Mino Carta: Bolsonaro não é ultradireitista, soberanista, fascista. Ele é demente

Não há como definir a ideologia bolsonarista, somente cabe dizer que com o eleito em 2018 pela maioria a demência tornou-se forma de governo

CartaCapital

Tenho a dolorosa certeza de que os analistas da monstruosa crise provocada pelo golpe de 2016, impulsionado desde 2014 pela Lava Jato e obrado pelos próprios poderes da República, e finalmente coroado pela eleição de Jair Bolsonaro, nada sabem a respeito do seu país. Para citar um exemplo recente, leio no Estadão de sábado 1º de junho que, em visita a Goiás, o capitão defendeu a “agenda conservadora”. Conservadora? Salvo raras exceções, jornalistas, colunistas, pensadores dos mais diversos matizes imaginam viver em outro lugar que não o Brasil.

Uma terminologia viável até hoje em países democráticos e civilizados não se adapta às nossas circunstâncias: conservadores e progressistas não medram por aqui. Esquerda e direita são termos inaceitáveis quando a casa-grande e a senzala continuam de pé. Não há como definir a ideologia bolsonarista, somente cabe dizer que com o eleito em 2018 pela maioria a demência tornou-se forma de governo. Bolsonaro não é ultradireitista, soberanista, fascista. Ele é demente. A irreparável enfermidade que o acomete, e aos filhos, e ao governo em peso, a sua incapacidade política, a sua ignorância abissal, a sua visão primitiva do mundo, o seu temperamento atrabiliário o impossibilitam definitivamente a cumprir a tarefa que os eleitores lhe entregaram e que os generais garantem. Temos razões de sobra para temer, entretanto que o Brasil o mereça, imerso cada vez mais em uma Idade Média dos tempos mais obscuros.

Cabem no cenário a jactância cômica dos privilegiados que já sonharam com Paris e hoje com Miami, o ódio social e de classe insopitável e de inaudita ferocidade, enquanto os desvalidos, a maioria sofredora e resignada, sem consciência da cidadania, não percebem o destino que lhe reservou uma distribuição de renda iníqua e a incompetência de uma pretensa esquerda.

Permito-me apresentar um sucinto questionário dedicado a quem desconhece seu país. As perguntas, poucas para simplificar o serviço, começam da seguinte maneira: qual é o país democrático e civilizado onde… Aqui a questão se explicita e aguarda a resposta.

… as Forças Armadas, em vez de proteger as fronteiras como instrumento apolítico de defesa nacional e do próprio Estado, determinam o destino da nação, se preciso de armas em punho?

… o único líder popular é condenado e preso sem provas para impedir sua participação em um pleito presidencial que inevitavelmente venceria?

… os poderes da República unem-se para rasgar a Constituição e desferir o enésimo golpe de Estado em uma sequência implacável que caracteriza 130 anos de história?

… a mídia, praticamente em peso, funciona como porta-voz oficial da minoria privilegiada e dos seus interesses?

… mais de 60 mil homicídios são cometidos anualmente?

… o ciclópico desequilíbrio social consagra-o como um dos mais atrasados do mundo?

Se a conclusão não precipitar a constatação de que o Brasil não é democrático e civilizado, e nunca foi a não ser em raros dias de esperança, quando pareceu ter encontrado o rumo, localizaremos com precisão quem não é capaz de entender onde vive. É o resultado da ignorância nativa. Caso típico, e recentíssimo, o do terrorista Cesare Battisti, finalmente capturado na Bolívia pela polícia italiana depois de 30 tentativas frustradas da brasileira. A chamada esquerda verde-amarela o considerava um herói com o aval de professores universitários e ministros do STF, sem contar o ex-ministro da Justiça Tarso Genro: não se conforma ao insinuar que a confissão do assassino contumaz foi extraída à força, conforme antigos e celebrados hábitos verde-amarelos.

