Governo Bolsonaro: em 4 temas importantes, as profundas diferenças no pensamento de olavistas e militares

Aprofundam-se, no governo, divergências entre a ala alucinada e a verde-oliva. Disputa não é apenas por cargos, mas pelo protagonismo no Planalto. Eis os quatro principais pontos de embate

Por Natália Passarinho, na BBC Brasil

A disputa interna por cargos e protagonismo transbordou para ataques pessoais nas redes sociais e na imprensa. No fim de semana, Carlos Bolsonaro, filho de Jair Bolsonaro, publicou no canal do pai no YouTube um vídeo com críticas do escritor Olavo de Carvalho a militares e a deputados e senadores eleitos sob a bandeira da “nova política”.

No vídeo, o “guru ideológico do atual governo” diz que o presidente é um “mártir” por aguentar os “filhos da p…” ao redor dele. Segundo ele, os militares acabaram com a direita do país após tomar o poder, abrindo caminho para “os comunistas” assumirem depois.

“Ele criaram o PT (…) Os milicos têm que começar por confessar seus erros antes de querer corrigir os erros dos outros”, afirmou. Depois que o vídeo publicado no canal do presidente virou notícia, ele foi apagado.

Nas páginas de Olavo de Carvalho nas redes sociais, um dos principais alvos de críticas tem sido o vice-presidente Hamilton Mourão, a quem o escritor de direita já chamou de “idiota” e chegou a sugerir que seria um “traidor”.

Os militares têm respondido aos ataques tentando minimizar a importância de Olavo de Carvalho, conhecido como “mentor da nova direita”. “Não posso fazer nenhum comentário porque para mim (ele) não tem importância nenhuma”, disse recentemente o general Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria-Geral de Governo, ao ser perguntado pela BBC News Brasil sobre a influência de Olavo de Carvalho no governo.

Radicado nos Estados Unidos desde 2005, o escritor de 71 anos se popularizou ao criticar a esquerda e defender posições conservadoras em livros e nas mídias sociais nas últimas décadas. Nos últimos dois anos, ele se aproximou dos filhos de Bolsonaro, principalmente do deputado federal Eduardo Bolsonaro e, em 2018, apoiou abertamente a candidatura do militar reformado.

Desde então, conseguiu emplacar “olavetes” — como ele próprio já se referiu a seus seguidores — em postos no Palácio do Planalto e em três ministérios: Educação, Relações Exteriores e na Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda.

Já os militares comandam quatro pastas de peso: Defesa, Segurança Institucional, Secretaria de Governo e Infraestrutura, além da Vice-Presidência.

O capítulo mais recente da divisão entre esses dois grupos foi a disputa pelo comando do Ministério da Educação. Militares e seguidores de Olavo de Carvalho tentavam emplacar nomes seus para substituir o colombiano naturalizado brasileiro Ricardo Vélez Rodriguez, demitido após se desgastar com uma série de medidas e declarações polêmicas, como a de que iria rever material didático das escolas sobre o golpe militar de 1964.

Bolsonaro acabou optando por Abraham Weintraub, diretor executivo do Centro de Estudos em Seguridade da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ex-aluno de Olavo de Carvalho.

A escolha de Weintraub foi vista por muitos como uma vitória da ala ideológica do governo, enquanto alguns acham que a opção por um nome não diretamente indicado pelo guru, embora ex-aluno dele, foi uma maneira que Bolsonaro encontrou para contornar a insatisfação dos militares.

Mas, se o MEC se tornou palco central do racha entre militares e olavistas, nas últimas semanas, a divergência entre os dois grupos esteve longe de se concentrar nesse ministério.

A BBC News Brasil reúne quatro pontos de controvérsia no governo Bolsonaro que evidenciam essas diferenças: educação, aliança com os Estados Unidos, aproximação com Israel e intervenção na Venezuela.

1) Educação

Na área da educação, tanto os expoentes das Forças Armadas quanto o grupo de seguidores de Olavo de Carvalho compartilhem da ideia de que a escola deve estimular o civismo, o patriotismo e a valorização de símbolos nacionais, como hino e bandeira.

Mas a forma como isso deve ser feito é alvo de divergências. E, embora militares e parte dos indicados por Olavo de Carvalho acreditem que a visão predominante nos materiais didáticos das escolas sobre a ditadura militar seja, na visão deles, excessivamente negativa para as Forças Armadas, a maior parte dos militares em postos no governo não encara rever essa narrativa e trocar os livros escolares como prioridade.

