Andam dizendo por aí que a ciência não é neutra

Em nome da luta, justíssima, contra visões colonialistas do saber, crescem teorias que negam a possibilidade de conhecer o real. É uma tendência retrógrada, que favorece a pós-verdade, as “fake news” e projetos como os de Bolsonaro e Trump

Por Marcos Barbosa de Oliveira, em Outras Palavras

Introdução

Em textos críticos da ciência moderna, ou da maneira como a ciência é praticada, ou de concepções cientificistas de ciência, encontra-se com frequência a alegação de que a ciência não é neutra. Essa tendência é muito pronunciada na corrente de pensamento pós-moderna conhecida, entre outras designações, como Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS; em inglês STS – Science, Technology and Society). Um problema com a alegação é que nunca se define explicitamente, ou fica claro implicitamente, o que se quer dizer quando se afirma que a ciência é, ou não é neutra. Ou, em outras palavras, qual o sentido do termo “neutro” aplicado à ciência. Daqui por diante, para simplificar a exposição, o termo “neutro” será usado no lugar de “neutro quando aplicado à ciência”, e analogamente, “neutralidade” estará no lugar de “neutralidade da ciência”.

Este ensaio tem três objetivos. O primeiro é preencher a lacuna apontada, propondo uma análise, segundo a qual o termo neutro é polissêmico, tem pelo menos cinco sentidos, cada um deles correspondente a um valor de X na proposição “a ciência é neutra porque X”. O segundo objetivo e discutir, para cada um dos sentidos, se de acordo com ele a ciência é ou não neutra. O resultado da discussão é o de que em três dos sentidos a ciência é, de fato, neutra; nos outros dois não. O terceiro objetivo é investigar as implicações da tese da não-neutralidade, particularmente tal como defendida pela CTS, no contexto da pós-verdade e da epidemia de fake news. A conclusão a que se chega é a de que a defesa da tese contribui para a disseminação da atitude da pós-verdade e a proliferação de fake news.

Antes de dar início a esse empreendimento, cabem algumas observações preliminares. A primeira é a de que a defesa da tese da não-neutralidade da ciência é claramente fruto de uma postura reativa: por que alguém proclamaria que a ciência não é neutra se ninguém sustentasse o contrário? Neste ponto nos deparamos com algo um tanto surpreendente, a saber, o fato de que não se encontram na literatura defesas explícitas da tese afirmativa, a tese de que a ciência é neutra. Entre os críticos, ela é atribuída, de maneira geral, a partidários de concepções cientificistas da ciência, e em particular aos positivistas. Os escritos dessa vertente são naturalmente o domínio em que haveria maior probabilidade de se encontrar defesas da tese da neutralidade. Provar a inexistência de algo é sempre mais difícil que provar sua existência. O que posso dizer é que nunca em minhas leituras encontrei a sentença “a ciência é neutra”, ou algo equivalente. Se alguém souber de um exemplo, agradeceria a indicação.

De qualquer modo, fica parecendo que a da neutralidade é uma tese que não tem adeptos, mas apenas críticos. Isso não significa, por outro lado, que não seja correto atribuir a adeptos de concepções cientificistas a defesa implícita da tese (dependendo do conceito de neutralidade adotado, naturalmente). Se houvesse uma defesa explícita da tese da neutralidade, ainda mais se viesse acompanhada de uma definição do termo, ela seria sem dúvida um ponto de partida tendo em vista o primeiro objetivo do ensaio. Não havendo, o caminho deve ser outro.

Primeiro sentido

O primeiro sentido do termo “neutro” corresponde à seguinte proposição: A ciência é neutra porque suas proposições – resultados de observações, leis, teorias, taxonomias, tabelas, etc. – são puramente factuais, não envolvem, ou implicam, juízos de valor.

