso relatório, apontamos que a situação do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, era de muita tensão e que existia uma população especialmente vulnerável, a população dos “seguros”,7 que em função do conflito entre grupos de presos estava sendo ameaçada. Tínhamos apontado esses riscos e a necessidade de redução da população prisional no relatório, mas o Estado não deu a devida importância. Um ano depois aconteceu, de fato, aquilo que as pessoas nos relataram: houve uma rebelião e 56 pessoas foram mortas dentro do Compaj. Após uma transferência de presos para a Cadeia Pública, que havia sido desativada desde a visita do Mecanismo, outras quatro pessoas foram mortas. Este é um caso que demonstra como as visitas e o relatório são instrumentos que podem apontar caminhos que evitem violações e mortes. Daí a importância do tipo de entrevista e de metodologia do mnpct, com as quais obtivemos informações que não se acessam de outro modo.

Constatações

A respeito das constatações gerais resultantes das visitas, é preciso mencionar que as análises produzidas pelo órgão se alimentaram de inúmeros debates feitos pela sociedade civil, de modo que muitas delas não eram inéditas. Entretanto, não é por isso que deixam de ter sua importância, ainda mais considerando se tratar de um órgão de Estado.

A primeira constatação é a de que a tortura é uma prática sistemática e institucionalizada, que faz parte do cotidiano das unidades de privação de liberdade no Brasil. Ela se dá desde o momento de detenção policial, no primeiro momento em que a pessoa fica privada de liberdade, até o fim da sua custódia, atravessando todas as etapas. O caso prisional é emblemático: a tortura é generalizada no momento da detenção policial, depois na delegacia, em seguida no local onde as pessoas são presas provisoriamente e finalmente onde cumprem sua sentença. Toda a custódia é atravessada por diversas formas de tortura.

Sobre as instituições de saúde mental que visitamos —, as comunidades terapêuticas e os hctps —, o tipo de tortura tem uma especificidade, porque passa pela anulação da subjetividade. A comunidade terapêutica que visitamos em Boa Vista, em Roraima, é exemplo disto. As pessoas não faziam queixas de maus tratos, ao contrário, elogiavam a instituição: “Aqui é muito bom, graças a Deus”. Essa é uma dimensão particular da tortura, que promove a anulação de qualquer interesse, projeto de vida ou desejo da pessoa. E mais: a perspectiva dessa comunidade em Roraima, como também de uma em Planaltina, no Distrito Federal, era de que a pessoa pudesse virar obreira ou monitora da própria comunidade. É algo que retorna para a própria instituição. Não há nada no trabalho dessas comunidades terapêuticas que vincule, que fortaleça os projetos de vida das pessoas. Essa dimensão do submetimento subjetivo é bastante presente também nos hctps. E todas essas instituições são marcadas por características asilares, de isolamento, distantes de centros urbanos, fechadas — tal qual a imagem clássica de manicômios —, sem acompanhamento de fato terapêutico, sem nenhuma ou pouquíssima vinculação com a Rede de Atenção Psicossocial ou outros serviços.

Outra dimensão que atravessa todas as unidades visitadas é a seletividade do público privado de liberdade. Há uma marca comum: este público é composto por pessoas negras, pobres ou provenientes de regiões periféricas. Esse é um aspecto central para pensar no processo de privação de liberdade no Brasil, porque de fato é criado um circuito pelo qual a pessoa transita: ora ela está numa comunidade terapêutica; quando sai pode ser presa; quando jovem talvez tenha passado por uma unidade socioeducativa, e por aí em diante. A estrutura de privação de liberdade é voltada para essa população, o que nos impõe a reflexão a seguir.

Para que serve a privação de liberdade no Brasil?

