Professores acusam Laureate de forjar documentos para obter o reconhecimento de cursos EAD no Brasil

Docentes denunciam irregularidades, dizem que foram obrigados a mentir para o MEC e a dar aulas em disciplinas fora de sua área de formação; documentos e áudio obtido pela Pública apontam algumas denúncias

Por Thiago Domenici, Agência Pública

Em dezembro de 2018, 150 professores foram demitidos da rede Laureate Brasil, um dos maiores grupos educacionais do mundo, com mais de 270 mil alunos no país, espalhados em 12 instituições por oito estados brasileiros.

Contratados para atuar na área de educação a distância (EAD) do grupo educacional, 12 professores demitidos revelam à Pública irregularidades nos cursos EAD da Laureate, em situações que vão de atas que teriam sido forjadas para o reconhecimento de cursos no MEC à atuação de docentes em cursos fora de sua área de formação, e sem que os alunos soubessem.

Gabriel Teixeira, 33 anos, é um dos professores demitidos. Foi dele a iniciativa de reunir os colegas para produzir um relatório sobre os problemas pelos quais passaram e que ensejou representações no último dia 9 de maio – com apoio do mandato do deputado estadual por São Paulo, Carlos Giannazi, do Psol – em órgãos como Ministério Público Federal e Ministério Público do Trabalho.

Gabriel permitiu publicar seu nome. Os outros entrevistados preferem não se identificar. “Quanto mais a gente discutia, mais a gente entendia as irregularidades”, afirma o docente, que é cientista social e foi responsável, entre fevereiro de 2018 até sua demissão, por disciplinas presentes na grade de vários cursos EAD da Laureate.

Atualmente, a Laureate oferece 60 cursos a distância no país, muitos deles ofertados desde o ano passado, um feito comemorado em fevereiro pelo diretor de ensino digital do grupo numa rede social: “34 novos cursos de graduação em 5 meses?? TEMOS!!”.

Gabriel fez parte da “curadoria docente” da chamada Equipe Multidisciplinar, uma exigência do MEC para cursos EAD.

Essa equipe elabora e valida, por exemplo, o material didático da instituição ou curso e tem obrigação de se reunir semestralmente. Essas reuniões, quando ocorrem, precisam ser registradas em atas e servem como parte da documentação necessária para que o MEC faça o reconhecimento do curso.

Em qualquer curso de graduação no país, o reconhecimento deve ser solicitado quando o curso tiver completado 50% de sua carga horária. “Você pede o credenciamento, o curso abre, apresenta a grade curricular e depois chama o MEC na hora de reconhecer”, resume Jorge*, outro professor demitido pela Laureate.

Ter o curso reconhecido é obrigatório para seu funcionamento e validação do diploma, além de um incentivo na hora de conquistar novas matrículas. Não à toa, muitas universidades se utilizam deste reconhecimento como estratégia de marketing.

Quem acessa a página da EAD Laureate, por exemplo, se depara com a imagem da cantora Ivete Sangalo anunciando cursos a partir de R$ 159 mensais e com matrícula grátis. “Cursos de graduação e pós a distância reconhecidos pelo MEC”, destaca a propaganda.

O grupo, com origem nos EUA, tem pouco mais de 1 milhão de estudantes matriculados em 80 instituições de ensino superior pelo mundo.

No Brasil desde 2005, a rede mantém o complexo Educacional FMU, Universidade Anhembi Morumbi, Universidade Potiguar (UnP), Universidade Salvador (Unifacs), Faculdade dos Guararapes (FG), Faculdade Internacional da Paraíba (FPB), entre outras.

“Reunião de alinhamento”

Gabriel explica que a partir de e-mails da Diretoria Nacional de Regulação e Suporte Acadêmico do grupo educacional é que “percebeu que a Laureate forjava atas a fim de cumprir as exigências do MEC” para o reconhecimento dos cursos.

Em 17 de agosto de 2018, por exemplo, um e-mail enviado pela Diretoria de Regulação a mais de 40 destinatários da Laureate afirma: “Conforme anunciado no semestre passado, vamos retomar a demanda da Equipe Multidisciplinar, pois a partir da próxima semana receberemos visitas in loco do MEC e precisaremos estar alinhados”.