O que está em jogo é o vetusto tema da distinção entre fatos e valores, que tem uma longa história na filosofia. Creio entretanto que, numa primeira aproximação, recorrendo a alguns exemplos, é possível demonstrar a veracidade da proposição. Eis os exemplos: “A velocidade da luz é 300.000 km/s”; “A carga do elétron é 1,6 x 10-19 C”; “A matéria atrai a matéria na razão direta das massas, e na razão inversa do quadrado das distâncias”. Parece-me evidente que enunciados como esses não têm conteúdo valorativo algum. Alguém acredita que a luz, o elétron e a matéria são melhores ou piores, do ponto de vista axiológico, em virtude de terem tais propriedades?

Por outro lado, é importante observar que tal constatação refere-se a uma concepção bem abstrata da ciência, uma concepção que a identifica com o conhecimento científico, e este com um conjunto de proposições na esfera das ideias. Ficam entre parênteses as condições e circunstâncias de sua descoberta, as pessoas que as aceitam, os usos práticos a que servem, etc. Mas nada há de intrinsecamente errado com as abstrações, que constituem a base de todo o pensamento conceitual. Neste primeiro sentido pode-se concluir portanto que a ciência moderna é, de fato, neutra.


Para deixar claro o significado dessa conclusão, é fundamental levar em conta que nem sempre foi assim. Nem sempre se fez a separação entre fatos e valores como se faz na ciência moderna. O sistema aristotélico, como se sabe, é impregnado de valores, presentes em conceitos valorativos como harmonia, perfeição, e meta; na preponderância das causas final e formal sobre as causas material e eficiente; na visão de mundo teleológica de que faz parte. As ideias de Aristóteles constituíam o núcleo do conhecimento medieval a partir do qual, e contra o qual, nasceu a ciência moderna. Um de seus aspectos centrais foi a separação entre fatos e valores responsável pelo caráter puramente factual de suas proposições.

A Revolução Científica foi fruto de ações humanas que, por sua natureza, podem ser avaliadas axiologicamente como benéficas ou nefastas. Tais considerações dão margem às seguintes perguntas: A separação entre fatos e valores é possível, e desejável em todas as esferas da experiência humana? Pode a factualidade das modernas ciências naturais ser estendida às ciências humanas? Deve ser posta como um ideal?

Não vou evidentemente propor respostas a essas perguntas. O objetivo ao levantá-las foi o de trazer à tona uma maneira dinâmica de se refletir sobre a separação entre fatos e valores em termos de processos, em que os seres humanos são atores. É uma maneira que contrasta com abordagens estáticas que, ou concebem fatos e valores como esferas hermeticamente separadas, ou sustentam que fatos e valores nunca se separam, ou algum meio termo entre esses dois polos. Na concepção aqui sugerida, trata-se de, em cada situação ou contexto, deliberar sobre a possibilidade e conveniência de separar fatos e valores.

Segundo sentido

Uma das alegações mais frequentes, e mais facilmente inteligíveis para o senso comum, a respeito da neutralidade da ciência é a de que a ciência é neutra porque pode ser usada para o bem ou para o mal. Ela ganhou grande destaque na esteira do lançamento das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. A intenção era, claramente, a de eximir a ciência – concebida separadamente de suas aplicações – da culpa pela atrocidade cometida. Mas, colocando entre parênteses a responsabilidade dos cientistas – vou tratar desse tema daqui a pouco – não há dúvida de que a alegação tem no mínimo um quê de verdade. É verdadeira no sentido de que, no caso, os conhecimentos da física nuclear, se por um lado levaram à fabricação das bombas, por outro tiveram aplicações claramente benéficas – no tratamento de várias formas de câncer, para ficar só com um exemplo. O mesmo vale para muitas outras teorias científicas. A teoria microbiana das doenças infecciosas representou um enorme avanço na medicina, mas gerou também a guerra bacteriológica. A teoria eletromagnética tem uma infinidade de aplicações úteis, mas a eletricidade pode ser usada em métodos de tortura. Além do mais, essa não é uma peculiaridade da ciência: qualquer conhecimento não-científico, qualquer artefato, ou objeto natural, também pode em princípio ser usado para o bem ou para o mal. Uma faca de cozinha serve para descascar batatas, mas igualmente para assassinar uma pessoa.