Desta ignorância, desta enevoada visão do mundo faz parte a ideia de que Bolsonaro é fascista. Antes de mais nada vale esclarecer que regimes totalitários são, para dizer pouco, execráveis de todos os pontos de vista. Mas cada qual, ao vingar, se adaptou às circunstâncias do país em que se deu. O salazarismo em Portugal, o falangismo na Espanha, o stalinismo na Rússia soviética, o nazismo na Alemanha. Espero que Salazar, Franco, Stalin, Mussolini queimem nas chamas do Inferno, mesmo assim não eram dementes. Quanto a Hitler, cabem justificadas dúvidas: o regime tinha sido muito eficaz na industrialização da Alemanha e de ferocidade sem paralelo na busca insana da raça pura. No confronto, os Autos de Fé empalidecem.

O fascismo é um fenômeno tipicamente italiano, uma nódoa na história que medeia entre as duas Guerras Mundiais do século passado. Quanto ao seu líder, Benito Mussolini, filiado inicialmente ao Partido Socialista, jornalista que lidava com desembaraço com seu vernáculo, pretendia pelos caminhos fascistas transformar a Itália em potência mundial. O país perdera 600 mil soldados na Primeira Guerra Mundial, tinha uma economia basicamente agrícola e apresentava um desequilíbrio econômico e social profundo entre o Norte e o Sul. Munido de uma retórica grandiloquente, embora empolgante aos ouvidos provincianos, o fascismo foi fortemente nacionalista e decisivo na criação da indústria automobilística e naval.

Vivi a infância e a primeira adolescência durante a ditadura totalitária do fascio e, chegada a hora de ir para a escola, o meu pai, redator-chefe do principal jornal genovês, liberal à moda antiga e antifascista até a medula, me remeteu para o colégio das Marcelinas, tão avessas a Mussolini quanto ele, que, aliás, estava longe de ser católico praticante. Tenho a melhor lembrança daquelas suaves senhoras de touca levemente brejeira a não dispensar rendinhas, e do primário de classes mistas, alunos e alunas, muitos deles e delas judeus a motivar a minha inveja no momento da aula de Catecismo, quando eram enviados ao parque frondoso a cercar o colégio. Minha primeira paixão derretia-se aos pés da colega Simonetta Avigdor.

Vigorava a lei racial ditada por Hitler, amigos judeus dos meus pais, no entanto, levavam uma vida normal. Basta uma morte na consciência para condenar um ser humano e não busco desculpas ao observar que 8 mil judeus italianos chegaram aos campos de extermínio, enquanto foram 200 mil os franceses durante o governo do general Petain. A diferença explica-se à luz do temperamento e dos humores peninsulares. Derrubado, em julho de 1943, pelos integrantes do Grande Conselho do Fascismo, encabeçados por Dino Grandi e Galeazzo Ciano, na perspectiva da iminente derrota fruto da aliança com Hitler, o Duce foi preso em uma fortaleza dos Apeninos, da qual seria libertado por um comando nazista para fundar no norte a República de Saló, cujos janízaros prenderam meu pai em abril de 1944. Mussolini morreu fuzilado pelos partigiani ao fugir para a Suíça, juntamente com a amante, e acabou pendurado de cabeça para baixo na bomba de gasolina de uma praça periférica de Milão. Conto isso tudo para sublinhar que semelhança entre Mussolini e Bolsonaro não há alguma, mesmo porque a Itália não é o Brasil.

Aqui, entre os opositores de Bolsonaro, ainda há quem acredite na conciliação das elites, como se a porta da mansão pudesse se abrir para quem se preocupa com a sorte do povo. CartaCapital sabe o quanto a ideia é falaciosa, daí nosso apoio incondicional à greve geral convocada para o próximo dia 14. Esperamos que o recente exemplo argentino seja imitado e que saiba expor sua repulsa ao bolsonarismo, à sua patética veia totalitária, ao seu desvairado entreguismo, à sua incurável demência.

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

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