Racismo estrutural e a criminalização do aborto no Brasil

por Lívia Casseres*, em Sur Conectas

Este trabalho tem como objetivo lançar uma perspectiva antirracista sobre a discussão constitucional em torno da criminalização do aborto inaugurada com a propositura da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n˚. 442, ação judicial perante o Supremo Tribunal Federal brasileiro que questiona a constitucionalidade do crime de aborto.2 A partir dos dados coligidos pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, em correlação com os indicadores do campo da saúde, pretende-se demonstrar que os tipos penais dos artigos 124 e 126 do Código Penal, a par de não oferecerem a proteção do bem jurídico que declaram tutelar, reproduzem desigualdades constitucionalmente proibidas.

A argumentação está estruturada em três tópicos, que buscam colocar em xeque a “neutralidade” das normas incriminadoras do aborto, a partir da experiência das corporalidades subalternas de mulheres negras que são expostas a uma política de morte em consequência da sua proibição.

1. Perfil das mulheres criminalizadas pela prática de aborto no Estado do Rio de Janeiro

Em relatório produzido por sua Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro analisou as ações penais promovidas contra mulheres pela figura do artigo 124 do Código Penal.3

A partir da filtragem por assunto, o acervo apresentado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro indicou 136 processos em trâmite em todo o Estado, distribuídos entre 2005 e 2017, desconsiderados aqueles com arquivamento definitivo.

Dentre os processos levantados, uma parcela dizia respeito a habeas corpus, alvarás judiciais, cartas precatórias e outros estavam indisponíveis para consulta, o que resultou numa amostragem final de 55 processos, dos quais 42 representavam ações penais em que se imputava à mulher a figura penal do artigo 124 do Código Penal Brasileiro (“provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”).

De antemão, a pequena amostra encontrada revela uma inconsistência em relação à alta frequência de abortos entre as mulheres brasileiras. A Pesquisa Nacional de Abortos, por exemplo, apontou que, apenas em 2015, cerca de meio milhão de abortos foram realizados no Brasil.4

Necessário, pois, assinalar desde logo que não seria possível tomar esta pequena parcela de pessoas criminalmente denunciadas perante o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro como representativa do universo de mulheres que praticou aborto na região no mesmo período.

A discrepância encontra explicação no fenômeno da criminalização secundária, no âmbito do qual se realiza a decisão concreta de selecionar, dentre todas as mulheres que praticaram o tipo penal de aborto, aquelas que serão de fato conduzidas ao sistema de justiça criminal5.

Nesse sentido, embora a confiabilidade científica da pesquisa fosse absolutamente questionável se tomado o conjunto de mulheres processadas no Estado como simétrico à população de mulheres que efetivamente praticaram aborto em si mesmas, é possível tomá-la como referência para compreender algumas tendências do processo de criminalização.

A análise das 42 ações penais propostas com base no art. 124 do Código Penal possibilitou a distinção de dois grupos de pessoas denunciadas pelo Ministério Público, de acordo com quatro fatores fundamentais: i) método utilizado para a interrupção; ii) a forma de deflagração da ação penal (notícia crime apresentada pelos profissionais envolvidos no atendimento médico na unidade de saúde/por iniciativa de familiares/por iniciativa de terceiros/por iniciativa da própria vítima ou em decorrência de investigação policial preexistente); iii)os indicadores sociais (raça-cor, escolaridade, assistência jurídica privada ou pública); iv) o tempo gestacional no momento da interrupção da gravidez.

No primeiro grupo, composto por 20 mulheres, situam-se os abortos realizados sem assistência, praticados pelas mulheres por si sós ou com a ajuda de um terceiro, tal como sua mãe, uma amiga ou o parceiro/companheiro/cônjuge (Grupo 1).

Caracterizaram-se estes casos pelo uso de métodos rudimentares de interrupção da gestação, com alto risco de morte, que variaram da ingestão de medicamentos clandestinos, ao uso de chás abortivos até a aplicação intravaginal de objetos ou de substâncias químicas.

Em mais da metade dos casos, a notícia crime foi realizada por funcionários das unidades de saúde, depois que as mulheres buscaram atendimento médico por conta das previsíveis complicações (na imensa maioria das investigações, se tratava da rede pública de saúde e num único caso a gestante foi atendida na rede privada).

O perfil racial dessas 20 jovens criminalizadas por auto induzirem o aborto desassistido era de 60% de negras, com idade entre 18 e 36 anos na data dos fatos. Dentre elas, apenas 22% tinham cursado o 2o grau – nos casos em que a informação sobre a instrução estava disponível. A ampla maioria –75%– necessitou da assistência jurídica da Defensoria Pública para exercitar seu direito de defesa.

Em mais de 80% dos casos com informação disponível sobre o tempo gestacional, as mulheres tinham mais de 12 semanas de gravidez no momento da interrupção. Uma demora para realizar o procedimento, que pode estar relacionada ao medo de ser descoberta, à falta de informação sobre métodos disponíveis ou à dificuldade de organizar recursos e meios para o abortamento.