Por outro lado, enquanto blindagem da comunidade científica contra imputações de culpa pelas aplicações bélicas, a afirmação da neutralidade da ciência no sentido em pauta é pouco eficaz. A fraqueza decorre do fato de que a separação que isola a pesquisa científica de suas aplicações não implica que os cientistas não sejam co-responsáveis por elas – ao lado, naturalmente, dos órgãos do Estado detentores do poder de tomar decisões sobre o desenvolvimento e uso de tecnologias de guerra e, num sentido mais amplo, e mais fraco, de toda a sociedade. Havendo ou não a separação, enquanto cidadãos os cientistas têm o dever de assumir co-responsabilidade pelas aplicações da ciência, ainda em maior grau pelo potencial que têm de influir nas decisões, em virtude dos conhecimentos especializados que detêm, e do trabalho que realizam.

Sendo assim, do ponto de vista da crítica ao cientificismo, a alegação de que a ciência pode ser usada para o bem ou para o mal por um lado não pode ser refutada – devido às evidências a seu favor – mas por outro não precisa ser refutada. A alternativa que eu sugiro – mobilizando um conceito muito em voga atualmente – consiste em re-significá-la, interpretando-a não como blindagem da comunidade científica, mas como um reconhecimento de que a ciência não somente pode, mas muitas vezes é usada para o mal, com a implicação prática de que deve-se lutar para que isso não aconteça, para manter a ciência no caminho do bem.

Avançando nessa linha de pensamento, é fundamental levar em conta que ao dizer que a ciência pode ser usada para o bem ou para o mal, a referência é ao bem ou mal intencionais. No caso mais emblemático de uso para o mal, o das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, a intenção explícita era a de causar o máximo possível de destruição de bens e mortes de seres humanos. Acontece entretanto que a ciência pode causar, e efetivamente tem causado malefícios à humanidade, em virtude das consequências não-intencionais de suas aplicações, isto é, consequências além das previstas, que constituem o objetivo das aplicações. A ideia desse tipo de consequência remonta à Antiguidade, mas ganhou grande destaque na esteira de um artigo de Robert Merton, “The unanticipated consequences of purposive social action” (Merton, 1936). Um outro nome para a ideia de consequência não-intencional é efeito colateral, usado principalmente em relação a medicamentos. Assim como os efeitos colaterais de medicamentos, as consequências não-intencionais em geral podem ser benéficas ou nefastas.

No campo da Economia, o conceito análogo ao de consequência não-intencional é o de externalidade. Externalidades são as consequências de uma atividade econômica que afetam outras pessoas que não os produtores, independentemente da vontade delas. Assim como as consequências não-intencionais e os efeitos colaterais, as externalidades podem ser benéficas ou nefastas, positivas ou negativas. Entre as negativas, as mais graves são as que afetam o meio ambiente, causando os problemas das mudanças climáticas, da poluição da atmosfera, das terras, rios, lagos e oceanos; da redução da biodiversidade; da exploração dos recursos naturais não renováveis – enfim, acho dispensável prolongar essa lista1.

As causas da degradação do meio ambiente encontram-se no modo de organização da vida social e econômica como um todo. Desse ponto de vista, a característica fundamental tanto do capitalismo quanto do socialismo real é a valorização do crescimento econômico, em sua relação mutuamente reforçadora com o moderno valor do controle. Por outro lado, as atividades científicas não só fazem parte do sistema, mas desempenham um papel crucial na relação da sociedade com a natureza, por servirem de base para a criação de tecnologias que, implementadas por empresas, privadas ou estatais, produzem externalidades ambientais negativas. Sendo assim, pode-se concluir que a ciência é co-responsável pela degradação ambiental. Isso não significa, contudo, que a ciência não seja ao mesmo tempo imprescindível para a superação dos problemas ambientais. Em alguns casos, como o do buraco na camada de ozônio, a própria detecção do dano e seus efeitos na saúde humana é obra da pesquisa científica. A ciência é parte do problema, mas também parte da solução.

