Se o governo quiser resolver os problemas do Nordeste, terá que enfrentar a indústria da seca. Entrevista especial com João Abner Guimarães Júnior

Por: Patricia Fachin, em IHU On-Line

A expectativa de que a nova gestão do governo federal pudesse tratar as pautas históricas do semiárido, como a gestão dos recursos hídricos do Nordeste e a seca, embasadas em critérios técnicos, rompendo com as políticas praticadas nos últimos anos, foi frustrada até o momento, porque a “máquina da indústria da seca está presente dentro do governo, com todos os seus agentes que formam uma grande rede de proteção que mantém essa política independentemente de quem seja o presidente”, lamenta João Abner Guimarães Jr, professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Segundo ele, apesar de a maioria dos governos estaduais do Nordeste serem da oposição, “não parece haver nenhum conflito entre eles e o governo federal em relação a como proceder com as questões do semiárido”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o engenheiro comenta a proposta do governo federal de fazer uma parceria com Israel para dessalinizar a água no Nordeste. A iniciativa, avalia, sinaliza uma “mudança substancial de postura do novo governo, que deve ser reconhecida” à medida que há uma “valorização das questões técnicas para tratar do semiárido”. Entretanto, pondera, “são poucas as situações no Nordeste em que se justificaria um projeto grande de dessalinização da água”, como acontece em Israel.

Na avaliação de João Abner, “o erro” do governo “é pegar uma solução que é pontual, que irá atender a problemas pontuais do Nordeste, e apresentá-la como uma solução generalizada para o semiárido”. Para ele, a principal contribuição que Israel pode dar ao Brasil é como fazer a gestão dos recursos hídricos. “Antes de tudo, em Israel investiu-se num grande programa de redução de perdas do sistema de abastecimento urbano e depois, num outro programa de reúso de água: toda a água que é produzida é reutilizada, principalmente para a irrigação. Então, é um sistema muito eficiente, que envolve a gestão pública com investimentos privados. É exatamente o contrário do que se quer fazer no Nordeste: temos no Nordeste um desperdício altíssimo no abastecimento de água urbano, que está acima de 50%, e um índice de reutilização baixíssimo, próximo a zero. Enquanto isso, temos água em abundância, mas falta investimento em sistemas adutores integrados para que se possa, num caso de seca extrema, ter acesso à água dos maiores reservatórios. Ou seja, é um problema político”, conclui.

João Abner Guimarães Júnior é doutor em Engenharia Hidráulica e Saneamento e professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Sobre a transposição do Rio São Francisco, publicou diversos artigos, tais como A transposição do Rio São Francisco e o Rio Grande do NorteO lobby da transposição e O mito da transposição.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Já é possível vislumbrar, no discurso do novo governo, como serão tratadas as principais pautas para o semiárido?

João Abner Guimarães Júnior – Apesar de ainda não ter enxergado um critério razoável para avaliar o momento político do Brasil, depois do vendaval dos últimos anos, mesmo assim, imaginei que na área dos recursos hídricos do Nordeste – NE, o novo governo, de certa forma livre dos compromissos com a indústria das secas, poderia valorizar os aspectos técnicos frente aos políticos no desenvolvimento das políticas públicas nessa área.

Apesar disso, houve uma mudança substancial de postura do novo governo, que deve ser reconhecida, com a procura de um intercâmbio com Israel. Isso é o que talvez mostre que há uma valorização das questões técnicas para tratar do semiárido, porque até então as questões do semiárido tinham a marca secular da indústria da seca, da indústria das grandes obras hídricas que são feitas no Nordeste, com deficientes critérios técnicos. Esse foi o caso do programa desintegrado de açudagem no NE, que terminou derivando na transposição do rio São Francisco, e essa é a marca da indústria da seca que vem prevalecendo nas últimas décadas.

Na segunda metade do século passado, houve uma tentativa de mudança nesse cenário, com a criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – Sudene, porque existia um grupo dentro da Sudene que era crítico à indústria da seca. Mas hoje tem prevalecido a política hidráulica, em que a questão da transposição é uma pauta única.