No dia seguinte, 18 de agosto, um novo e-mail foi enviado com a orientação de “informar a equipe de Regulação Local os membros que devem ser nomeados (2018/1 e 2018/2) – planilha disponível no one drive”.

A orientação prossegue: “Pegar no one drive o template das duas atas dessa equipe e adaptá-las, considerando os itens destacados no arquivo. O prazo de realização desta demanda é 31/08, caso não tenha visita in loco agendada antes dessa data”.

Gabriel diz que a orientação de pegar o template e adaptá-lo “dá uma receita” para nomeações retroativas sem que eles, os nomeados, “tenham trabalhado de fato”. E explica como aconteceu com ele, no caso de sua nomeação para a curadoria docente de equipes multidisciplinares de duas instituições: a Faculdade Internacional da Paraíba (FPB) e da Universidade Potiguar (UnP).

Os documentos indicam que as datas de ingresso de Gabriel nas equipes multidisciplinares de FPB e UnP são contraditórias. A nomeação do docente registra datas de “1 de agosto de 2018” e “7 de agosto de 2018”. Ou seja, períodos retroativos ao e-mail citado que trata das nomeações. Além disso, as próprias datas de nomeação são posteriores à primeira reunião das duas instituições – realizada, em tese, três meses antes, no dia “7 de maio de 2018”.

As atas a seguir obtidas pela Pública, uma da FPB e outra da UnP, referentes à segunda reunião do semestre de 2018, datam de 17 de agosto de 2018 – coincidentemente, o mesmo dia da “reunião de alinhamento”.

Nestas atas, registra-se que Gabriel esteve presente às 9 horas e de forma simultânea tanto na reunião da FPB quanto da UnP. A mesma situação se dá nas atas da primeira reunião, que datam de 7 de maio de 2018. Citado como presente via “webconferência”, Gabriel afirma que nunca participou de nenhuma delas.

Espelhados, os documentos mostram conteúdo similar e com trechos idênticos. “As minhas atas já prontas, depois de passar por esse processo, são control Ccontrol V“, denuncia. “2018 foi o ano em que eles conseguiram credenciar 30 cursos. Então, eles estavam na correria e precisavam constituir esse grupo multidisciplinar para todas as IES [Instituição de Ensino Superior]”, diz.

Forjar atas era “hábito”

Quando entrou no grupo Laureate, em 2016, a psicóloga Flávia* fazia a função de tutora na Anhembi Morumbi antes de se tornar professora da FMU no ano seguinte.

“Em 2017, assim que assumi como professora do EAD, a coordenação apareceu com algumas atas e pediu para eu assinar. Eu nem sabia que fazia parte dos NDEs [Núcleos Docentes Estruturantes]. Assinei porque foi solicitado. Reuniões das quais eu não tinha participado. É um hábito, infelizmente”, afirma.

Além das reuniões das equipes multidisciplinares, os NDEs citados por Flávia têm papel central nos cursos de qualquer graduação no país. E também são uma exigência do MEC para o reconhecimento dos cursos.

Além do NDE, existem os colegiados. Em geral, o primeiro está diretamente ligado à criação, implantação e consolidação do projeto pedagógico do curso, enquanto o colegiado é o órgão consultivo e deliberativo, responsável, por exemplo, pela discussão das políticas acadêmicas e sua gestão.

“Então você tem duas coisas: O NDE e o colegiado. Um aprova o que o outro delibera. Mas isso, na verdade, nunca ocorreu. O NDE não fazia absolutamente nada. E o colegiado também não fazia nada. Era tudo de fachada”, afirma Flávia.

Ela relembra que em muitos cursos os participantes do NDE e do colegiado eram os mesmos. “Eu participei disso. Quer dizer, eu mesma aprovo o que eu deliberei. Eu era NDE e colegiado de muitos cursos”, afirma.

Ela própria afirma que precisou forjar atas na ausência do coordenador de sua área. “No final de 2018, o coordenador de negócios teve que ser afastado por questões de saúde. Eu o auxiliava, porque quatro cursos iam passar por reconhecimento do MEC”, diz.