Todas essas considerações, é bom insistir, não afetam a validade do argumento de que a ciência é, de fato neutra, no sentido de que pode ser usada de forma a gerar tanto benefícios quanto malefícios.


Terceiro sentido

O terceiro sentido corresponde à proposição “a ciência é neutra porque é um valor universal.” Esse sentido é de fundamental importância no contexto das relações entre a cultura ocidental e as outras culturas da humanidade.

Historicamente, a concepção de ciência como valor universal constituiu um dos fundamentos do auto-entendimento da cultura ocidental como superior a todas as outras, o qual por sua vez servia para legitimar a colonização de outras regiões do planeta pelos países europeus. O processo de descolonização ocorrido no período pós Segunda Guerra veio acompanhado da denúncia da exploração, escravização e genocídio das populações colonizadas, sendo justo afirmar ter sido a ciência co-responsável por tais crimes contra a humanidade. O processo veio acompanhado também, por outro lado, da valorização das culturas não-ocidentais, da defesa da diversidade cultural como um fim em si mesmo, e do ideal de um debate igualitário entre as culturas, nenhuma se colocando a priori como superior. Evidentemente, se é condenável considerar uma sociedade inferior à ocidental por não envolver entre suas práticas o cultivo da ciência, então a ciência não é um valor universal.

Como parte desse movimento questionador, desenvolveu-se uma ampla mobilização, teórica e prática, em prol da valorização dos conhecimentos tradicionais e saberes populares. No plano da prática, floresceram iniciativas de colaboração entre equipes acadêmicas e comunidades carentes, tendo em vista a melhoria das condições de vida das comunidades. Em formas anteriores de ajuda humanitária, inspiradas no dogma da superioridade da ciência moderna, a interação consistia tipicamente na proposta, por parte da equipe acadêmica, de um pacote fechado de soluções tecnológicas para os problemas, sem levar na devida conta a organização social e a cultura, em particular os conhecimentos tradicionais das comunidades. Nas iniciativas em pauta, o que se propõe é a colaboração, a busca conjunta de soluções, envolvendo, de forma articulada, recursos da ciência moderna e conhecimentos tradicionais.

Outra faceta da posição que atribui à ciência um valor universal é a de que a ciência constitui a forma mais elevada ou mesmo a única forma genuína de conhecimento (e aqui estou falando particularmente das ciências duras, as naturais e a matemática). Esta postura é relevante também internamente à cultura ocidental. Ela desvaloriza não apenas conhecimentos de outras culturas, e saberes populares, mas também, no contexto acadêmico, de um lado, as humanidades – vistas como perfumarias; não apenas inferiores do ponto de vista epistemológico, mas desprovidas de importância econômica; de outro lado as ciências humanas, com base na avaliação de que não atingem a solidez epistemológica das ciência duras, mesmo quando as adotam como modelo e ideal.

À luz dessas considerações, nossa posição, concordando com os críticos do cientificismo, é a de que a ciência não é um valor universal.

Quarto sentido

A ciência é neutra porque as aplicações do conhecimento científico, em conjunto, favorecem equitativamente todas as sociedades e classes sociais.

São muitas as evidências de que a ciência não é neutra neste sentido. O exemplo mais evidente, e mais revoltante do ponto de vista da justiça social, dessa não-neutralidade é o das doenças negligenciadas. Doenças negligenciadas são as que ocorrem predominantemente em países pobres, e recebem uma proporção diminuta dos recursos para a pesquisa, uma vez que os medicamentos que resultariam das pesquisas não seriam rentáveis, dado o baixo poder aquisitivo das populações afetadas. A categoria inclui, entre outras, a doença de Chagas, a dengue, a esquistossomose, a leishmaniose e a lepra.