Então, o fato de o governo Bolsonaro ter, desde o início, procurado evidenciar a experiência de Israel é um aspecto positivo. Porém, vejo que a máquina da indústria da seca, que no passado comparei a uma espécie de doença infecciosa viral, está presente dentro do governo, com todos os seus agentes que formam uma grande rede de proteção que mantém essa política independentemente de quem seja o presidente. Esses agentes continuam presentes dentro do governo Bolsonaro e tudo indica que eles continuam dando as cartas e, nesse sentido, não vejo mudança nenhuma.

IHU On-Line – O novo governo não dá sinais de romper com a indústria da seca?

João Abner Guimarães Júnior – Não vejo nenhum sinal nesse sentido. Imaginei que a busca de uma alternativa tecnológica de experiência para o semiárido nos traria uma mudança em termos de políticas, mas não está havendo uma mudança, porque quem está dando as cartas é a base de técnicos que estava presente nos governos passados e que continua dentro da estrutura do Estado. A discussão dos problemas do semiárido tem que ser mais técnica do que política; infelizmente, tudo indica que isso não vai acontecer. Basta ver a própria ênfase que se dá a um projeto como o da transposição, um projeto inviável, restrito, caríssimo e interminável. Isso mostra a importância dos questionamentos que nunca foram aceitos.

Apesar de termos, aparentemente, os estados do Nordeste como uma grande concentração de governos que são opositores do governo federal, não parece haver nenhum conflito entre eles e o governo federal em relação a como proceder com as questões do semiárido. A base estadual do Nordeste permanece praticamente integral e na linha federal não houve mudança nenhuma: a estrutura da Agência Nacional de Águas – ANA e do então Ministério da Integração, que agora passou para a pasta do Ministério do Desenvolvimento, continua a mesma.

Para mudar essa situação, o governo federal precisaria abrir um diálogo com a área técnica crítica do projeto tradicional, com as universidades, mas até agora isso não aconteceu. Nesse caso, é provável que se vá comprar o pacote que vinha sendo difundido pelos últimos governos e, assim, dificilmente terá alguma mudança em relação a isso. Basta ver que está se anunciando um Plano Nacional de Segurança Hídrica para o Nordeste, que é a mesma repetição da política que vinha sendo desenvolvida nos governos passados. O lobby da transposição do rio São Francisco está presente em todos os estados e dentro do governo federal também, então ao apresentarem esse Plano de Segurança Hídrica, colocam a transposição como carro-chefe, o que é uma distorção, um absurdo.

IHU On-Line – Tecnicamente, o que representaria uma mudança para tratar dos problemas do semiárido?

João Abner Guimarães Júnior – Primeiramente seria preciso reconhecer a autossuficiência hídrica da região e depois definir em qual ambiente vamos trabalhar. Por exemplo, a Constituição menciona que a prioridade como política é o aspecto do desenvolvimento sustentável, assim, primeiro seria necessário definir qual é o princípio que guiará a política pública de água para o semiárido. Por exemplo, se vamos promover o desenvolvimento sustentável, é preciso garantir os usos prioritários da água, como o uso para consumo humano e animal, urbano e rural.

Vivenciamos recentemente no Nordeste a experiência da maior seca dos últimos 100 anos, portanto, temos um bom diagnóstico do problema e sabemos onde tem e onde não tem água. A experiência dessa seca provou que em 100% do Nordeste existe água para o consumo humano. Por exemplo: o Rio Grande do Norte – RN atravessou essa seca com a maior reserva de água do Nordeste Setentrional, acima do Rio São Francisco — até hoje o armazenamento daBarragem Armando Ribeiro Gonçalves no RN é maior do que a soma das águas dos Açudes Orós e Castanhão juntos, os outros dois maiores do NE. Também está provado que, mesmo com essa seca, foi possível realizar atividade de irrigação na região, a qual consome cerca de 70% da água disponível. Houve, inclusive, uma ampliação das áreas irrigadas no RN, porque os produtores do Ceará que fugiam da seca vieram para o Rio Grande do Norte. Então, se tivemos água para a irrigação durante a maior seca da história, isso mostra que não deveríamos ter problemas de falta d’água no Rio Grande do Norte. No Ceará, se tivesse sido aplicada a legislação vigente do estado, deveriam ter parado com a entrega de água para a irrigação a partir do quarto ano de seca, mas o Estado continuou entregando água até o ano passado e isso comprometeu o abastecimento humano, gerando um altíssimo risco de colapso de abastecimento na região metropolitana de Fortaleza. Então, temos que definir qual é o cenário: se o objetivo for investir no desenvolvimento sustentável, os usos menos prioritários têm que ser restringidos nos períodos críticos. Se conseguirmos fazer isso, então será possível conviver muitos anos com o problema de água no Nordeste.

