ATL em Brasília se estendeu a Itamarati, no Amazonas

Por Ligia Apel*

A resistência aos ataques aos direitos indígenas conquistados e garantidos pela Constituição Federal de 1988 vem se fortalecendo a cada ação dos povos originários, seja em âmbito nacional, seja nos municípios e/ou nas aldeias onde vivem os povos que constituem essa parcela da sociedade brasileira.

O abril indígena desse ano foi marcado por ações e manifestações em todo o território nacional. Em Brasília, na Semana de 23 a 26, aconteceu o Acampamento Terra Livre (ATL). Realizado por lideranças indígenas de todos os estados há 15 anos, o ATL 2019 reuniu mais de 4 mil indígenas que mostraram ao país, um Brasil que grande parte do Brasil desconhece. Uma diversidade cultural e linguística legitimamente brasileira que se mostra ao mundo para dizer “estamos vivos e continuaremos em luta em âmbito local, regional e internacional”, declara o documento final do ATL. . Um acampamento que dá o seu grito de guerra: “Sangue indígena, nenhuma gota a mais”.

A, aproximadamente, 2 mil km de Brasília, em Itamarati no Amazonas, nos mesmos dias, os povos Deni e Kanamari uniram-se à luta dos ‘parentes’ do ATL, realizando, na sede do município, diversas atividades com o mesmo objetivo: fortalecer a luta e mostrar ao mundo onde vivem, como vivem e exigir que seus direitos e sua vida sejam respeitados. Rodas de conversa com estudantes nas escolas, apresentações culturais, caminhada, entrevistas na rádio da cidade e incidência política junto ao prefeito e vereadores de Itamarati marcaram a Semana dos Povos Indígenas desse ano.

As atividades da Semana dos Povos Indígenas fazem parte do projeto  “Garantindo a defesa de direitos e a cidadania dos povos indígenas do médio rio Solimões e afluentes”, realizado pela Cáritas da Prelazia de Tefé e Conselho Indigenista Missionário (CIMI-Tefé), financiado pela União Europeia e CAFOD, Agência Católica para o Desenvolvimento Internacional.

Crianças e jovens estudantes: surpresa e admiração.

As Escolas Francidene Soares Barroso (Estadual) e Francisca Gomes Lobo (Municipal ) receberem os indígenas Deni e Kanamari com respeito, curiosidade e admiração. O presidente da Associação do Povo Deni do rio Xeruã (Aspodex), Pha’Avi Hava Deni, da Aldeia Boiador, diz que foi importante responder as perguntas curiosas dos estudantes. “Eles têm curiosidade em conhecer a nossa vida e eu gostei de explicar para eles. É importante dizer a eles como nós protegemos as coisas da natureza que tem em nosso território”, disse o Deni depois de explicar que os peixes, como o pirarucu, o tambaqui e a pirapitinga por exemplo, voltaram a se reproduzir e crescer depois que a terra indígena Deni foi demarcada e protegida pelos indígenas. Antes do território demarcado, essas espécies estavam escassas pela pesca predatória e sem manejo. “Hoje, todos os lagos têm muito peixe. Os Deni fazem manejo do pirarucu e tem muita fartura, tanto que durante o inverno o peixe que sai dos lagos do rio Xeruã é que traz fartura para o município”, explicou Pha’Avi aos estudantes, recebendo olhares de admiração.

O tema Educação Escolar Indígena também recebeu manifestações de admiração e respeito. O professor indígena da aldeia Boiador, Umada Kuniva Deni, explicou aos estudantes que “nas escolas, os estudantes indígenas aprendem o português e muitas lições dos não indígenas para poderem entender e poder conviver com eles, mas que nunca vão deixar sua língua materna”. Explicou que “o aprendizado acontece primeiro na sua língua e só depois aprendem o português”. Em meio às explicações, um dos estudantes manifestou sua admiração: “puxa, como vocês são inteligentes!”. Admiraram-se, também, por serem dois povos – Deni e Kanamari – com línguas e costumes próprios de cada um. Pediam aos indígenas que falassem na língua os nomes de diversos animais e aprenderam algumas palavras.