Segundo ela, os cursos de gestão ambiental, gestão hospitalar, negócios imobiliários e gestão pública tiveram atas de NDE e colegiado forjadas.
“Quando a regulação veio, disseram [da Diretoria Nacional de Regulação e Suporte Acadêmico] ‘tem que ter essas atas aqui’. Tinha que ter atas desde o começo do curso, e não tinham. Eu fabriquei em cima do que já tinha sido feito antes. Peguei as atas anteriores, vi o que estava escrito, fui na mesma linha. Fiz para os quatro cursos”, diz.

Como se sentiu fazendo isso? “Eu sabia que não era legal, mas o que eu posso fazer também? Que poder que eu tinha?”, argumenta. Flávia diz que todos que assinaram sabiam que a ata era forjada. “O curso já estava há três anos rodando e tinham atas não assinadas. Eu tive que falar com pessoas que não estavam nem trabalhando mais na Laureate pra elas assinarem.”

Uma dessas pessoas é Joana*, advogada, que trabalhou como professora na Laureate durante um ano e meio. “A Flávia chegou aqui na minha casa era mais de meia-noite, de uma quinta pra sexta, e precisava da minha assinatura do NDE de uma reunião que não conheço, que nunca participei, porque o MEC iria fazer a visita no dia seguinte”, afirma.

Joana conta que só assinou atas de reuniões que não existiram para ajudar uma colega em apuros. “Ela falou que, se o curso não fosse aprovado, a nossa cabeça estaria na degola. Falei: ‘Ok, então vamos’”, relembra.

Segundo Flávia, Joana assinou atas forjadas dos cursos de gestão pública e negócios imobiliários. Os quatro cursos com atas “fabricadas” pela docente constam no sistema e-MEC como “em atividade”.

Gestão pública e negócios imobiliários aparecem no sistema com “análise concluída” em relação ao reconhecimento, e gestão hospitalar e gestão ambiental constam como “em análise”.

“Teve um avaliador que pegou muito no pé por causa dessas atas. O curso era de gestão pública, e ele caiu matando. Ele percebeu que alguma coisa estava errada”, conta a psicóloga.

O avaliador, ela diz, queria saber sobre um membro discente do colegiado, que deveria ser um aluno convidado pelo coordenador. “O avaliador ficou muito puto porque dizia que através da ata não conseguia perceber a participação do aluno nessas reuniões de colegiado e ele queria saber, justamente, como aquilo era feito”, conta. “Mas como não tem reunião ele [o aluno] não participa. Mas na ata é colocado que ele participa via webconferência”, revela.

“Isso é problema teu, Jorge”

Jorge* trabalhou na Laureate entre 2015 e 2018 e conta que já era coordenador da FMU para o EAD de pedagogia quando da visita de reconhecimento do MEC no ano passado.

“Eles precisaram das atas de NDE e colegiado de todo o histórico do curso na FMU, mas eu era coordenador somente de 2017 em diante. Então, eu tinha as atas de NDE e colegiado que eu havia feito. As outras eu não tinha e não sabia onde estavam. A responsável da coordenadoria acadêmica dizia que eu tinha que ter essas atas, que era minha responsabilidade. ‘Isso é seu trabalho, cadê as atas, Jorge?’ Ela ficava muito brava. Dizia coisas desagradáveis”, relembra.

“Eu falei: ‘Essas atas não existem’. Ela falou: ‘Esse não é um problema meu, Jorge, é um problema seu’. Eu disse ‘Esse é um problema da instituição’. ‘Não, não, esse é um problema seu que você tem que resolver. Você é o coordenador desse curso.’ ‘Você não está entendendo. Não existem essas atas, a professora anterior não fez.’ ‘Jorge, eu já entendi o que você está falando, só que esse não é um problema meu, é um problema seu.’ ‘Bom, você está sugerindo que eu falsifique essas atas?’ ‘Claro que não, eu não disse isso.’ ‘Então o que eu tenho que fazer?’, perguntei. ‘Jorge, já vou dizer pela vigésima vez, esse problema é um problema seu e trate de resolver.’ Eu ficava, pô, vou resolver como? ‘Olha, se você falar que é pra eu falsificar as atas, eu falsifico; se não, a gente vai ficar sem atas.’ Ela falou: ‘Pois saiba que você é um irresponsável. Você tem que cuidar do teu curso, o que você está fazendo é desleixo, você tem que providenciar essas atas’.”