IHU On-Line – Uma das promessas de campanha de Bolsonaro é dessalinizar a água em várias regiões do Nordeste para garantir o acesso à água aos nordestinos. Muitos especialistas criticaram essa medida, afirmando que o processo de dessalinização não é uma novidade no sertão. Pode nos dar um panorama sobre como esse processo de dessalinização ocorre hoje na região? Há alguma novidade na proposta do presidente?

João Abner Guimarães Júnior – Existem questões diferenciadas em relação a esse processo de dessalinização. No Nordeste temos essa experiência há mais de 15 anos, com pequenos sistemas de dessalinização usados para atender demandas rurais, principalmente para o consumo humano, a partir de poços com água salobra. Esse é um programa financiado pelo Banco Mundial. O grande problema desse sistema [de dessalinização], além do custo da energia, é a manutenção, porque periodicamente é preciso substituir as membranas filtrantes desses sistemas, que é a parte mais cara do equipamento. Geralmente, esse tipo de sistema funciona bem, mas quando chega no momento de substituir as membranas, eventualmente faltam recursos para comprar membranas novas.

dessalinização da água no interior é um processo complicado, mas essa também não é a realidade de Israel: Israel dessaliniza água do mar, no litoral. Em termos de escala também há uma diferença entre o que se faz no Brasil e em Israel: Israel tem grandes unidades de dessalinização e dessaliniza milhares de litros de água por segundo; o país tem um grande programa de dessalinização para abastecimento humano das cidades costeiras. No Brasil tentam associar esse programa de dessalinização da água do mar para abastecer cidades costeiras em Israel com o programa difuso que existe para abastecer o setor rural no semiárido.

IHU On-Line – Esse programa seria positivo para o Brasil em alguma medida?

João Abner Guimarães Júnior – São poucas as situações no Nordeste em que se justificaria um projeto grande de dessalinização da água. Uma delas seria o abastecimento da região metropolitana de Fortaleza, porque hoje o Castanhão está com menos de 5% e é preciso abastecer quatro milhões e meio de pessoas. O erro é pegar uma solução que é pontual, que irá atender a problemas pontuais do Nordeste, e apresentá-la como uma solução generalizada para o semiárido. Se a dessalinização for feita no litoral, ela tem pouco a ver com o semiárido.

IHU On-Line – Então essa não é uma medida efetiva para resolver os problemas do semiárido?

João Abner Guimarães Júnior – Falta projeto, falta entendimento do problema. Se o governo quisesse enfrentar o problema do Nordeste, teria que reconhecer que o problema perpassa pelaindústria da seca e vem se arrastando há décadas. Por trás dessa indústria existem interesses que envolvem casos de corrupção voltados para as grandes obras. Veja as políticas que vinham sendo desenvolvidas no Nordeste pela indústria da seca e a própria transposição do Rio São Francisco. É preciso enfrentar a transposição, que é uma obra absurda e cheia de problemas, que vão estourar no governo Bolsonaro quando de fato começar a funcionar precariamente. Se esse governo se propõe a ser um governo de mudança, ele deveria se debruçar sobre os projetos que vêm sendo desenvolvidos com o apoio da indústria da seca no Nordeste. Temo que o governo não queira enfrentar essas questões e use o projeto de Israel como uma fuga. Para mudar, tem que enfrentar a indústria da seca no Nordeste.

IHU On-Line – O senhor tem dito que a experiência de Israel pode ensinar algo ao Brasil sobre a gestão dos recursos hídricos. O que o Brasil poderia aprender com Israel acerca da gestão dos recursos hídricos?