Segundo a OMS, cerca de 1,5 bilhão de pessoas no mundo são vítimas de doenças negligenciadas. Uma das formulações mais encontradas na literatura, chamada “falha (gap) 10/90” é a seguinte: 90% dos recursos para pesquisa vão para as doenças dos países ricos, onde moram 10% da população da terra; 10% para as doenças dos países pobres, onde moram 90% da população.

Segundo um artigo recente, de dois pesquisadores brasileiros,

“Entre janeiro de 2012 e setembro de 2018, 256 novos fármacos chegaram ao mercado, mas apenas oito, ou 3,1%, tinham como alvo doenças negligenciadas. A marca atual supera a do período entre 1975 e 1999, quando só 1,1% foi direcionado a elas, mas é menor que a do período de 2000 a 2011 em que 4,3% dos medicamentos novos eram voltados para as negligenciadas.” (Ferreira & Andricopulo, 2019, p. 126)

O caso das doenças negligenciadas é suficiente para determinar que a ciência não é neutra neste quarto sentido. Situa-se além dos limites deste ensaio o levantamento de outros casos do mesmo tipo, que daria uma medida da dimensão dessa falta de neutralidade

Quinto sentido

Primeira versão: A ciência é neutra porque é objetiva.

Este é o último sentido da sequência, mas não o menos importante. Pelo contrário, nos debates em que se confrontam diferentes concepções de ciência nas últimas décadas, é o mais crucial. Nesta primeira versão, a proposição tem algo de falso e algo de verdadeiro. Numa interpretação literal, ela caracteriza a objetividade como um atributo que a ciência possui como parte de sua essência – e isso é o que ela tem de falso. A peça central da interpretação correta, que torna a proposição verdadeira, consiste em conceber a neutralidade não como um atributo, mas como um valor, um ideal que se coloca como meta, a qual exige esforço para que seja atingida.

Com base nessa concepção, a interpretação correta pode ser expressa pela segunda versão da proposição, que diz: a ciência é neutra porque sustenta o valor da objetividade, adota normas de auto-regulação tendo em vista sua realização, e tem tido considerável sucesso nesse empreendimento.

As normas de auto-regulação estão contidas no método e no ethos científico. A norma crucial, do ponto de vista da objetividade é a que prescreve que, na escolha entre teorias, apenas os valores cognitivos devem ser usados como critérios e, entre eles, particularmente o valor da adequação empírica. Os valores sociais estão presentes nas atividades científicas, porém em outros de seus momentos (Lacey e Mariconda, 2014). A observância das normas mantém a busca do conhecimento no caminho da objetividade, numa luta constante para que valores sociais espúrios não interfiram no processo.

A interpretação proposta para a proposição “a ciência é neutra porque é objetiva” não é por si só suficiente para estabelecer que, de acordo com ela, a ciência é de fato neutra. A demonstração mais simples, mais inteligível e mais convincente para o senso comum é a que se baseia na eficácia das aplicações do conhecimento científico. Considere-se, por exemplo, as bombas atômicas. Independentemente dos juízos éticos a seu respeito, não há dúvida de que elas foram eficazes, não deram chabu, causaram efetivamente a destruição e o sofrimento com vistas aos quais foram projetadas e usadas como arma de guerra. É difícil imaginar que dispositivos tão complexos possam ter sido construídos com base em teorias que não sejam objetivas – ou, porque não dizer, verdadeiras – pelo menos do ponto de vista relevante. Com as devidas ressalvas, o argumento pode ser estendido até a gigantesca multiplicidade de tecnologias em que vive imersa a grande maioria dos seres humanos nos dias de hoje.