Jorge conta que uma manobra para forjar a ata do curso de pedagogia foi sugerida por uma outra colega coordenadora que já havia passado pelo mesmo problema.

Ela sugeriu pegar atas do curso de pedagogia de outra instituição da Laureate, a Unifacs, e adaptá-la para a FMU. “Copia o texto, troca os nomes das pessoas, troca o nome da universidade, troca o endereço e tal, a gente vai ver pela nomeação quem eram os professores, a gente vai atrás das pessoas para assinarem as atas”, receitou a colega.

“Como ela deixou claro que era isso pra fazer, eu fiz. Troquei a ata que tinha os textos, troquei os nomes das pessoas, coloquei lá o colegiado e tudo o mais, ela entrou em contato com a coordenadora que era anterior a mim, a coordenadora foi lá, assinou. Entramos em contato com professores que nem estavam mais lá pra eles assinarem aquelas atas de reuniões que eles sequer tinham participado”, conta o docente. “E isso foi apresentado ao MEC. Um documento falso”, afirma o ex-coordenador.

“Produzimos uma cena pro MEC”

Jorge conta ainda como se deu a visita do MEC após as atas terem sido falsificadas. O docente afirma que “produziram uma cena só para o MEC ver”.

“Teve um momento que fui visitar o lugar antes, e me disseram: ‘Essa aqui é sua sala’. Mas eu não ficava lá. Eu não tenho essa sala”, recorda. “A verdade é que a visita do MEC não foi onde o curso é. Mas ia ser num polo perto onde nenhum professor do curso fica realmente. O prédio onde estão todas as universidades EAD juntas é da Anhembi Morumbi. Como a visita é na FMU, você não pode levar o cara pra visitar o prédio da Anhembi Morumbi”, explica.

“A coisa foi feita, então, num prédio da FMU, mas nada acontece ali, a não ser um polo, com uns computadores, umas salas, e a gente fez uma brinquedoteca que o curso de pedagogia precisava ter. Fiz um regulamento que foi colado dois dias antes na parede. Produzimos uma cena só pro MEC ver”, confessa.

Durante a visita, Jorge diz que não mentiu aos avaliadores. “Levaram os caras e mostraram a sala dos professores. E aí o sujeito vira pra mim: ‘Esses são os seus professores?’. Eu digo: ‘Não’. ‘Cadê os seus professores?’ ‘Não ficam aqui.’ ‘Onde eles estão?’ ‘Eles ficam na rua Quatá, 67.’ ‘Por que a gente está vendo essa sala dos professores? Os professores não vêm pra cá?’ ‘Não, nunca vêm.’ ‘E onde é que o senhor fica?’ ‘Lá na Quatá também.’ ‘O senhor não fica aqui?’ ‘Não, não fico.’” A atitude, ele diz, gerou confusão. “Acho que parte da minha demissão foi cavada nesse momento”, conta.

Eram dois os examinadores do MEC para avaliar o curso de pedagogia EAD. Quando chegam, os examinadores olham a documentação e fazem reuniões com professores e coordenação. “Você tem que justificar o curso. Apresentar a faculdade, entregar as pastas com documentos, essas coisas”, diz Jorge.

No sistema e-mec, o curso EAD de pedagogia consta como “em atividade” e com “análise concluída” no seu reconhecimento.

José*, doutor em letras, pediu demissão da Laureate depois de três anos, em 2018. Sentia-se lesado pelo grupo educacional. “No começo eu participava das reuniões do MEC e depois parei de ir, por questão ética, achava um absurdo”, relembra.
“No fim eu também assinei atas”, revela. “Participei em quatro, cinco reuniões em quase três anos, e o número de atas que assinei foi muito maior do que isso.”