A privação de liberdade tem como objetivo central penalizar e institucionalizar grupos específicos. Ela opera com este objetivo maior e o papel que o sistema de justiça exerce é não só o de servir como porta de entrada, como elemento que impulsiona a privação de liberdade, mas também como elemento central na sua manutenção. Há pouca presença dos órgãos de justiça nas instituições de privação de liberdade, assim como há pouca ou nenhuma apuração dos casos particulares. E quando agentes da justiça visitam as unidades, se limitam a assinar cadernos de visita e fazer reuniões com a direção. Nos casos raros em que juízes ou promotores adentram os espaços da unidade, o fazem acompanhados da direção das unidades. Escutávamos com muita frequência nas nossas visitas: “ninguém nunca entrou e falou comigo desse jeito, ninguém nunca sentou aqui para conversar comigo como vocês”. Esse é um elemento diferencial significativo.

As unidades, de forma geral, têm um perfil disciplinador, coercitivo, que privilegia a segurança em detrimento das outras atribuições da unidade. Isso é gritante nas unidades de socioeducação, por exemplo: a última coisa a ser priorizada é a perspectiva socioeducativa. Em primeiro lugar vem, sempre, a repressão, a punição, a contenção. Qual a possibilidade de viabilizar uma prática socioeducativa – ou terapêutica, nos casos de unidades de saúde mental — em um ambiente pensado e estruturado a partir dar lógica repressora? O isolamento é tomado como uma forma educativa: “a pessoa precisa aprender, tomar jeito”. Há um engodo aí, de que teria uma perspectiva de educação ou ressocialização quando, na verdade, trata-se de punição pura e simplesmente.

Outro aspecto é a ausência de individualização, não apenas nas unidades de saúde mental, mas de forma geral. Não há um cuidado em relação aos projetos de vida, aos gostos e preferências particulares. Ao contrário, as unidades produzem uma massificação, uma homogeneização em que todos são tratados de maneira igual. A alimentação, por exemplo, é bastante reveladora dessa lógica. As refeições nas unidades costumam ter um horário rígido, que dialoga muito pouco com as necessidades pessoais. A janta vem às cinco horas da tarde, por exemplo, e a próxima refeição é às sete horas da manhã, de modo que as pessoas sentem muita fome nesse período. Também é comum que não haja alimentações específicas para pessoas com restrições alimentares. Além disso, as comidas ofertadas costumam ser sempre as mesmas, quando não são ruins ou azedas — o que é também bastante comum. Comer sempre a mesma comida, todos os dias, é um vetor de tortura muito significativo.

Já mencionamos antes, mas gostaria de reiterar, a ausência de transparência. As unidades são extremamente fechadas e herméticas. É difícil atravessar os muros, ter acesso às informações, chegar às pessoas privadas de liberdade. Outro elemento é a ausência de instrumentos de denúncia — ouvidorias independentes, corregedorias atuantes. As pessoas não têm canais para transmitir as violações que vivem, ou, quando têm, são canais obstruídos: telefonemas interceptados, cartas que são lidas por terceiros, o que favorece a lógica de ausência de transparência das unidades.

Outro aspecto que abordamos nas visitas é a dimensão da privatização e terceirização, um debate importante a ser feito. No contexto prisional e político mais geral, há uma tendência à privatização dos serviços e um movimento muito forte para a privatização do sistema prisional de maneira geral. As unidades de Manaus que visitamos, por exemplo, são privatizadas, e o que observamos é que os serviços não são melhores do que em unidades totalmente geridas pelo poder público. 

A privatização do sistema prisional acontece em vários níveis: da alimentação, dos agentes do serviço de custódia, do serviço de assistência social, jurídica, de saúde, até a privatização total, como é o caso de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais, onde a unidade inteira foi construída por meio de uma parceria público-privada. No caso de Manaus, as pessoas não eram adequadamente atendidas, ou, quando o atendimento acontecia, era ruim. É importante desmontar a lógica de que o que é privatizado necessariamente é melhor ou mais barato: isso não é verdade. A rotatividade de profissionais pode favorecer, também, a prática de tortura. Isso ficou claro no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão, onde os agentes são contratados por empresas privadas, e a prática de tortura era recorrente.