* * *

Não pretendo dar a questão por encerrada com base nesse argumento. Porém, em vez de aprofundar a discussão diretamente, me pareceu mais conveniente abordá-la de um outro ponto de vista, a saber, o do terceiro objetivo, anunciado no início, o de discutir as implicações da tese da não-neutralidade, tal como defendida pela CTS, no contexto da pós-verdade e da epidemia de fake news.

A CTS não se destaca pela coesão, dividindo-se em várias vertentes em disputa. Para nossos propósitos, é suficiente caracterizá-la em termos gerais, dizendo que nela predominam, de uma forma ou de outra, posições relativistasanti-realistas e irracionalistas. Relativistas porque negam o caráter objetivo do conhecimento científico, e desconstroem a ideia de verdade, passando a admitir o uso do termo apenas entre aspas. O anti-realismo figura da maneira mais direta e explícita na vertente construtivista, centrada na tese de que não apenas o conhecimento científico é uma construção social (o que ninguém de bom-senso contesta), mas também de que o objeto do conhecimento, os fenômenos que a ciência procura explicar, são construções sociais. O irracionalismo, por sua vez, consiste na interpretação do desenvolvimento da ciência não como um processo dotado de certa racionalidade, mas como uma disputa de interesses, cujo resultado é fruto da correlação de forças.

Passando ao tema da pós-verdade, a palavra – do inglês post-truth – entrou em cena no contexto das eleições do presidente Trump nos Estados Unidos, e do chamado Brexit no Reino Unido. Em fins de 2017 a firma Oxford Dictionaries a escolheu como palavra do ano. Para tratar com o necessário rigor as questões que nos interessam, é necessário partir de uma definição. Sem pretender um nível de rigor mais alto que o mínimo necessário, e usando o termo crença num sentido amplo, em que uma crença é qualquer proposição em que se acredita, proponho definir a pós-verdade como a atitude de não levar na devida conta a verdade, a concordância com as evidências, no processo de adoção de crenças. Indo um pouco além, pode-se dizer que a pós-verdade vem acompanhada da pós-validade: a atitude, no debate, de desconsiderar a validade dos argumentos, de raciocinar com falácias.


Para nossos propósitos convém distinguir a teoria da pós-verdade e a prática da pós-verdade. Uma teoria da pós-verdade é um conjunto de concepções articuladas que sustenta a prática da pós-verdade. A prática da pós-verdade, por outro lado, dispensa teorias. Dadas suas posições relativistas, anti-realistas e irracionalistas, que implicam a desconstrução do conceito de verdade, o ideário da CTS claramente inclui uma teoria da pós-verdade. A popularidade da teoria, entretanto, não implica que ela tenha contribuído concretamente para o advento da pós-verdade. Se isso aconteceu ou não é o tema de um pequeno ensaio de minha autoria publicado no site Outras Palavras no ano passado. O título original era “Relativismo científico e pós-verdade”, o título adotado pelo editor, “Pós-verdade: filha do relativismo científico?” Num livro publicado logo depois (Post-truth), o autor discute a questão, argumenta a favor de uma resposta afirmativa, que ele expressa, no final, dizendo “Portanto, o pós-modernismo é o padrinho (godfather) da pós-verdade.” (McIntyre, 2018, p. 150)

Entre os praticantes da pós-verdade encontra-se, no lugar de honra, o presidente Trump, notório por sua mendacidade, seu hábito de contar mentiras deslavadas.2 Da mesma categoria faz parte o presidente Bolsonaro, admirador e imitador assumido de Trump. Num plano mais geral, e desempenhando um papel de fundamental importância, são praticantes da pós-verdade todos os que acreditam em fake news – ou, como é hábito de Trump e Bolsonaro, taxam de fake news notícias verdadeiras publicadas na mídia. São praticantes também os adeptos de teorias conspiratórias flagrantemente fantasiosas; os que acham admissível a existência de fatos alternativos; os que desacreditam de conhecimentos científicos bem estabelecidos, incluindo os criacionistas, os adeptos da Terra plana, e – com trágicas consequências práticas –, os que rejeitam o uso de vacinas e os negacionistas do clima.