João Abner Guimarães Júnior – O principal ponto é a questão da gestão, porque em Israel oprojeto de dessalinização da água é feito em larga escala e com investimento privado. Antes de tudo, investiu-se num grande programa de redução de perdas do sistema de abastecimento urbano e depois, num outro programa de reúso de água: toda a água que é produzida é reutilizada, principalmente para a irrigação. Então, é um sistema muito eficiente, que envolve a gestão pública com investimentos privados. É exatamente o contrário do que se quer fazer no Nordeste: temos no Nordeste um desperdício altíssimo no abastecimento de água urbano, que está acima de 50%, e um índice de reutilização baixíssimo, próximo a zero. Enquanto isso, temos água em abundância, mas falta investimento em sistemas adutores integrados para que se possa, num caso de seca extrema, ter acesso à água dos maiores reservatórios. Ou seja, é um problema político. Israel tem muito a nos ensinar nessa área de gestão e deveríamos estar preocupados em aprender tanto com a tecnologia quanto com a gestão da água de Israel.

IHU On-Line – O senhor costuma dizer que a maior seca observada no Nordeste nos últimos anos é pouco estudada e divulgada. Quais são as lições dessa seca e como, a partir dos seus resultados, é possível elaborar políticas para o semiárido?

João Abner Guimarães Júnior – Perdemos uma grande oportunidade. Esta última seca, que foi a maior da história, foi a menos estudada, e atravessamos esse período como se não estivéssemos enfrentando a maior seca da história. Os problemas sociais que apareciam antes não afloraram agora porque a falência da economia agrícola do semiárido esvaziou o campo, assim o problema social passou a ser menor pelo esvaziamento do campo, e também porque os programas rurais e sociais, como o Bolsa Família, criaram um guarda-chuva que protegeu a pequena população que permaneceu no campo. Essa realidade da seca não foi estudada e em parte isso aconteceu porque os governos estaduais e o governo federal desestimularam o estudo dessa problemática pela própria indústria da seca, que nunca esteve tão forte como agora no Nordeste. Praticamente, em todas as reuniões que aconteceram no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas para tratar sobre a questão da seca, tinham como item número um a transposição do São Francisco, para não eliminar o fluxo de caixa para a transposição. Foram sete anos de uma pauta única. No final, a transposição não acabou e nós atravessamos a seca. Agora vai começar um período de “vacas gordas” e a transposição vai continuar. Acontece que quando as chuvas se normalizarem no Nordeste, recuperando as águas dos reservatórios, essa obra não vai ter função nenhuma.

No Rio Grande do Norte, todas as cidades da Região Alto Oeste foram condenadas a ficar sem água e a solução natural para resolver o problema de acesso à água seria a construção de uma adutora da barragem de Santa Cruz, a segunda maior do Estado, para abastecer essas cidades, mas essa adutora não foi feita para não atrapalhar a continuidade da obra da transposição. Infelizmente o governo atual não está enxergando isso, indicando que não mudou nada.

IHU On-Line – Por que a indústria da seca desempenha esse papel central a ponto de impedir o estudo de alternativas à problemática da seca?

João Abner Guimarães Júnior – Comentei anteriormente da rede de proteção que existe em torno dessa indústria. Essa rede de proteção está presente em vários lugares, como na mídia: a verba de publicidade dessas obras contamina as matérias jornalísticas que são feitas pela grande mídia. Nos veículos são publicadas apenas matérias jornalísticas que abordam positivamente a questão da transposição quando a matéria é oficial. Quase nenhum veículo abre espaço para discutir a transposição do São Francisco a não ser por meio de matérias jornalísticas que representam a publicidade oficial. Nessa rede de proteção também estão envolvidos todos os governadores do Nordeste Setentrional — governos de Pernambuco, da Paraíba, do Ceará e do Rio Grande do Norte. Além disso, temos dentro do Ministério e dos órgãos públicos pessoas que são indicadas pela classe política do Nordeste e que fazem parte dessa rede de proteção junto com os políticos com mandatos. Durante muitos anos isso foi alimentado, em parte, pelo financiamento de campanhas eleitorais, mas não sei se isso irá continuar após tantos escândalos.

Nós poderíamos ter aproveitado esses sete anos de seca para forçar uma mudança de política. Mas agora, com o término dessa seca, esse exercício vai ficar apagado e a indústria da seca vai se fortalecer mais ainda no Nordeste, principalmente se o governo atual não demonstrar disposição de mexer nisso.

Reassentamento Alagamar em Jaguaretama, no Ceará

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