Antes de ser demitido do MEC, Vélez Rodrigues disse, em entrevista ao jornal Valor Econômico, que pretendia mudar a forma como o golpe de 1964 e a ditadura militar são retratados nos livros didáticos, “para dar uma visão mais ampla da história”.

Ainda que essa decisão pudesse parecer de interesse dos militares, ela foi mal recebida pelo alto escalão das Forças Armadas, para quem este não seria o melhor momento para discutir um tema tão polêmico.

“Se o ponto é 1964 ou não é, acho que estamos perdendo tempo em discutir uma coisa de 55 anos atrás quando temos um monte de coisas mais importantes para discutir”, disse à BBC News Brasil o general Santos Cruz, ao ser perguntado sobre o que achava da proposta de rever materiais didáticos.

Outra diferença entre olavistas e militares, segundo a professora de ciência política da PUC-RJ Vera Lúcia Chaia, é a visão sobre a ciência. Enquanto, Olavo de Carvalho e alguns de seus seguidores rejeitam ideias praticamente consensuais na comunidade científica – como a do papel da ação humana no aquecimento global -, os militares parecem apresentar uma visão mais “pragmática” e voltada à defesa de um ensino pautado na visão científica predominante.

“Os olavistas, de certa forma, rejeitam a ciência quando centram esforços na defesa do projeto Escola Sem Partido, nas críticas ao educador Paulo Freire, que é citado em publicações científicas do mundo todo, e quando negam as mudanças climáticas provocadas pelos homens”, afirmou Chaia à BBC News Brasil.

“Já os militares pensam o Brasil como integrante de uma ordem internacional, uma ordem global. Na visão dos militares, existe sim uma ciência a ser preservada.”

Para a professora de ciência política Maria do Socorro Braga, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), militares e olavistas também divergem quanto à abrangência das reformas necessárias no sistema de ensino. Os seguidores de Olavo de Carvalho defendem uma mudança ampla na metodologia de ensino das escolas brasileiras.

Eles são particularmente contrários ao método construtivista, que entende que o aluno deve ser “ensinado a aprender”. Por essa metodologia, o aluno está no centro do processo de aprendizado e deve chegar ao conhecimento por si, tendo o professor como mediador. O objetivo é estimular não só o acúmulo de conteúdos, mas também uma reflexão crítica sobre o que é aprendido.

Esse método se tornou alvo de ataques virulentos de Olavo de Carvalho e seus seguidores. Em seu blog, o guru do governo Bolsonaro escreveu que o “socioconstrutivismo” retarda a alfabetização dos alunos no Brasil e é instrumento do “marxismo” para transformar os alunos em “agentes da transformação social”.

Bolsonaro, que compartilha de muitas das visões de Olavo de Carvalho, já defendeu que o ensino brasileiro deve focar na transmissão de conteúdos tradicionais, como “português e matemática”.

“Nós queremos uma garotada que comece… Não a se interessar por política, como é atualmente dentro das escolas, mas que comece a aprender coisas que possam levar a conquistar espaço no futuro”, disse o presidente, na cerimônia de posse do novo ministro da Educação.

Segundo a professora Maria do Socorro Braga, diferentemente dos olavistas, os militares não manifestaram o interesse de reformar o sistema de educacional para promover o método tradicional de ensino – baseado no conteúdo, na disciplina e tendo o professor como único transmissor do conhecimento.

“Os militares não compartilham dessa visão mais conservadora da educação. São favoráveis à disciplina e ao uso de símbolos nacionais, mas não estão fazendo um movimento para mudar as diretrizes da educação no país”, afirmou.

O general da reserva Eduardo Schneider, que já atuou no Gabinete de Segurança Institucional da Presidência em governos anteriores, avalia que o problema da educação brasileira, para os militares, não está na metodologia de ensino em si.

Segundo ele, os próprios colégios militares priorizam um formato de ensino focado em levar o aluno a aprender por si, que estimula trabalhos em grupos e uma “construção coletiva” do conhecimento – técnicas do modelo construtivista.

“Desde os 90 que mudou-se a orientação nas escolas militares para colocar o aluno no centro do processo de aprendizagem, seguindo a tese de que ele precisa aprender a aprender. Pesquisas apontam que esse método leva a um aprendizado com profundidade”, disse.

“O problema é que alguns porta-vozes dessa metodologia, em algumas instituições do país, agregavam a essa construção mensagens políticas”, opina o general da reserva, cujos dois filhos estudaram em colégios militares.

