PL do excludente de ilicitude: bala, lama e sangue nas mãos do agronegócio

Dirigentes do MST analisam significados do PL de Bolsonaro que autoriza o agronegócio a matar

Por Kelli Mafort e Gerson Oliveira*, na Página do MST 

A abertura de uma das maiores feiras do agronegócio, a Agrishow em Ribeirão Preto (SP), contou com a participação do presidente Jair Bolsonaro, que na manhã daquele 29 de abril, anunciou a liberação de R$ 1 bilhão de reais para o seguro rural do Plano Safra; defendeu juros menores para o setor — conclamando Rubens Novaes, presidente do Banco do Brasil, a atuar como um “cristão de verdade”; criticou as multas ambientais, prometendo um “limpa” no IBAMA e ICMBio e também anunciou um PL (Projeto de Lei) que libera de punição os proprietários rurais que atirarem ou matarem “invasores” em toda a extensão de sua propriedade, numa explícita supremacia da propriedade privada sobre a vida humana e que fere de morte a Constituição Federal tão atacada, principalmente em seu elemento mais fundamental que são os princípios que instituem o Estado Democrático de Direito como a soberania, o exercício da cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores do trabalho, o pluralismo político etc.

As efusivas palmas ao discurso do presidente de extrema direita na Agrishow, vieram de uma platéia lotada de chapeludos, engomados, gerentes e empresários que não se importaram em associar a imagem do “moderno” agronegócio da agricultura 4.0, à destruição ambiental, ao privilégio fiscal das mamatas ruralistas e à licença para matar “invasores”. Talvez não se importaram porque suas palmas ostentam mãos cada vez mais marcadas pelo sangue dos povos do campo, pela lama que virou cimento sobre os corpos dos trabalhadores da Vale em Brumadinho (MG) e pelas balas disparadas por máquinas de um massacre silencioso que se abastece da impunidade.

O termo excludente de ilicitude ganhou fama por integrar o pacote anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro, que libera militares e policiais de punição em exercício profissional – o recente caso dos 80 tiros de militares contra uma família negra no RJ, demonstra o absurdo de tal medida (neste revoltante episódio morreram Evaldo Rosa que dirigia o veículo e Luciano Macedo, catador de recicláveis que por acaso estava no local e se colocou como escudo humano, além dos ferimentos e traumas deixados na vida daquelas pessoas).

A ampliação do sentido da excludente de ilicitude, artigo 23 do Código Penal Brasileiro, é uma proposta que já se arrasta a alguns anos dentro da Câmara dos Deputados, tendo a Bancada da Bala como principal lobista por sua aprovação. A alteração legal é equivalente ou ainda pior do que a oficialização dos chamados “Autos de Resistência” ou “morte decorrente da ação policial” que vigora na prática policial e culpabiliza a vítima por sua execução, via de regra, jovens pobres e pretos que são suspeitos em potencial, ainda que não se tenha estabelecido o crime.

O auto de resistência não possui amparo legal, mas isenta o policial autor do homicídio de ser preso em flagrante sob a justificativa da legítima defesa. A proposta de alteração contida nos projetos apresentados por Bolsonaro e de Onyx Lorenzoni quando atuavam como deputados e que agora volta à tona, insere dois elementos novos no Código: primeiro a extensão do direito de “legítima defesa” sob o patrimônio (leia-se licença para matar em defesa da propriedade) e, ao mesmo tempo, a não possibilidade de investigação ou mesmo de abertura de inquérito para apurar os casos de abusos ou violência policial desmedida contra o cidadão comum.

Alguns formalistas poderão dizer que por enquanto isso é só um projeto e tal como todo PL, deve ainda tramitar pelo Congresso Nacional e dificilmente seria aprovado pelo absurdo da dubiedade que o tema sugere (indígenas poderiam utilizar o argumento do excludente de ilicitude para defenderem suas reservas dos madeireiros ou os trabalhadores sem terra poderiam expulsar das terras públicas da União a invasora empresa Cutrale, notória grileira de terras no estado de SP, etc). Mas obviamente não é disso que se trata, pois independente do PL virar lei, ele já virou incentivo às perseguições e assassinatos no campo.

Outros ainda poderão dizer que o PL se direciona mais ao combate à roubos e furtos nas propriedades rurais. Notem o absurdo deste pensamento que institucionaliza a pena de morte num país onde ela é proibida perante a lei (apesar de ocorrer em larga escala) e abdica da responsabilidade sobre a segurança pública por parte do Estado, outorgando-a ao indivíduo comum sem nenhum preparo técnico ou emocional.

Vale lembrar que o Código Penal Brasileiro que foi concebido no início da década de 1940 e que se mantém até os dias de hoje, apesar dos remendos, foi diretamente inspirado no Código de Processo Penal Italiano que entrou em vigor em pleno governo fascista (1930) que instituiu na prática a lógica de exceção, o sistema punitivo dos crimes cometidos contra o Estado e as formas de repressão e controle sobre os indivíduos. Quando Alfredo Rocco apresentou o projeto de lei para o novo código, disse que ele tinha como bandeira principal o combate à “criminalidade e a delinquência habituais”, alicerçando as “bases legais” para o que se viu na sequência: a dissolução da Câmara dos Deputados, a suspensão dos direitos e a perseguição política aos opositores do regime fascista de Mussolini.

A vociferação bolsonarista na feira do agronegócio expôs mais uma vez o “show de horrores” que caracteriza o atual governo: entreguista, subserviente aos EUA, violento, arrogante, autoritário e radicalmente destruidor dos direitos dos pobres, negros, indígenas, sem-terras, mulheres, LGBT’s e educadores em geral. Mas seu discurso também revela medo e pavor daqueles que efetivamente podem se organizar, lutar e derrubar o seu governo, soterrando suas velharias fascistóides.


*Kelli Mafort e Gerson Oliveira são dirigentes MST

Charge em homenagem ao massacre de Eldorado dos Carajás | Ilustração: Carlos Latuff

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