Segundo José, o MEC é só uma “instituição reguladora” para a Laureate. “Então, se você produzir os documentos que têm que ser produzidos para passar, tá ótimo”, afirma. “O que tem é uma demanda por matrícula. É uma indústria. Então, no fim, é o lucro que importa. E todos os problemas da Laureate são em função disso, de otimização de custos.”

A má experiência de José o levou a se tornar um avaliador do MEC em 2019. Indagado se é uma forma de amenizar a consciência, ele responde que é uma forma de “tentar mudar…”. E, após uma pausa, diz: “De fazer com que essas instituições se adequem. Independente da instituição ser do jeito que é, havia uma complacência dos professores, igualmente a minha, embora tenha inúmeras justificativas do emprego, do salário, do momento de crise do país que você aceita certas coisas… todos, todos, tinham consciência de que aquilo era ruim, era ilegal, que não estavam criando nenhum benefício para si mesmo, para a instituição, para a educação”, desabafa.

A professora Vitória* foi outra docente que diz ter assinado atas forjadas de NDEs e colegiados no período em que trabalhou no grupo educacional. Mestre em ciências humanas, ela ficou na Laureate entre 2016 e 2018 e participou de quatro visitas do MEC.

“As visitas eram um acontecimento muito maquiado”, conta. “A gente era obrigado a mentir na hora que o MEC perguntava determinada coisa. A gente dava entrevista, mas antes dessa entrevista passava por reuniões e nos pontuavam coisas que a gente precisava falar. Por exemplo, como a gente amava trabalhar na Laureate, como o plano de carreira é algo consistente, que existe, quando não existia”, relembra.

Vitória não se recorda de quantas atas precisou assinar. “Muitas atas. Assinei muitas atas”, afirma. “Eu tava lá no computador, tranquila, aí chega uma professora, igual a mim, com um calhamaço de atas pra assinar de reuniões que eu nunca participei, forjadas”, relembra. “Mas como a professora está no mesmo patamar que eu, como todo mundo estava no mesmo barco, eu assinava”, justifica.

Um áudio revelador

Marta* tem formação em pedagogia com especialização em libras. Deixou a universidade em que trabalhou durante cinco anos para uma nova experiência na Laureate. Porém, nada saiu como ela planejou.

Contratada em 3 de dezembro de 2018 para a tutoria da disciplina de libras, Marta foi demitida em 1o de fevereiro deste ano – menos de dois meses após sua contratação.

Marta afirma que, durante a conversa que resultou na sua demissão, a coordenadora acadêmica da Laureate deixou escapar que sua contratação tinha sido “só por conta do MEC”. “Eu fiquei enlouquecida: ‘Por acaso vocês me contrataram só por causa da visita do MEC?’, perguntei. ‘É, então, é que o MEC estava pedindo…”, ela disse. Daí perdi a paciência e comecei a falar um monte pra ela, falei que era uma palhaçada”, relembra.

A história ganhou os corredores da Laureate e muitos tutores se solidarizaram com Marta em sua despedida. Semanas antes, havia ocorrido a demissão de mais de cem professores.

Preocupada, a docente Mônica* foi conversar com a coordenadora que havia demitido Marta. E por precaução resolveu gravar a conversa com o celular, sem que ela soubesse. O áudio, obtido pela Pública, confirma a versão de Marta.

Mônica está na sala de atendimento aos professores na rua Quatá, 67, no bairro da Vila Olímpia, em São Paulo, quando pergunta:

– Fiquei sabendo que uma menina admitida um mês atrás foi demitida…
– Sim.
– Como isso?
– Pra minha surpresa, ela pediu desligamento de uma faculdade que ela estava há cinco anos para entrar aqui, você acredita?
– Jesus! A menina tinha cinco anos num lugar…
– Num lugar… e pediu demissão para entrar aqui. Só que não fui eu que fiz a entrevista com ela…
– E ela entrou aqui por que um mês atrás? Um mês atrás era férias…
– Não era ainda. Por quê? Era por causa do MEC, tinham que contratar às pressas. Só que daí, o que aconteceu? Tinha muito tutor, muito professor na área dela. Não tinha como achar disciplina pra ela. Como ela tava em experiência, desligou…

A docente demitida, sem saber da existência do áudio, desabafou: “O que fizeram comigo é uma bela de uma sacanagem. Em princípio, fiquei me sentido perdida. A primeira semana depois de demitida fiquei me sentindo um lixo. O que eu fiz de errado? Eu cumpri tudo que eles pediram. Aí você começa a ver que o erro não foi seu”.

