Quebra de sigilo bancário do filho Flávio revelou envolvimento de 95 no esquema de “rachadinha”. Basta menos da metade abrir a boca para investigação ligar os pontos entre família do presidente, milícias e morte de Marielle
Por Gil Alessi, do El País Brasil, no Outras Palavras
Pouco mais de cinco meses após o nome do motorista Fabrício Queiroz vir à tona em um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras citado por movimentações atípicas, o primogênito do clã Bolsonaro, o senador Flávio, que até o final do ano passado o empregava em seu gabinete na Assembleia do Rio, começou a sofrer uma profunda devassa em suas contas bancárias. O Ministério Público do Estado pediu a quebra do sigilo bancário do parlamentar por um período de dez anos (entre janeiro de 2007 e dezembro de 2018), alegando haver indícios de lavagem de dinheiro e da operação de uma organização criminosa em seu gabinete —no total, 95 pessoas terão suas contas reviradas, sendo que ao menos nove delas também atuaram em algum momento com funcionários do atual presidente, segundo informações do jornal O Globo, e duas delas são ligadas ao miliciano Adriano Magalhães da Nóbrega, buscado pela polícia sob acusação de ser o chefe do grupo Escritório do Crime, suspeito de ter ligação com o assassinato da vereadora Marielle Franco.
A expectativa dos investigadores é de que, pressionados pela devassa fiscal, alguns alvos da investigação decidam colaborar com seus depoimentos, como ocorreu na Operação Lava Jato, abrindo um flanco ainda maior de possibilidades de denúncias contra a família Bolsonaro. Após um hiato, agora a cada dia um novo capítulo se revela. Na quarta-feira, a Veja publicou reportagem em que afirmava que entre 2010 e 2017, quando ainda era deputado estadual, Flávio investiu 9,425 milhões de reais na compra de 19 imóveis, entre salas e apartamentos, e lucrou 3,089 milhões nessas transações imobiliárias —indícios, segundo o MP, de lavagem de dinheiro. Na quinta-feira, nova reportagem de O Globo destacou que policiais militares nomeados para o gabinete de Flávio, quando ele era deputado estadual, repassavam até dois terços de seus salários para Queiroz, em troca de “férias permanentes”: ou seja, recebiam para não trabalhar.
A quebra do sigilo do filho do presidente tem alto potencial para respingar no palácio do Planalto —já fragilizado pelos protestos de estudantes e professores e com uma base no Congresso que se mostra fraca para aprovar seu principal projeto, a reforma da Previdência, tido como boia de salvação para a cambaleante economia. E torna-se algo especialmente grave para um capitão reformado do Exército que se elegeu com um forte discurso contra a corrupção e tem o juiz da Lava Jato como principal troféu de seu Governo. Ter o nome de Flávio envolvido em algum esquema da chamada “velha política”, tanto criticada pelo clã, pode dificultar ainda mais a aprovação de projetos e a governabilidade e diminuir seu apoio nas ruas, que já é o menor nos primeiros cem dias dentre todos os presidentes brasileiros eleitos.
Bolsonaro afirma que as investigações contra seu filho são uma perseguição contra ele. “Estão fazendo esculacho em cima do meu filho. Querem me atingir? Venham pra cima de mim”, disse o presidente em Dallas, no Texas, para onde viajou para receber uma homenagem. “Não vão me pegar!”, ressaltou. Flávio também usou o canal de comunicação preferido de sua família, o seu Twitter pessoal, para se defender. Disse que os valores publicados pela Veja são “absolutamente falsos”. “Sempre declarei todo meu patrimônio à receita Federal e tudo é compatível com a minha renda.
Morte de Marielle
Uma análise mais conservadora aponta para a possibilidade de que se comprove a participação de Flávio em um esquema de “rachadinha”, prática proibida, mas comum nos legislativos do país, na qual funcionários devolvem parte de seus salários para os parlamentares. Esta possibilidade já havia sido ventilada desde dezembro passado e foi confirmada por Queiroz ao depor por escrito ao Ministério Público. Em fevereiro ele informou que pegava parte do dinheiro dos demais servidores do gabinete e “com a remuneração de apenas um assessor parlamentar conseguia designar alguns outros para exercer a mesma função, expandindo a atuação do deputado”. Flávio sempre negou que a prática ocorresse em seu gabinete, e essa contradição entre os dois ainda não foi esclarecida —tendo em vista que o senador faltou a um depoimento e não remarcou mais a data.
Mas, para além da “rachadinha”, as investigações tem potencial para colocar o clã Bolsonaro em uma situação mais complicada. Os laços da família Bolsonaro com milicianos e seus parentes (e a simpatia do clã pelos grupos paramilitares comandados por policiais e ex-policiais) podem desaguar em em desdobramentos delicados, especialmente porque no gabinete de Flávio estavam lotadas Danielle Nóbrega e Raimunda Magalhães, respectivamente irmã e mãe o miliciano do apontado como chefe do Escritório do Crime. Trata-se de uma organização miliciana ligada ao assassinato da vereadora Marielle Franco, de acordo com o que já foi divulgado da apuração que tem ainda uma ponta federal: a Polícia Federal investiga se alguém nas polícias do Rio trabalhou para sabotar os trabalhos de elucidação do crime. Ambas tiveram o sigilo bancário quebrado, e o Coaf já tinha apontado repasses delas para Queiroz, amigo de Nóbrega.
Onde está Queiroz?
Com relação às investigações, que correm em segredo de Justiça, também se acumulam dúvidas. Queiroz foi intimado a depor por duas vezes, em 19 e 21 de dezembro de 2018. Faltou nas duas ocasiões, e justificou a ausência por conta de problemas de saúde —que não o impediram, no entanto, de conceder entrevista ao SBT. A reportagem indagou o Ministério Público do Rio se houve nova convocatória para que o ex-motorista desse sua versão dos fatos e se o seu paradeiro é conhecido. A resposta foi lacônica: “Em razão do sigilo legal decretado, o Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção do Ministério Público (GAECC/MPRJ) não vai se pronunciar”. Em outros casos no passado, os procuradores e promotores, por exemplo, lançaram mão de um mecanismo chamado condução coercitiva, na qual a pessoa é levada para depor pelas autoridades —mas o mecanismo usado à exaustão pela Operação Lava Jato, foi proibido pelo Supremo Tribunal Federal. Se julgasse necessário, o MP poderia pedir a prisão preventiva de Queiroz, mas isso não foi feito.
A defesa do ex-motorista divulgou nota dizendo que “família recebe a notícia [da quebra do sigilo] com tranquilidade, uma vez que seu sigilo bancário já havia sido quebrado e exposto por todos os meios de comunicação”. O ex-motorista ainda deve explicações sobre a origem —e o destino— de 1,2 milhão de reais que passaram por sua conta corrente. Na entrevista ao SBT, ele alegou se tratar de dinheiro de compra e venda de veículos usados, e se autodenominou como “um cara de negócios”. Mas, segundo O Globo informou no início do mês, os promotores não encontraram evidências de que a movimentação atípica do ex-motorista tenha ligação com este tipo de negócio. De acordo com a reportagem apenas dois carros antigos foram encontrados em nome de Queiroz: um Ford Del Rey Belina ano 86, e um Volkswagem Voyage modelo 2009. O valor de ambos somado é inferior a 30.000 reais. Resta saber como o ex-motorista transforma carros velhos em um milhão.