Série M: Um dia de trabalho e o dia do Trabalho na grande mídia brasileira

Por João Feres Júnior, no Manchetômetro

Um observador razoavelmente isento concordaria com a assertiva de que as manifestações do 1º de maio deste ano (2019) constituem evento de interesse público, particularmente em um contexto de alta politização das questões trabalhistas causada pela tramitação da Reforma da Previdência no Congresso Brasileiro. Os jornais grandes do país, O Globo, Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo, tem noticiado exaustivamente todos os detalhes da mencionada reforma. Seria de se esperar que também dessem voz aos trabalhadores nesse dia icônico para o movimento sindical em quase todo o mundo. Sem abusar do spoiler, não é exatamente o que encontramos nas edições do dia seguinte, 2 de maio.

Comecemos pelas capas. O Globo e Estado ignoraram solenemente o evento. O jornal carioca traz manchete em letras garrafais anunciando que “Governo lançará medidas de estímulo à economia”, encabeçando chamada que parece bem mais uma propaganda oficial. Duas fotos grandes dividem o espaço da capa, uma de Juan Guaidó discursando em manifestação na Venezuela e outra sobre confrontos entre manifestantes no 1º de Maio de Paris.

O Estado de S.Paulo estampou foto enorme sobre manifestação na Venezuela e várias chamadas para notícias sobre o assunto, enquanto a manchete chama atenção para a alta no preço da gasolina. Mas em sua capa não há nada sobre o Dia do Trabalho.

Somente a Folha de S.Paulo colocou uma referência na capa, mas ela é breve, bastante indireta e algo negativa: abaixo da foto de 5 supostos desempregados com caras bastante apreensivas lê-se o título “Pouca festa, pouco emprego”. Ou seja, a frase passa a impressão de que as manifestações foram nanicas (pouca festa). Abaixo do pequeno título lê-se: “Desempregados em evento das centrais sindicais para marcar o Dia do Trabalho em SP relatam dificuldades”. Para além do conteúdo informativo bastante óbvio de desempregados enfrentarem dificuldades, chama atenção o fato de que a chamada só fala deles e não dos trabalhadores com emprego e de suas demandas.

A Folha publicou reportagem sobre as manifestações, mas a relegou para a página A19 da edição. Lá encontramos o seguinte título: “Sem dinheiro, centrais fazem evento unificado com discursos divergentes” e subtítulo “Líderes defendem união de entidades, mas posições sobre reforma da Previdência”. Título, subtítulo e boa parte da matéria são concebidos com o fito de mostrar a desunião entre os trabalhadores no que toca a Reforma da Previdência, ainda que a tônica do evento tenha sido criticá-la veementemente.  A parte final é reservada para relatos de desempregados, ecoando a chamada de capa. A matéria de fato informa que é a primeira vez em muitos anos que as centrais promovem manifestação unificada, relata também a posição de cada uma frente a reforma proposta pelo governo. Por que será, então, que os dois fatos aparentemente mais salientes do evento, que são a unificação do protesto e a rejeição da reforma, são preteridos no anúncio de capa? A pouca visibilidade na capa e a colocação da notícia no miolo do jornal mostram claramente que a política de agendamento da Folha é de o ponto de vista e as ações dos trabalhadores como coisas corriqueiras ou que não merecem destaque frente aos outros assuntos.

O Globo também publicou reportagem sobre as manifestações, mas como seu par paulista, a relegou para página secundária da cobertura, no seu caso a 7. A matéria, adornada com pequena foto de uma manifestação massiva e colorida no vale do Anhangabaú, parece ter sido escrita por duas pessoas com objetivos diversos. A primeira parte descreve a manifestação como um ato político das centrais sindicais e da esquerda, unificados no rechaço ao governo Bolsonaro e a seu plano de reforma da previdência. O redator do texto não faz uso de estratégias retóricas para tentar mostrar falta de unidade e cacofonia entre os vários atores sociais. Mas em seu segundo terço, a reportagem se transforma em uma defesa radical da reforma da previdência como única via para se salvar o Governo Federal do caos financeiro e assim preservar as políticas públicas essenciais. O registro é inteiramente diferente, não mais de um jornalista relatando um evento ao leitor, mas de um colunista falando diretamente ao leitor.