O pedido para assinar atas de reuniões das quais não participaram foi negado pelas docentes Mônica e Tânia – Reprodução

O caso UniNorte

A docente Mônica, citada acima, é mestre e doutora em serviço social e ingressou na Laureate em agosto de 2018. O pouco tempo de casa, no entanto, foi suficiente para outra “experiência dolorosa”, ela diz.

Mônica também foi solicitada a assinar atas de participação em NDEs e colegiado do curso híbrido em serviço social da UniNorte (UNN), que se pretendia reconhecer no MEC. E-mails de novembro passado tratam de uma reunião de alinhamento.

Durante a reunião, Mônica foi informada de que teria participação na avaliação do curso pelo MEC e se surpreendeu ao saber que estava vinculada ao NDE e ao colegiado. Um dos e-mails orienta que docentes imprimam, assinem e repassem a documentação aos coordenadores e supervisores da UniNorte.

“Mandaram as atas para que eu e os outros professores assinassem dizendo que a gente participou das reuniões virtuais. Só que eu nunca participei. E aí, no dia da visita do MEC, eu também não participei da reunião. Eu me recusei a assinar a ata”, afirma.

Além de Mônica, Tânia*, doutora em antropologia, se negou a assinar as mesmas atas da UniNorte. “Eu só soube que eu estava participando desde agosto, quando em dezembro eles pediram para participar de uma reunião geral para falar com o MEC. Aí mandaram um monte de atas retroativas e citavam como se eu tivesse participado desde agosto. Eu não assinei nada. Atas mentirosas”, reclama.

No sistema e-mec, o curso de serviço social EAD da UniNorte consta como “em atividade” e “em análise” no seu processo de reconhecimento.

A manobra da titulação

Segundo o MEC, é necessário um mínimo de docentes com a titulação de mestre e/ou doutor por curso, o que interfere na nota final da avaliação.

“Em vários momentos os coordenadores falavam pra professores doutores: ‘Vou te colocar aqui porque vai ter a visita do MEC”, conta a docente Flávia.

A situação é definida pelos entrevistados como “atribuição relâmpago”, já que, segundo eles, servia para melhorar a pontuação do curso durante as visitas do MEC.

José, atual avaliador do ministério, explica que, quanto mais itens você preenche, mais sobe a sua nota. “Então, o NDE que tenha cinco professores, três mestres, um doutor, gera uma nota. Se for cinco professores, quatro doutores, é outra nota”, diz. Segundo ele, “o MEC não vai buscar se esses mestres e doutores que estão nos NDEs e colegiados são aderentes ao curso. Que eu saiba, o MEC não checa. Parece, a princípio, uma coisa pressuposta. Pressupõe-se que são da área”, afirma.

Flávia, por exemplo, tem titulação de mestre e pediu a troca de uma disciplina por estar fora de sua área de formação. “Eles falaram que, se eu saísse da disciplina, não haveria possibilidade de participar da visita do MEC”, conta.

Um e-mail obtido pela Pública com data de 13 de abril de 2018, endereçado a um dos coordenadores gerais dos cursos de graduação EAD da Laureate, diz:
“Lembra da nossa conversa sobre inserir professores doutores da Faculdade Guararapes nas disciplinas online? O professor que nos lê em cópia é o coordenador de Arquitetura e vai receber o MEC semana que vem, e as duas professoras que seguem vão compor a listagem de professores”, diz o texto.

Em 16 de abril, a coordenadora de graduação acadêmica da Laureate orienta no e-mail que as duas professoras sejam, então, inseridas temporariamente nas CRTs, uma sigla que se refere às salas virtuais da Laureate.

Os alunos não sabem

“Aderência” é um termo usado pelos docentes que traz a ideia de coerência ao ministrar uma disciplina que esteja alinhada à formação acadêmica do professor.
No entanto, os professores entrevistados foram categóricos em dizer que ministraram disciplinas fora de sua área de formação e sem que os alunos soubessem.