Umada também falou sobre a saúde indígena e da importância da SESAI, órgão responsável pelo atendimento à saúde nas aldeias, e dos Agentes Indígenas de Saúde (AIS), “que são indígenas escolhidos pelo povo para representar o povo na fiscalização e levantamento dos problemas de saúde nas aldeias”. A liderança Kavarivi Minu Deni explicou as danças e rituais, e a função do pajé, “que é o médico das doenças do povo”. Disse que “a equipe de saúde da SESAI e os AIS são necessários para as doenças que não são do povo, aquelas que vieram com os brancos”. Os estudantes compreenderam a necessidade dos indígenas serem atendidos em suas especificidades de saúde: “eles vivem em um ambiente diferente (a floresta) e, por isso, os problemas de saúde são diferentes”, falou um dos estudantes ao explicar o que entendeu da palestra.

Quanto às festas tradicionais, as danças, os adereços, pinturas, cantos e toda a cultura indígena, a explicação veio do professor indígena e secretário da ASPODEX, Sumurivi Hava Deni, da aldeia Itauba: “Nas nossas festas é assim: os homens vão caçar e pescar, e as mulheres vão para a roça pegar macaxeira para fazer a caiçuma e preparam as comidas. Dançamos a noite toda no terreiro. Quando está para amanhecer, recomeçamos tudo de novo. É a mesma coisa durante todos os dias da festa e eu acho muito bom”.

As palestras e explicações dos indígenas aos estudantes se desenvolveram em clima de descontração que misturou curiosidade e admiração. A participação de todos, inclusive dos professores, foi intensa. Foram momentos que comprovaram que a informação correta sobre os povos originários e a interação entre indígenas e não indígenas  derruba preconceitos e favorece o respeito pela forma diferente de viver.

Depois das palestras em sala de aula, os indígenas convidaram a todos para a grande festa com danças Deni e Kanamari.

Ecoando sua voz pelas ondas do rádio

A Rádio Comunitária do Povo FM recebeu as lideranças indígenas e abriu espaço em sua programação para que falassem sobre as comemorações da Semana, mas acima de tudo, para falar com a sociedade de Itamarati sobre as ameaças e violações de direitos que sofrem e os desmontes das políticas públicas indigenistas nacionais conquistadas na Constituição Federal de 1988.

Umada Kuniva Deni, ao se apresentar, falou sobre o tema da Semana dos Povos Indígenas: Amazonas: Nossos Direitos, Nossa História, Nossa Vida, ressaltando a importância do cuidado com a terra e a natureza para que a humanidade continue a existir. Pha’Avi Hava Deni falou sobre a organização do povo Deni e sobre a ASPODEX, explicando as melhorias que aconteceram em suas vidas depois que o território foi demarcado: “Quando nossa terra foi demarcada, em 2003, só tinha 50 pessoas Deni no rio Xeruã. Hoje, já somos mais de 900. Sem nossa terra não somos nada, vamos acabar, por isso que nós cuidamos do território”.

Daora Kanamari, da aldeia Flexal, por sua vez, falou sobre o desenvolvimento do povo Kanamari: “nós temos três aldeias no rio Xeruã, na nossa terra Kanamari, na região do médio rio Juruá. Somos 231 indígenas Kanamari. Temos nossa língua, nossa cultura, nosso jeito de viver. Cuidamos da natureza porque é dela que tiramos nosso alimento, nossos remédios. Nós cuida da mata e ela cuida do nosso povo, para não faltar caça, nem peixe”.

Umada complementa, explicando que os direitos indígenas são constitucionais e que não vão parar de lutar por eles: “através da Constituição Federal nós conseguimos a demarcação. Foi um direito reconhecido pelo Brasil. Por isso nós estamos lutando pelo direito indígena. Vamos fortalecer o movimento indígena, porque é a terra que protege a população, protege a biodiversidade. A terra cuida da gente, também ela é nossa mãe. Sem terra ninguém vive, por causa disso que nós estamos cuidando de nossa terra”.

O poder público municipal assume compromisso como parceiro

O prefeito de Itamarati em exercício, Haroldo Gomes Maia, e os vereadores Francisco Selmo Andrade e Roberto Eliardo, foram convidados pelas lideranças indígenas Deni e Kanamari, para um diálogo sobre a realidade das políticas públicas indígenas que não estão sendo aplicadas aos povos de Itamarati. A reunião aconteceu no Centro de Convivência do Idoso.