“Temos que voltar a um ponto de equilíbrio, mas sem rejeitar o método científico.”

2) Relação com os EUA

Apesar do destaque na mídia, nas últimas semanas, dado à disputa entre militares e olavistas pelo controle do MEC, é na área de relações exteriores que fica mais clara a diferença de pensamento entre os dois grupos, segundo cientistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil.

Indicado por Olavo de Carvalho, o ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, tem defendido, entre outros pontos, um alinhamento do Brasil com os Estados Unidos, distanciamento da China, aliança com Israel, e maior interferência brasileira na resolução da crise da Venezuela.

Todos esses pontos são vistos com reserva pela ala militar, para quem a soberania do Brasil e os interesses comerciais e políticos do país devem preponderar nas decisões de impacto internacional.

Especificamente no caso da aliança com os Estados Unidos – Bolsonaro tem se aproximado fortemente do presidente Donald Trump e aderido a críticas do governo americano à China, que enfrenta uma guerra comercial com os EUA.

A questão é que os chineses são os principais parceiros comerciais do Brasil, comprando 30% das nossas commodities, como alimentos e matérias-primas.

Embora os militares também optem por alianças com governos de direita e centro-direita, eles defendem que o Brasil adote uma postura de neutralidade em questões controversas, que permita ao país manter boas relações com “gregos e troianos”.

“A defesa dos militares é em relação à soberania nacional, sem alinhamento automático com os Estados Unidos e o governo Trump. Não é a toa que Mourão está circulando em várias partes do Brasil e visitando alguns países, como os Estados Unidos. Ele está manifestando essas posições divergentes do seu grupo em relação a Olavo de Carvalho”, afirma a professora de ciência política da PUC-RJ Vera Lúcia Chaia.

“Os militares incorporaram o globalismo e defendem que as relações diplomáticas do Brasil com diferentes países devem ser preservadas.”

O general da reserva Eduardo Schneider diz que é natural que o Brasil busque uma relação mais próxima com os Estados Unidos, mas critica a possibilidade de um alinhamento automático (que pressupõe um apoio irrestrito).

Segundo ele, quando um posicionamento americano não se enquadrar nos interesses brasileiros, o Brasil deve assumir uma postura de “neutralidade”.

“Todos os países, mais do que amizades, eles têm interesses. O alinhamento acontece quando os interesses estão alinhados. Quando eles não se alinham, cada país tem que preservar os interesses que lhe são vitais”, disse à BBC News Brasil.

“Talvez uma potência global como os Estados Unidos enxergue a China como um competidor global. Nós analisamos que é importante para o Brasil manter uma relação com a China, porque é um ator importante. Um conflito com a China não nos interessa de jeito nenhum”, afirma Schneider, que já atuou em missões do Exército com Mourão e o general Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria de Governo.

Essa visão é divergente da manifestada por Ernesto Araújo. No mês passado, em aula magna para alunos do Instituto Rio Branco, que forma novos diplomatas, o ministro de Relações Exteriores argumentou que o Brasil “estagnou” tendo a China como principal parceiro comercial.

“O Brasil foi o país que mais cresceu no mundo quando seu principal parceiro de desenvolvimento eram os EUA, e depois estagnou, quando desprezou essa parceria com os EUA e passou a buscar Europa, integração latino-americana, e, mais recentemente, o mundo pós-americano dos Brics”, disse.

“De fato, a China passou a ser o grande parceiro comercial do Brasil e, coincidência ou não, tem sido um período de estagnação do nosso país.”

3) Proximidade com Israel

O movimento do governo brasileiro de aproximação com Israel também foi, até certo ponto, freado pelos militares. Inicialmente, Jair Bolsonaro manifestou a intenção de transferir a embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém, seguindo os passos de Trump.

Um dos filhos dele, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, que é muito próximo de Olavo de Carvalho, chegou a publicar nas redes sociais que a transferência não era uma questão de “se”, mas de “quando”.

Os israelenses reivindicam Jerusalém como capital do Estado de Israel. Mas a comunidade internacional e as Nações Unidas defendem que o status desse território seja definido em negociações de paz com os palestinos, que veem a parte oriental de Jerusalém como capital de um futuro Estado Palestino.

Por isso, os países, com exceção dos EUA e da Guatemala, mantém suas embaixadas em Tel Aviv, capital financeira de Israel. Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro prometeu transferir a embaixada brasileira e defendeu uma forte aliança com o governo israelense.