Como se sabe, nos últimos tempos a extraordinária proliferação de fake news vem sendo objeto de intenso debate público. A epidemia é estreitamente ligada à atitude da pós-verdade, mas a relação entre os dois fenômenos não é simples, merece uma rápida análise. No plano conceitual, eles são incompatíveis. “Fake” – em português, “falso” – e “verdadeiro” designam conceitos polares: um não existe sem o outro. Só faz sentido dizer que uma notícia é falsa se existirem, pelo menos como possibilidade lógica, notícias verdadeiras. Ou seja, o conceito de fake newspressupõe a verdade como critério na aceitação de crenças, contrariamente ao princípio da pós-verdade. Na prática, contudo, que dispensa teorias, não há incompatibilidade: a adoção da atitude de pós-verdade constitui uma das causas da epidemia de fake news – ao lado, naturalmente, do desenvolvimento da Internet, com suas redes sociais.

Estabelecido esse pano de fundo, retornemos ao tema da neutralidade. Para nossos propósitos, o crucial agora é o quinto sentido do termo neutro, correspondente à proposição “a ciência é neutra porque é objetiva”, ou, mais precisamente, como vimos, “A ciência é neutra porque sustenta o valor da objetividade, adota normas de auto-regulação tendo em vista sua realização, e tem tido considerável sucesso nesse empreendimento”. Dados os princípios da CTS – o anti-realismo, o irracionalismo e, mais diretamente, o relativismo –, pode-se dizer que, no contexto da CTS, a afirmação de que a ciência não é neutra, pelo menos em muitos casos, vale para o quinto sentido, ou seja, além de em outros possíveis sentidos, a ciência não é neutra porque não é objetiva.

Os conceitos de verdade e de objetividade são estreitamente relacionados . Em muitos contextos, “verdadeiro” e “objetivo” podem ser usados como sinônimos. Negar a objetividade da ciência como um caso particular de um questionamento do próprio conceito de objetividade implica negar também a verdade como critério de seleção daquilo em que se deve acreditar. A tese de que a ciência não é neutra no quinto sentido é portanto uma faceta da teoria da pós-verdade da CTS, e assim fomenta a prática da pós-verdade, contribuindo para a proliferação de fake news.

Num plano mais geral, não restrito à CTS, a alegação de que a ciência não é neutra, desacompanhada de uma definição do termo, deixando em aberto a possibilidade de que possa ser interpretada no sentido da não-objetividade, é água para o moinho da pós-verdade. Para todos os que não veem com bons olhos o advento da pós-verdade, que acham desastrosa a proliferação de fake news, que se opõem ao descrédito do conhecimento científico bem estabelecido, especialmente aos negacionistas do clima e da eficácia das vacinas, não convém portanto defender a tese da não-neutralidade sem uma ressalva que preserve a objetividade. Mais concretamente – por exemplo, no contexto dos problemas ambientais, dizer que a ciência não é neutra pode ser interpretado como implicando que as pesquisas certificadas pelo IPCC não são neutras; não sendo neutras, não são objetivas, e assim fica sendo uma questão de gosto (ou de interesse) acreditar ou não no aquecimento global antropogênico.

A defesa da tese da não-neutralidade, como observamos no início, é manifestação de uma postura crítica da ciência, ou da maneira como a ciência é praticada, ou de concepções cientificistas da ciência. Admitindo que algumas das críticas são procedentes, pode-se mostrar, entretanto, que podem ser feitas sem referência à neutralidade. A que diz respeito às doenças negligenciadas – por exemplo, mencionada como ilustração da falta de neutralidade no quarto sentido do termo, pode ser sustentada com base apenas num princípio de justiça social.