Agradecendo o convite, Maia parabenizou os indígenas pela organização dos povos, suas representações e Associação, se colocando à disposição para ouvir as demandas indígenas. Selmo também parabenizou os indígenas pelo seu dia e enalteceu sua organização: “É animador ver os indígenas organizados da maneira que estão, fico feliz em ver que estão lutando por seus direitos. Vocês devem continuar assim, organizados e reivindicando, por que é assim que se conquista a efetivação dos direitos. Se não existir cobrança, as coisas não mudam”, afirmou o vereador, comentando as dificuldades que a atual gestão vem enfrentando, mas que, apesar disso, não pretende desistir de cobrar do executivo as melhorias necessárias para o povo.

A liderança Paru Kuniva Deni, da aldeia Morada Nova, explicou que está como vereador em exercício e disse que no tempo em que ficará no cargo, fará o possível para bem representar os povos Deni e Kanamari: “Como indígena, estou representando os povos Deni e Kanamari. Agora, sei como funciona a Câmara de Vereadores. Peço que me enviem documentos com os pedidos e reivindicações para poder levar para avaliação e votação na Casa. Todas as nossas conquistas foram alcançadas com nossa organização e muita luta”, disse, afirmando seu compromisso enquanto vereador indígena.

O representante indígena na Secretaria de Educação Escolar Indígena de Itamarati, Manoel da Silva Gomes (Pima), da aldeia Flexal, comentou os avanços da educação indígena e pediu aos ‘parentes’ que continuem organizados para alcançar outras conquistas: “Hoje, estão matriculados mais de 680 alunos indígenas e 41 estudantes indígenas concluíram o ensino fundamental. Queremos o ensino médio nas aldeias. Vamos continuar organizados para que a gestão municipal atenda essa necessidade”.

O presidente da ASPODEX, Pha´Avi Hava Deni, reconhece os avanços nas políticas de educação, mas é firme ao reivindicar transparência, seriedade e respeito com as políticas públicas indigenistas: “Queremos transparência no trabalho de vocês, seriedade e respeito com os povos indígenas. Temos a clareza de nossos direitos e sabemos quando vocês não cumprem o que falam”.

Em um diálogo franco e aberto, as lideranças seguiram denunciando descasos e cobrando as responsabilidades do município aos representantes do poder público, que assumiram o compromisso de atender todas as demandas:

  1. Parceria do município com a SESAI para a compra de alimentação para os pacientes em tratamento no Polo de Saúde da aldeia e na Casa de Saúde da cidade;
  2. Melhorias no atendimento do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS);
  3. Limpeza do caminho para a Terra Kanamari;
  4. Reforma das escolas. Não houve envio suficiente de telhas e pregos para a cobertura da escola e a secretaria, ironicamente, orientou que fossem reutilizados os pregos;
  5. Material escolar para todas as crianças matriculadas, pois os professores estão comprando com recursos próprios;
  6. Motores de luz para as aldeias Kanamari, uma vez que as aldeias Deni já receberam.

Uma caminhada para denunciar e sensibilizar

Encerrando as atividades da Semana, os povos Deni e Kanamari percorreram as ruas de Itamarati em caminhada, apresentando à sociedade suas reivindicações, denunciando as violações de direitos que sofrem e sensibilizando a população para a importância da demarcação e proteção dos territórios indígenas e para a garantia de seus direitos enquanto cidadãos brasileiros.

Durante a caminhada, as lideranças indígenas manifestaram suas apreensões e falaram sobre sua cultura, seus direitos, reivindicações, problemas e conquistas. A liderança indígena Miguel Kanamari, ecoa a voz dos povos Deni e Kanamari, afirmando a identidade dos povos originários: “Somos um povo com cultura própria, somos humanos e temos nossos próprios costumes. Respeitamos o modo de vida de todos os povos e queremos esse respeito também”.

As políticas indígenas nacionais assumidas pelo atual governo ameaçam tais direitos e, por consequência, ameaçam a sua existência. Mas, estão decididos a não permitir a expropriação de seus direitos conquistados. Nada os impedirá de continuar lutando, como finaliza o documento do Acampamento Terra Livre 2019: “Resistiremos, custe o que custar!!”.

*Com informações de Raimundo Francisco, Francisco Amaral e Fábio Pereira.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

onze − 5 =