Além de questionarmos a eficácia do modelo, o debate sobre a privatização do sistema prisional deve ser feito em outros níveis. Em um nível institucional, o Estado não pode delegar a função de polícia, de custódia, do exercício do monopólio da violência. Os agentes incidem sobre o tempo de permanência da pessoa em privação de liberdade: podem aplicar sanções, fazer relatos que incorram em medidas disciplinares, que por sua vez dificultam a progressão de regime de cumprimento de pena. E há, finalmente, o debate moral: o que significa a possibilidade de que empresas e pessoas lucrem com os altos índices de encarceramento? Se entendemos que precisamos reduzir o sistema prisional, uma vez que o encarceramento em massa não reduz os índices de violência, quais perspectivas de redução da população carcerária podemos ter com unidades privatizadas cujos contratos exigem, por exemplo, que a unidade esteja sempre com pelo menos 90% da sua capacidade preenchida?

Algo que também atravessa as unidades que visitamos é a inversão da função protetiva do Estado: aquele que deveria garantir os direitos, garantir a dignidade, é o violador. Isso gera uma situação bastante sofrida: estar sob custódia de uma estrutura que viola você permanentemente. Significa viver sob ameaças constantes. Esta é uma questão muito sensível, sobretudo quando as pessoas saem, voltam à liberdade. Há a sensação de viver permanentemente sob ameaça, de que algo pode acontecer a qualquer momento. Isso produz marcas devastadoras. É uma dimensão da tortura aparentemente sutil, mas muito forte na vida das pessoas. A inversão da função protetiva do Estado para a função de violador se relaciona diretamente, portanto, com o adoecimento psíquico decorrente da privação de liberdade. Ela produz um tipo de sofrimento com o qual a pessoa vai lidar por muito tempo.

As principais formas de tortura, de maneira sintética, são agressões, choques, espancamentos, alimentação, privação do sono, superlotação, insalubridade, operações de segurança marcadas por abuso da força, ausência de atenção adequada à saúde e de acesso a serviços de saúde externos. Por exemplo, o caso de uma das pessoas que entrevistamos em Roraima: de dentro da cela, ela levou um tiro de bala de borracha no olho, não teve atendimento nenhum — na ocasião da visita, já fazia sete meses que tinha sofrido o ferimento — e, enfim, perdeu a vista. Ademais, é muito frequente que forças especiais externas realizem operações de modo extremamente agressivo nas unidades, destruindo pertences pessoais, agredindo, humilhando, dentre outras formas de violação.

Conclusões incipientes

Diante de todo esse cenário, é inevitável estabelecer uma conexão direta entre a prática da tortura e a privação da liberdade, o que leva à constatação de que não é possível pensar em um processo de luta contra a tortura que não passe pela luta pelo fim da privação da liberdade e por uma inversão deste modelo de confinamento de determinados grupos sociais. Pois aquilo que se pretende pedagógico, terapêutico, não pode se efetivar em um ambiente de privação de liberdade. Há uma contradição insuperável entre a privação de liberdade e as perspectivas de cuidado, acolhimento, atenção. Assim, para fazer um enfrentamento à tortura, é necessário enfrentar a privação de liberdade pela via da desinstitucionalização e do desencarceramento: são lutas que caminham de maneira articulada

Devemos lutar pela desinstitucionalização de pessoas em sofrimento psíquico, que podem ser acolhidas pela Rede de Atenção Psicossocial (Raps), podem encontrar atendimento na comunidade, atendimentos que levem em consideração os seus desejos, sua personalidade, suas características pessoais; lutar para que os adolescentes possam de fato ter um acompanhamento socioeducativo, também pautado pela lógica comunitária. E é um debate que temos que sustentar também em relação ao sistema prisional: deixar de entendê-lo como resposta para conflitos e problemas sociais e promover um desencarceramento em massa, como já defendem diversas organizações da sociedade civil. Temos acúmulo suficiente para afirmar que o encarceramento em massa não só não resolve, como cria outros problemas e produz consequências muito sérias no âmbito social.