Nas redes sociais, Olavo de Carvalho disse que”a coisa mais óbvia do mundo é que os judeus, não só por herança histórica e divina, mas por tudo o que passaram na 2ª Guerra Mundial, têm o direito ao território de Israel, pequenininho mas só deles, um abrigo contra os inimigos que os cercam por todos os lados” e condenou as críticas feitas a Trump por ter transferido a embaixada americana para Jerusalém, cumprindo uma promessa que, segundo ele, teria sido feita “por todos os presidentes americanos desde Bill Clinton”.

Mas os militares lançaram uma ofensiva para dissuadir Bolsonaro de transferir a embaixada. A preocupação deles era de ordem econômica e de segurança.

Por um lado, temiam uma reação dos países árabes, que importam cerca de 10% dos produtos agropecuários do Brasil. Por outro, queriam evitar eventuais problemas de segurança, já que o Brasil e tropas brasileiras em missões da ONU no exterior poderiam vir a se tornar alvos de radicais islâmicos atuando em retaliação pela aliança com Israel.

Mourão chegou a fazer reuniões com o embaixador da Palestina no Brasil, Ibrahim Alzeben, para assegurar que o governo não pretendia, pelo menos no momento, efetivar essa transferência de embaixada.

No final, Bolsonaro acabou optando, por enquanto, por abrir um escritório diplomático em Jerusalém – decisão que ainda assim gerou reações negativas de palestinos e do mundo árabe em geral. Setores do governo dizem que a transferência da embaixada ainda vai ocorrer, mas de “maneira gradual”.

4) Intervenção militar na Venezuela

Outra diferença clara entre militares e olavistas diz respeito ao papel do Brasil na crise da Venezuela.

Enquanto o ministro de Relações Exteriores do Brasil defende uma postura mais enfática contra o regime de Nicolás Maduro, sem descartar eventual apoio a uma intervenção liderada pelos Estados Unidos, os militares brasileiros vêm repetido que o governo deve se fiar em pressão diplomática e não em usar a força contra o país vizinho.

Um episódio que gerou grande desconforto entre a ala militar e a olavista foi a decisão de Ernesto Araújo de cessar a cooperação militar entre Brasil e Venezuela. Para as Forças Armadas, a medida ignorou importantes ações de cooperação entre os dois países no combate ao tráfico de drogas, de mercadorias e ao desmatamento ilegal da Amazônia.

“Apesar das divergências ideológicas, a relação entre militares brasileiros e venezuelanos na fronteira era boa. E havia ações importantes em andamento que de uma hora para outra foram interrompidas”, disse uma fonte do Itamaraty, que acompanhou a reação dos militares.

Durante visita aos Estados Unidos, no mês passado, Bolsonaro afirmou que o Brasil poderia “dar apoio logístico” aos americanos, caso decidam intervir militarmente na Venezuela para retirar Maduro do poder. A hipótese é vista com cautela pelos militares.

Uma semana depois da declaração de Bolsonaro, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, se reuniu com o secretário de Defesa dos EUA, Patrick Shanahan, e disse que intervenção militar “não é uma hipótese” que o Brasil “esteja considerando”.

“O Brasil procura uma solução pacífica e rápida à crise na Venezuela”, afirmou.

Como resolver as divergências?

Segundo o professor da Universidade de Harvard Scott Mainwaring, que estuda política brasileira há mais de 30 anos, quase todos os governos apresentam divisões na própria coalizão.

No entanto, para ele, as divergências no governo Bolsonaro parecem ter se manifestado cedo e ser profundas.

“Claro que todos os governo em democracias são, em alguma medida, heterogêneos. O que é diferente no caso Bolsonaro é que existem divisões profundas em questões fundamentais, inclusive na política externa.”

Segundo ele, em governos comandados por setores que discordam fortemente entre si, o que costuma acontecer é que, com o tempo, uma ala acabe “derrotando” a outra.

“O que normalmente ocorre é que, ao longo do tempo, há vencedores e derrotados. Ou seja, uma ala ganha maior controle sobre o governo que a outra”, diz.

Outra possibilidade é que haja uma divisão mais clara de prerrogativas, com um setor intervindo menos ou nada na seara do outro.

O problema é que nem militares nem olavistas parecem se contentar em se ater às atribuições específicas dos respectivos ministérios.

Foto: UESLEI MARCELINO/REUTERS

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

seventeen + 9 =