Aprovada em comissão, volta de Funai e demarcações ao MJ ainda passará por duas votações

Mudança na proposta do governo Bolsonaro foi comemorada como avanço, mas ainda precisa ser votada na Câmara, no Senado e sancionada pelo presidente

Por Tiago Miotto, no Cimi

Em votação realizada nesta quinta-feira (9), a Comissão Mista destinada a analisar a Medida Provisória (MP) 870 devolveu a competência de demarcar terras indígenas à Fundação Nacional do Índio (Funai) e realocou o órgão no Ministério da Justiça (MJ). Embora ainda precise ser aprovada pelos plenários da Câmara e do Senado e sancionada pelo presidente, a alteração foi considerada uma derrota para o governo Bolsonaro.

Assinada pelo presidente no primeiro dia de seu mandato, a MP 870 havia colocado a Funai no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e deixado as demarcações sob a tutela dos ruralistas, no Ministério da Agricultura (Mapa).

“Não tem sentido índio sem terra e Funai sem demarcar”, resumiu a deputada federal Joênia Wapichana (Rede/RR) depois que a votação na comissão foi encerrada, no final da manhã de quinta. “É uma primeira vitória, de grande importância para os povos indígenas, mas também para a concretização do dever constitucional de demarcar suas terras tradicionais”.

Após meses de pressão do movimento indígena, indigenista e apoiadores, o texto apresentado na terça-feira (7) pelo relator da Comissão Mista, senador Fernando Bezerra Coelho (MDB/PE), já havia retirado as atribuições ligadas aos povos indígenas do Ministério da Mulher, da Família dos Direitos Humanos, devolvendo-as, assim, ao MJ.

Sem consenso a respeito do tema, uma emenda que propunha o retorno das demarcações à Funai foi votada em separado e acabou sendo aprovada por um placar de quinze a nove.

“Foi um avanço, mas ainda não estamos chamando isso de vitória. A vitória mesmo é quando terminar a possibilidade de veto presidencial. Agora, é preciso que as forças que se interessam pela defesa das terras indígenas continuem trabalhando nas próximas semanas”, avalia Andrea Prado, presidente da INA – Indigenistas Associados.

A INA, organização de servidores e servidoras da Funai, vem há meses fazendo a campanha “Funai inteira, não pela metade”, em que defende que o órgão permaneça no Ministério da Justiça e com todas as suas atribuições.

“Se a demarcação não ficasse dentro da Funai, não faria nem sentido existir Funai. Essa é sua principal atribuição”, afirma Paulo Tupiniquim, da coordenação executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “Se as demarcações ficassem na Agricultura, sabemos que elas não ocorreriam mais, uma vez que quem está à frente da pasta é uma ruralista. Eles jamais demarcariam uma terra”.

Na Comissão Mista, formada por senadores e deputados, votaram contra o retorno das demarcações à Funai parlamentares dos partidos MDB, PRB, PSDB, PSL, DEM, PP e Podemos. A favor, votaram parlamentares da Rede, PT, MDB, PRB, PP, PDT, PR, PSB e Cidadania.

Próximos passos

Depois da aprovação do relatório e das emendas na Comissão Mista, composta por senadores e deputados, a MP 870 foi transformada no Projeto de Lei de Conversão (PLV) nº 10/2019, que ainda precisa ser aprovado com maioria simples nos plenários da Câmara e do Senado. Em ambas as casas a medida pode sofrer alterações, inclusive com o risco de retroceder nos avanços obtidos em relação à Funai e à política indigenista.

Em abril, durante o Acampamento Terra Livre (ATL), os presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM/RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM/AP), assumiram um compromisso público com lideranças indígenas no sentido de atuar para que as demarcações sejam devolvidas à Funai e esta retorne ao Ministério da Justiça.

“Essa divisão em dois ministérios não me parece um caminho que vai gerar segurança para o povo indígena. A gente vai trabalhar para que a gente possa restabelecer, junto com o presidente do Senado, aquilo que tem sido estabelecido nos últimos anos no Brasil”, afirmou Maia em reunião com lideranças que participavam da 15ª edição do ATL.

As medidas provisórias têm vigência imediata a partir de sua publicação, mas precisam ser votadas em até 120 dias. Caso não sejam aprovadas pelo Congresso Nacional nesse período, perdem validade. No caso da MP 870, esse prazo vai até o dia 3 de junho.

O governo tem, portanto, três semanas e cerca de nove sessões pela frente para que a medida seja aprovada em ambas as casas e não caduque. Caso isso ocorra, a administração federal deve voltar a ser estruturada como era antes da publicação da MP, explica o assessor legislativo da deputada Joênia Wapichana, Giovanni Mockus.

“Isso nunca aconteceu antes, com nenhum outro presidente. Mas é uma possibilidade, porque o prazo que resta para concluir a tramitação da MP é curto. Nesse caso, a Funai e as demarcações também voltariam ao MJ, como era no governo Temer”, avalia o assessor.

A contragosto de Moro

No dia anterior à votação na Comissão Mista, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, havia afirmado que não tem “interesse de ficar com a Funai”. A afirmação foi feita em um evento no Superior Tribunal de Justiça (STJ), depois da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, afirmar que a Funai ficaria “com mamãe Damares, não com papai Moro”.

“Não é uma questão de querer ou não trabalhar nessa área. É um dever institucional que o Ministério da Justiça já vem fazendo há muitos anos”, rebateu Joênia Wapichana. “Desde a promulgação da Constituição que a Funai encontra-se no MJ.

“É totalmente contraditório manter a demarcação na Agricultura, que já tem um posicionamento e disputa a posse de terra contra os povos indígenas”, defendeu a deputada indígena, que coordena a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos Indígenas.

Em outro ponto polêmico da MP 870, também votado separadamente, o governo federal e o ministro Sérgio Moro sofreram mais uma derrota na quinta-feira. A Comissão Mista, por 14 votos contra 11, decidiu tirar o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) da pasta da Justiça e transferi-la para o Ministério da Economia. O órgão foi responsável por identificar as transações suspeitas do filho de Bolsonaro, Flávio, senador pelo PSL, com o ex-assessor Fabrício Queiroz e milicianos do Rio de Janeiro.

Em abril, cerca de três mil indígenas presentes no ATL marcharam até o MJ, onde protocolaram um documento com reivindicações. Apesar da mobilização, não foram recebidos por Sérgio Moro.

Mobilização constante

Desde o ano passado, o movimento indígena vem manifestando sua posição contrária ao desmembramento da Funai e a sua retirada do âmbito do Ministério da Justiça – que se concretizaram assim que Bolsonaro assumiu o mandato. Em dezembro, lideranças da Apib foram à sede da equipe de transição do governo federal, em Brasília, buscar diálogo com com o futuro governo. Não foram recebidos.

Em janeiro, uma mobilização nacional dos povos indígenas teve com uma de suas principais pautas o retorno das demarcações de terras indígenas e da Funai ao Ministério da Justiça, pauta que também foi central durante o 15º ATL.

“Vamos continuar a pressão, fazendo nossas articulações e nossas manifestações, para que quando for para o plenário da Câmara e do Senado a gente possa obter uma vitória e acabar com esse pesadelo para os povos indígenas do Brasil”, afirma Paulo Tupiniquim.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

one × 4 =