É o caso de Flávia, que, com formação em psicologia, foi designada para a disciplina de “direito marítimo”. Ou de Tânia, que, com formação em antropologia, foi designada para disciplinas como “estudo das cores para o design da moda”, “história regional do Rio Grande Norte” e “Psicologia e comportamento”.

“Teve um dia que abri minha área de trabalho e estava lá para eu dar uma disciplina de ‘psicologia e comportamento’. Eu procurei a coordenadora e disse: ‘Olha, não me sinto bem eticamente de dar essa aula. Eu não sou psicóloga. E psicologia e comportamento é uma disciplina séria. Se eu soubesse que o meu psicanalista tivesse se formado nessa instituição que coloca uma antropóloga pra dar aula de psicologia e comportamento, eu realmente iria ficar muito brava”, relata a docente.

“Eles contratavam pessoas para dar aula em tudo. Eu, por exemplo, não sou historiador, mas dei história medieval oriental e ocidental. Tinha uma professora que era pedagoga que dava literatura brasileira I e II”, conta o ex-coordenador Jorge, doutor em letras. “O professor ficava morrendo de medo. Em história medieval oriental, acabei chamando uma colega para dar uma aula sobre Islã, por que eu não dominava de jeito nenhum”, conta.

“Eu falei: ‘Gente, eu sou psicóloga, o pessoal está num curso de pós-graduação de direito. É claro que o cara vai reclamar. Eu falei não tem como…’. O pessoal falou: ‘Se precisar, você chama um outro colega da área’”, conta Flávia.

Já Joana, formada em direito, teve de ministrar uma disciplina de “finanças internacionais e políticas macroeconômicas”. “Eu chamei um colega da área para poder ministrar a aula pra mim. Eu pedi: ‘Olha, pelo amor de Deus’. Estava chorando sem saber como ia gerir a disciplina”, relembra. “Eu fiquei preocupada que os alunos percebessem a minha insegurança ou que houvesse reclamação”, diz.

Também José, formado em letras, precisou dar disciplinas de “marketing” e “recursos humanos”, fora de sua área de formação. “As aulas eram uma reprodução das apostilas. Você conseguia preparar um conteúdo com base nas apostilas produzidas por eles mesmos”, conta.

Imagem da tela de atribuição de uma docente de pedagogia.

Em outro caso, a docente Mônica, mestre em ciências sociais, desistiu de elaborar questões sobre libras, a linguagem de sinais. “Eu não entendo nada de libras”, afirma.

Numa troca de e-mails com a coordenação, Mônica explica que poderia elaborar questões em áreas como antropologia e sociologia. “Uma semana antes da entrega, estava completamente angustiada, comecei a adoecer com isso. Comecei a me sentir mal porque estava fazendo algo que não era da minha área, daí desisti. Comuniquei por e-mail que eu não faria, e disseram: ‘Não, procura fulana pra te ajudar e faça’. Mas eu não fiz.” No e-mail, a coordenadora acadêmica afirma saber que o pedido é fora da área de formação de Mônica.

Coordenadora diz saber da falta de aderência da professora Mônica

Jorge, que teve sob sua coordenação 2.500 estudantes, avalia com dureza o processo pelo qual os alunos passam na Laureate. “O que eles estão fazendo é estelionato. Na verdade estão roubando o dinheiro das pessoas”, critica. “É um problema. Aquele conhecimento que está ali não dá. Eu fiz os cursos. Vou ter um certificado que num concurso eventual pode me dar 10 pontos a mais do que meu competidor. É quase como se eu tivesse comprado esse negócio”, finaliza.

O RH é um problema

Renato* ainda é professor no grupo Laureate. Ele conta que após as demissões de dezembro tutores como ele passaram, automaticamente, a ser professores. “Assumimos a função, mas as coisas não estão saindo como foram ditas para nós”, reclama o docente, que pediu para não revelar sua área.