A implicação dessas considerações é a de que, para evitar contribuir inadvertidamente para a onda da pós-verdade, a prescrição mais radical derivada da análise proposta é a de que o melhor mesmo é simplesmente abandonar a alegação da não-neutralidade, retirando da pauta do debate público sobre a ciência o tema de sua neutralidade.

Concluo com um comentário sobre um artigo do filósofo da ciência canadense Ian Hacking. Tenho grande admiração por seus escritos, que se destacam pela clareza, rigor e elegância, e de maneira geral concordo com as posições que defende.

O presente ensaio é dirigido não a filósofos da ciência, mas a um público interessado em ciência, porém não familiarizado com o debate filosófico metacientífico. Por esse motivo, no tratamento do tópico da objetividade – assim como no dos outros sentidos do termo “neutro” –, sacrifiquei em certa medida o rigor em benefício da inteligibilidade. São três as razões para mencionar o artigo de Hacking. A primeira é deixar claro que não ignoro a complexidade do tema da objetividade. O segundo é indicar aos interessados uma exposição muito mais rigorosa sobre o tema. E o terceiro é reforçar a posição por mim defendida em relação ao debate em torno da neutralidade ou não neutralidade da ciência – a de que ele deve ser deixado de lado. Nesse artigo, Hacking sustenta uma posição análoga, com referência não à neutralidade, mas à objetividade da ciência. Um dos argumentos utilizados em apoio a essa recomendação é o mesmo que uso para a minha, a saber, a de que não apenas é possível discutir questões importantes sobre a ciência sem envolver o conceito de objetividade, mas é melhor que a discussão seja conduzida dessa forma. O exemplo que ele dá é: “Pode-se confiar na pesquisa médica quando financiada pelas empresas farmacêuticas?”

O título do artigo em pauta expressa perfeitamente a posição nele sustentada: “Let’s not talk about objectivity”. Parafraseando Hacking, concluo dizendo: “Let’s not talk about neutrality”.

Referências

Ferreira, Leonardo L. G. & Andricopulo, Adriano D. Drugs and vaccines in the 21st century for neglected diseases. The Lancet Infectious Diseases 19(2), p. 125-127, 2019.

Hacking, Ian. Let’s not talk about objectivity. In Padovani, Flavia et al. (orgs.) Objectivity in science. Boston Studies in the Philosophy of Science vol. 310, p. 19-33. Basileia: Springer, 2015.

Lacey, Hugh M. & Mariconda, Pablo R. O modelo das interações entre as atividades científicas e os valores. Scientiae Studia 12(4): 643-668, 2014.

Marques, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental. Campinas: Editora da Unicamp, 2015.

McIntyre, Lee C. Post-truth. Cambridge: The MIT Press, 2018.

Merton, Robert K. The unanticipated consequences of purposive social action. American Sociological Review 1(6):894-904, 1936.

1Para um amplo e competente estudo dos danos ao meio ambiente causados pelas atividades econômicas, v. Luiz Marques (2015), Capitalismo e colapso ambiental.

2De acordo com um levantamento do jornal Washington Post, nos primeiros 710 dias de seu mandato, Trump fez 7.645 afirmações falsas ou enganosas (misleading), uma média de quase onze por dia.

Imagem: Niyas NajafovA conversação, 2013

MARCOS BARBOSA DE OLIVEIRA – Bacharel em Física pela Universidade de São Paulo (USP) (1970). Doutor em História e Filosofia da Ciência pela Universidade de Londres (1981). Livre-docente pela USP (1997). Estágios de pesquisa no exterior nas Universidades de Essex (janeiro a março de 1987), de Bristol (outubro a dezembro de 1994) e na New School for Social Research (setembro a dezembro de 1999). Professor Associado da Faculdade de Educação da USP, Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação,até a aposentadoria, em agosto de 2014. A partir do mesmo ano, Professor Colaborador junto ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, da FFLCH-USP. Vice-coordenador do Grupo de Pesquisa “Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia” do Instituto de Estudos Avançados da USP

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