Em comparação, no segundo conjunto de casos, foram agrupadas as 22 mulheres processadas em consequência da prévia investigação policial das clínicas clandestinas em que foram atendidas (Grupo 2).

Todas foram flagradas pelas agências policiais no momento em que se encontravam na clínica para realização do procedimento, o que significa dizer que, apesar da interrupção da gravidez ocorrer num ambiente de clandestinidade, havia a presença de um profissional da medicina para levar a efeito a interrupção da gravidez (em apenas uma das clínicas clandestinas não havia profissional com formação médica). Os riscos de complicações e morte, portanto, foram minimizados pelos métodos empregados.

Aqui observamos um perfil distinto. Verificou-se uma faixa etária mais larga, que compreendia mulheres de 19 a 40 anos. Por outro lado, 53% das acusadas eram brancas, 75% delas cursaram até o 2o grau e a proporção de assistidas pela Defensoria Pública foi bem menor em relação ao primeiro grupo (apenas 40% delas utilizaram a assistência jurídica estatal).

Outro padrão observado no segundo grupo revelou que as mulheres que tiveram acesso a clínicas clandestinas realizaram o abortamento num estágio mais prematuro da gestação. Em 100% dos casos com informação sobre o tempo gestacional, o aborto foi feito com menos de 12 semanas, um cenário de menor risco de sequelas e mortalidade. O preço pago por isso variou entre R$600,00 a R$4.500,00.

Em todos os cenários, do aborto desassistido e do realizado em clínicas clandestinas, há um ponto comum: nenhuma mulher foi mantida presa durante o processo; não houve nenhuma condenação à pena privativa de liberdade e em mais da metade dos casos foi suspensa a ação penal sem que fosse necessário conduzir a acusada a julgamento.

Em que pese a semelhança das consequências jurídicas para ambos os grupos examinados – o que afastaria a possibilidade de demonstrar uma hierarquia racial na aplicação da norma penal –, os padrões identificados devem ser enfocados para além dos estritos limites do processo penal ou da justiça.

2. A centralidade do racismo na discussão da constitucionalidade dos tipos penais de aborto

Como visto, a inconsistência entre os números do aborto no Brasil e a efetiva aplicação da norma penal já seria suficiente para se questionar qualquer função preventiva dos tipos penais analisados. Em lugar de desestimular a prática do aborto, fica claro que a proibição penal estimula práticas de risco.6

O esquema observado na comparação dos grupos de mulheres denunciadas formalmente pela prática de aborto é ilustrativo da desigual distribuição de riscos que a tipificação penal produz.

Os métodos e cuidados disponíveis em cada um dos grupos acima destacados, a diferente média de tempo gestacional no momento da tomada da decisão e os indicadores sociais das mulheres processadas descortinam a cruel iniquidade que o ambiente da ilegalidade impõe.

Fatores como a renda e a raça são decisivos no enfrentamento do estigma imposto pela incriminação do aborto e na gestão dos recursos disponíveis para que os dois grupos de mulheres submetidas à ilegalidade penal possam proteger suas próprias vidas.

A maioria do Grupo 2 – de mulheres brancas, mais instruídas, e inseridas numa faixa de renda mais elevada – teve condições de uma tomada de decisão mais rápida e a possibilidade de mobilizar meios para pagar por um atendimento médico. No outro extremo, o Grupo 1, de maioria negra e menos instruída, por não dispor dos mesmos recursos informacionais e materiais, lançou mão de métodos grotescos de interrupção, com alto risco de complicações. E pelo medo de uma abordagem desumana e estigmatizante nos próprios serviços públicos de saúde, em alguns casos demoraram a procurar socorro e se expuseram ainda mais ao risco de morte.

O cruzamento da pesquisa realizada pela Defensoria Pública com os dados produzidos pelos especialistas em saúde confirma a hipótese de produção e reprodução de desigualdades pela criminalização: a mortalidade materna em consequência da gravidez que termina em aborto implica num risco de morte 2,5 vezes maior para mulheres pretas em comparação às mulheres brancas7.

E enquanto as desigualdades sociais impactam no acesso à saúde, o racismo institucional determina as condições de atendimento das mulheres negras, grupo mais exposto ao acesso desqualificado aos serviços do SUS, mesmo quando equiparada renda, nível de instrução e ocupação no mercado de trabalho.8

Na pesquisa “A cor da dor”9, publicada em 2017 pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz – a primeira análise de abrangência nacional das influências da raça/cor na experiência da gestação e parto -, ficou claro que o funcionamento cotidiano dos serviços de saúde importa em benefícios e oportunidades diferenciadas segundo a raça/cor, mesmo quando equiparadas as características socioeconômicas e controladas as variáveis demográficas.