“Durante dois dias as pessoas chegavam, eram chamadas no RH e iam embora”, recorda. “Depois teve uma reunião e foi falado que o grupo Laureate estava passando por uma transição, que era um novo formato, que não havia necessidade de tantos professores, por isso o corte.” “E tem essa questão do salário… Mais cedo ou mais tarde vamos ser demitidos”, conclui Renato, que recebe atualmente R$ 24 pela hora-aula, menos do que os professores demitidos, que recebiam R$ 26,90 a hora/aula.

Os professores relatam ainda descontos nesse valor em tarefas burocráticas, enquadradas internamente como “hora-administrativa”. O ex-coordenador Jorge explica: “Como eles na Laureate não têm interesse em fazer com que você desenvolva pesquisa, cursos de extensão etc., eles pegam essas horas e pagam metade do valor [R$ 13,45 hora/aula], e colocam você para fazer serviços de secretaria, como, por exemplo, análise curricular, o que ocupa metade da sua carga horária”.

Análise curricular é a adequação do currículo de um aluno que vem de outra instituição. “Eles [os grupos educacionais] são muito agressivos no mercado e ficam com essas promoções a R$ 100, o que faz os alunos irem de uma instituição para outra com muita frequência”, afirma.

Os professores relataram também à reportagem da Pública pagamentos com valores errados. “Era crônico. Eu recebia errado todo mês”, diz Jorge.

“A Laureate não é uma empresa honesta”, critica a docente Joana. “Teve um mês que em vez de ganhar R$ 1.500 eu ganhei R$ 87 reais. Cheguei no RH e me explicaram que aconteceu em decorrência do ajuste de carga”, diz.

Além disso, um contrato de direitos autorais, como mostra o documento acima, estabeleceu R$ 1.000 pela cessão dos direitos de imagem de professores por um período de 70 anos. Em uma das cláusulas, a Laureate promete processar aqueles professores que reclamarem, justificando “quebra do sigilo contratual”.

O Sindicato dos Professores de São Paulo (Sinpro) afirmou por meio de Celso Napolitano que ficou ciente das denúncias contra a Laureate e que fornecerá, no âmbito trabalhista e de forma individual, todo o suporte jurídico aos professores demitidos.

Procurada, a Laureate respondeu após a publicação da reportagem.

Atualização (15 de maio de 2019, às 16h40): 
A Laureate é uma rede internacional de universidades renomadas, com mais de 20 anos de tradição e de excelência no ensino superior. Muitas instituições que integram a organização possuem mais de 40 anos de história, sendo credenciadas e recredenciadas academicamente ao longo de suas trajetórias pelo Ministério da Educação (MEC). Sempre pautada na lisura de suas ações e no compromisso total com o atendimento à regulação vigente no país de atuação, a Laureate segue estritamente a legislação brasileira e mantém fortemente o seu propósito de mudar a vida das pessoas por meio da oferta de educação de qualidade. Apesar de não reconhecer o teor das informações trazidas na reportagem, a Laureate tomará as medidas cabíveis para elucidar os fatos.

Autorregulamentação

Em maio de 2017, o então presidente Michel Temer expediu um decreto que atualiza a legislação sobre a regulamentação do ensino a distância no país.

A medida retirou, por exemplo, a exigência de que o governo fizesse visitas prévias aos campi e deu autonomia às IES para a criação dos próprios polos de EAD, desde que sigam as regras de qualidade do MEC.

À época, o MEC afirmou que a nova regra exigiria, em contrapartida, padrões de qualidade mais elevados e responsabilidade dos dirigentes.

Cogitou-se ainda na pasta a criação de um Programa Nacional de Supervisão e Monitoramento de Cursos Superiores e Instituições Credenciadas e que serviria para evitar a queda na qualidade.

Com a eleição de Jair Bolsonaro, o MEC agora avalia a autorregulamentação do ensino superior privado e uma maior abertura ao EAD, situação retratada em reportagem da Pública de dezembro passado.

Procurado, o MEC não respondeu às questões enviadas pela Pública.

(*) – nomes fictícios

Gabriel e outros educadores reuniram 170 páginas de denúncias contra a Laureate. Documento foi protocolado na MPF e MPT, Foto: José Cícero da Silva /Agência Pública

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

doze + vinte =