O Estado de S.Paulo faz o mesmo que seus pares, noticia o fato em página interna remota, a de número 6. A foto também é reduzida, mas seu título informa a quantidade de pessoas reunidas em São Paulo: 200 mil. O título da notícia é bastante raro, “Paulinho liga reforma à reeleição de Bolsonaro”, e a maior parte de seu texto é gasto em relatar o discurso do deputado e líder sindical Paulinho da Força e sua repercussão no mundo político. Paulinho teria dito que a reforma precisa ser desidratada para que Bolsonaro não se reeleja em 2022. 5/6 do texto é gasto com essa narrativa, restando um curto final para relatar o evento, ressaltando a união das centrais e o foco antigoverno dos discursos proferidos.

Novamente a grande imprensa brasileira demonstra vícios em seu procedimento profissional que são bastante danosos ao debate público e, consequentemente, à democracia em nosso país.

Primeiro, do ponto de vista mais externo, comportam-se do mesmo modo, agem em bando, repetindo as mesmas práticas como se fossem combinadas. Isso evidencia um problema sério, conhecido na literatura de estudos de mídia como falta de pluralidade externa: o público não tem fontes divergentes para poder comparar e formar seu melhor juízo sobre o assunto.

Segundo, o agendamento da matéria é bastante suspeito. Ora, em uma data tão importante, um evento que trata do assunto doméstico mais relevante do momento, inclusive segundo a cobertura dos próprios jornais que não se cansam de falar da Reforma da Previdência, a voz dos trabalhadores é relegada a segundo plano — logo a daqueles que serão afetados diretamente pela Reforma da Previdência. Tal opção de agendamento configura forte viés e politização dos meios. Não é coincidência que um estudo da cobertura da Reforma da Previdência do Manchetômetro, em fase de conclusão, mostra a quase ausência do ponto de vista dos trabalhadores nas matérias e textos de opinião.

A variável agendamento é a mais determinante nessa cobertura. Novamente agindo em bando, os jornais relegaram a parca cobertura que fizeram para as páginas remotas de suas edições. O Estado praticamente dedicou uma simples nota ao evento. O Globo e Folha deram matéria um pouco maior, mas com conteúdo enviesado, como mostramos a seguir ao comentar o enquadramento.

O terceiro fator, o enquadramento da notícia, divergiu de jornal para jornal. A Folha foi o periódico que deu mais detalhes sobre o evento, mas se esforçou para mostrar falta de coerência e coesão entre as centrais sindicais. O Globo noticiou o ocorrido como se a posição das centrais de rechaço da reforma fosse irracional, pois contrária à sua necessidade supostamente inquestionável. O Estado reduziu a cobertura do assunto quase que inteiramente à discussão sobre uma declaração de um líder sindical conservador, Paulinho da Força.

Os jornais grandes brasileiros são consumidos diretamente por uma parcela pequena da população, mas, ao mesmo tempo, são índices bastante fidedignos do conteúdo das cobertura da imprensa em geral, pois sua pauta ecoa fortemente em todo sistema de mídia e eles mesmos pertencem a empresas jornalísticas proprietárias de uma miríade de outros meios, que reproduzem os conteúdos que produzem.

A crise da democracia brasileira surpreendeu alguns observadores. Ela é vista muitas vezes como o produto de um sistema político disfuncional, daí o clamor contínuo de reforma política advindo de vários setores sociais. Poucos, contudo, atentam para o fato de que nossa esfera pública é altamente disfuncional, pois é dominada por meios de comunicação que distorcem e perversamente politizam a informação. Quando ignoramos esse problema, somos incapazes de ver que aquilo que se manifesta como mazela do sistema político pode ter sua origem fora dele.

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