Daí o porquê da insuficiência da racialização como um conceito subsidiário às ideias de seletividade e vulnerabilidade10 no âmbito da discussão da constitucionalidade dos tipos penais de aborto. Muito além de uma seletividade racista, a incriminação do aborto para as mulheres brasileiras significa o exercício de um poder de morte, de que tratou Foucault.11  Significa dizer que, através da tecnologia da raça se exerce um “biopoder” que se apropria da vida para gerenciá-la e sujeitá-la à completa instrumentalização.

Essa sofisticação do exercício do poder exige que qualquer discussão na temática do aborto esteja centralizada nos sujeitos racializados reais sobre os quais ocorre não apenas uma maior incidência seletiva da criminalização secundária, mas um verdadeiro processo material de dominação.

Tal cenário coloca o desafio para uma virada epistêmica e metodológica na aplicação da norma constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, de forma que a questão racial se transforme numa categoria analítica indispensável para a aplicação do Direito brasileiro – e não apenas um elemento da condição socioeconômica ou um elemento da vulnerabilidade.

Nesta segunda etapa da argumentação, o propósito do trabalho é o de evidenciar o racismo estrutural como um componente orgânico da ordem social brasileira, reproduzido cotidianamente pelo funcionamento normal das instituições do sistema punitivo, assim como do sistema de saúde, do sistema educacional, do sistema econômico e do sistema político.12

Os dispositivos que criminalizam o aborto não apenas incidem sobre a raça como algo que lhe é externo, mas integram um conjunto de fenômenos ligados à estrutura social brasileira, em que raça e sistema penal se constituem mutuamente e determinam as vidas dignas de se proteger e aquelas que se pode deixar morrer.13

Se os movimentos feministas mundialmente discutem a questão do aborto em termos de exercício dos direitos sexuais e reprodutivos, resultado da autonomia privada ou do direito ao próprio corpo, para as mulheres negras brasileiras expostas à morte na prática insegura do aborto, nem mesmo a ideia de “maternidade compulsória” seria adequada para retratar sua condição.

Alvo preferencial de esterilizações forçadas e de destituições abusivas do poder familiar, o corpo negro muitas vezes não é merecedor sequer [da] dor e conhecimento do papel social subalterno e determinado de mãe.

Ao criar condições para a discriminação sistemática, a escolha legislativa por uma política penal para o aborto reforça os mecanismos que sujeitam mulheres negras a um regime político de subcidadania, e alimenta a continuidade do racismo, entendido como processo histórico e político14.

Por tais razões, a proteção do princípio constitucional da igualdade na sua dimensão antirracista (artigo 3o, inciso IV, da Constituição de 1988) constitui o epicentro da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n˚. 442. Isto é, a Corte Suprema é chamada a afirmar a humanidade das mulheres brasileiras na sua mais radical concepção: o ponto de vista das mulheres negras.03

3. Quem pode decidir sobre o corpo das mulheres negras?

A virada metodológica proposta aqui desafia o paradigma do normativismo positivista, que, ao reduzir o Direito ao conjunto de normas jurídicas, oculta outras faces do complexo fenômeno jurídico, que incluem aspectos éticos, políticos e econômicos.

Coloca-se, então, como problema final a ser enfrentado a legitimidade da decisão majoritária de incriminar a prática do aborto pela mulher, um argumento recorrente nos debates sobre o assunto.

A lente do formalismo jurídico, estrategicamente, produz o silenciamento das condições de poder que estão por trás da produção do próprio Direito. E, com isso, legitima-se a lei como expressão da vontade geral do corpo político resultante de uma assembleia constituída em igualdade de condições15.

Ora, se a norma jurídica é produzida por instituições que refletem estruturas de distribuição desigualde poder – como o racismo e o patriarcalismo – as leis são muitas vezes uma extensão do poder político do grupo que detém o poder institucional.

Utilizemos um emblemático exemplo histórico: a Constituinte de 1987-1988, um pacto sexual e racial firmado por 594 parlamentares predominantemente homens e brancos, dentre os quais havia apenas 26 deputadas mulheres, apenas uma delas negra – a constituinte Benedita da Silva.16

Naquele cenário, as mulheres negras não tiveram, assim como não têm na disposição atual do sistema político, qualquer espaço de participação na deliberação legislativa, o que reforça as razões democráticas para que a jurisdição constitucional assuma o seu ponto de vista, para reequilibrar esta correlação de forças.

Quando o Direito está a serviço de projetos de discriminação sistemática, como vimos ser o caso da criminalização do aborto, é preciso olhar debaixo da superfície, para identificar as implicações de regras aparentemente neutras e democraticamente discutidas que representam, em verdade, a perpetuação da situação de subordinação de grupos historicamente discriminados.

É este o caso da ADPF n˚. 442, que espera-se possa inaugurar uma tomada de posição na interpretação da norma constitucional no Brasil, de modo a localizar no corpo negro a mais alargada proteção da dignidade humana.

*Mestranda em Direito na PUC-Rio. Graduada em Direito pela UERJ (2008). Defensora Pública no Estado do Rio de Janeiro desde 2012, coordena atualmente o Núcleo Especializado contra a Desigualdade Racial.

Foto: Fernando Frazão

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