Além disso, temos de levar em conta as rupturas que o sistema prisional produz com as mortes e o estilhaçamento das vidas que por ele passam: o sistema não apenas exclui, mas mata as pessoas — seja porque as deixa morrer, seja porque as vidas dessas pessoas ficam inviabilizadas. Quando saem, elas não têm nenhuma perspectiva, têm seus laços todos desconstruídos: a vida desmorona em um processo de encarceramento. Precisamos apontar para uma reversão desse modelo, encontrar outras formas de fazer justiça que não passem pelo sistema penal e pelo punitivismo. Enfim, apontar para outras perspectivas de cuidado é um caminho necessário para travarmos a luta pelo fim da tortura.

1 Composto por onze peritos e peritas, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (mnpct) é um órgão de Estado, previsto pela lei 12.847/2013, que possui a atribuição de visitar qualquer espaço, público ou privado, onde as pessoas estejam cerceadas de sua liberdade.

2 A este respeito, ver Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório de missão a unidades de privação de liberdade no Estado de Roraima. Brasília: Secretaria dos Direitos Humanos/ Presidência da República, 2017.

3 Na ocasião da aula, o órgão tinha dois anos de existência.

4 Na ocasião da revisão deste texto, o Mecanismo Nacional estava vinculado à Secretaria Nacional de Cidadania, por sua vez ligada ao Ministério dos Direitos Humanos.

5 Buscávamos organizações, entidades e conselhos ligados às temáticas de privação de liberdade, o que varia em função de cada estado e temática colocada como possibilidade de visitação. Normalmente estabelecíamos alguns contatos iniciais e, a partir daí, se fazia a rede, com indicações da própria sociedade civil sobre outras entidades com quem poderíamos estabelecer interlocuções. Em todos os estados que visitamos, estas entidades sempre desempenharam um papel muito importante, tanto de monitoramento local das unidades, quanto de contribuição para a preparação da visita do mecanismo.

6 As audiências de custódia têm sido vistas como forma de resolução para a questão de superlotação e apresentadas como um instrumento muito potente para prevenção e combate à tortura, mas não é bem isto que temos observado. Acompanhar a sua implementação em alguns estados teve o objetivo de entender como tem se dado esse processo e suas relações com a dinâmica do sistema prisional.

7 “Seguro” é o termo usado para detentos que foram separados do restante dos presos, a fim de que sua segurança fosse preservada. É geralmente a população que, em situações de tensionamento, mais corre riscos.

*Título original: “A Experiência do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura”. Texto adaptado a partir de aula ministrada em 12 de maio de 2017, como parte do curso “Como lidar com os efeitos psicossociais da violência?”, uma realização do Centro de Estudos em Reparação Psíquica de Santa Catarina (Cerp-SC), entre agosto de 2016 e dezembro de 2017. Todo o conteúdo dos três módulos do curso está disponível online em: <http://www.cerpsc.com>. A aula foi acompanhada de uma série de imagens apresentadas através de recurso audiovisual a fim de ilustrar as situações oralmente descritas. Algumas delas foram mantidas nesta publicação; as demais podem ser encontradas nos relatórios do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (mnpct), disponíveis em: <http://www.mdh.gov.br/informacao-ao-cidadao/participacao-social/old/sistema-nacional-de-prevencao-e-combate-a-tortura-snpct/mecanismo/mecanismo-nacional-de-prevencao-e-combate-a-tortura-mnpct>. Acesso em 31 jul. 2018.

**O texto acima é um dos capítulos de “Corpos que sofrem: como lidar com os efeitos psicossociais da violência?”, organizado por Maria Luiza Galle Lopedote et al, e publicado por nossa parceira, a Editora Elefante.  Tod@s @s leitor@s têm direito a 10% de desconto na loja da editora — basta usar o código outraspalavras. Quem contribui com Outras Palavras tem desconto ainda maior, de 25%, e ainda concorre a três exemplares. Saiba tudo aqui

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