Os isentões tomam a frente do golpe. Por Luís Felipe Miguel

No Demodé

A divulgação das conversas da força-tarefa da Lava Jato com o então juiz Sérgio Moro adquiriu tal magnitude que se tornou impossível, para o establishment político e midiático, ignorá-las. A direita extremada manda suas hordas, nas redes virtuais, redobrar a virulência nos ataques ao “petismo” (categoria ampla que engloba todo o campo democrático), lançar acusações contra Glenn Greenwald e preparar falsificações para, a partir delas, tentar desmoralizar os diálogos autênticos. Ações de quem está na defensiva e não vê como sair dessa posição.

No início relutantes, os meios de comunicação corporativos acabaram tendo que noticiar o vazamento, mesmo que de forma tímida e enviesada. A tentativa de minimizar o episódio, emblematizada pela reação inicial de Fernando Henrique Cardoso (”tempestade em copo d’água”), logo mostrou fôlego curto. A natureza dos crimes cometidos por Moro, Dallagnol e seus asseclas faz com que eles, mesmo que não pareçam tão espetaculosos para os desavisados, sejam imediatamente identificados como gravíssimos nos meios jurídicos. A corregedoria do Ministério Público iniciou investigação sobre Dallagnol e mesmo a OAB, cuja postura ao longo de todo o processo do golpe sempre foi de cumplicidade ativa, pediu o afastamento dos implicados.

Os jornalões, que ontem tentavam esconder o episódio, hoje começaram a se render. O Estadão ainda arranja uma manchete fora do tema, mas O Globo diz “Conversas de Moro com procuradores e ação de hacker serão investigadas”. Tenta o difícil caminho de colocar os malfeitos da Lava Jato e o trabalho jornalístico do Intercept Brasil no mesmo saco. A Folha escancara a crise: “Governo Bolsonaro se blinda e adota cautela com Moro”.

Abre-se, então, a possibilidade de sacrificar Moro. Até agora, o ex-juiz não conseguiu inventar uma linha de defesa razoável. Primeiro, lançou uma nota cujo efeito principal foi confirmar a autenticidade dos diálogos. Agora, esconde-se atrás de um insustentável “não vi nada demais” – mas se alguém que era juiz não via “nada demais” em orientar um dos lados de um caso que ia julgar, das duas uma: ou é mentecapto ou é cínico. Em Manaus, ontem, deu chilique e interrompeu entrevista em que foi indagado sobre o assunto.

O ex-justiceiro de Curitiba mostra, uma vez mais, despreparo. E a posição de bode expiatório casa como uma luva para ele, por dois motivos. Primeiro, embora sempre tenha sido apenas um peão, tornou-se símbolo da Lava Jato e “herói” nacional. Se cair, dará a impressão de que a justiça triunfa. Depois, porque todos já perceberam que é frouxo. Outro, em seu lugar, já teria batido a mão na mesa e dito “se eu cair, eu explodo essa zorra toda”. Moro não é desses. O primeiro e crucial dia da crise passou sem uma manifestação vibrante de solidariedade do governo no qual ele teria entrado como “avalista”.

É aí que os “isentos” se apresentam, para sugerir um caminho. Trata-se de afastar Moro, mas manter de pé suas decisões. Um folclórico colunista conservador da Folha de S. Paulo escreve hoje que, embora esteja demonstrado que “o ex-juiz e os procuradores estabeleceram uma relação de proximidade absolutamente inadequada, que dá substrato à suspeita, desde sempre levantada pela defesa do ex-presidente, de que Moro não atuava com imparcialidade”, os julgamentos não devem ser anulados, já que “não há sugestão de que Moro e os procuradores tenham interferido na realidade fática das provas”. Se o raciocínio dele tivesse lógica, poderíamos abolir a magistratura: a “realidade fática das provas”, por si só, condenaria ou absolveria. Mas, na verdade, a “realidade fática das provas” exige interpretação; por isso é que se cobra imparcialidade do juiz. Quando esse juiz colabora com um dos lados e mesmo, detalhe que o jornalista convenientemente ignora, reconhece privadamente que as provas que vai usar para condenar são muito frágeis, não há como salvar o processo.

Do Twitter, vem a contribuição daquele que é a encarnação brasileira da personagem de Macedonio Fernández, “el hombre que será Presidente y no lo fue“: “Antes que as paixões contra ou a favor do ex-presidente Lula – o mais notável atingido pela Lava Jato – venham aqui defender cegamente seus interesses, lembrem-se de Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima, Palocci… todos esses poderão se beneficiar com o que está acontecendo“. Portanto, para Ciro, a manutenção de “homens maus” presos compensa a violação de todas as regras do correto processo judiciário. Falando para um público diferente, ele admite que a prisão de Lula pode ser injusta, embora seja o preço a pagar pela punição dos outros, mas na essência sua postura não difere do amoralismo da extrema-direita punitivista.

Os diálogos publicados até agora mostram com clareza uma conspiração entre Judiciário e Ministério Público para condenar Lula. Caso mostrem trama igual contra outras pessoas, as condenações precisam também ser revogadas – mesmo que se trate de Eduardo Cunha. Ao contrário do que Ciro insinua, a campanha “Lula livre” não se baseia numa suposta imunidade do ex-presidente, mas na defesa do direito de defesa e das regras do justo processo penal.

Também a ex-senadora, ex-ministra e ex-líder política se manifestou. Uma longa nota, resumida, num tuíte, à ideia de que “não se pode ter dois pesos e duas medidas“. Enigmático, como de costume, mas a leitura da nota, com ênfase em evitar que “possíveis erros sirvam de pretexto para desconstruir a luta anticorrupção”, mostra que a opção é também afastar ou até punir Moro e Dallagnol, mas manter Lula preso. A “luta anticorrupção” é alçada à posição de valor máximo; em nome dela, todos os direitos podem ser atropelados.

Fernando Henrique Cardoso, por sua vez, no final do dia de ontem abandonou o discurso da “tempestade em copo d’água” para, quem diria, aderir à linha de Marina Silva. Em um tuíte que aparentemente não diz nada, conclama – ou seria cancloma? – um “grande acordo nacional”: “É hora de juízo: sem entendimento perderemos o bonde da história“. O “entendimento”, parece claro, é entre os artífices do golpe, para evitar que a exposição da podridão da Lava Jato prejudique os frutos alcançados até aqui.

Quem desvela melhor a estratégia é outro colunista da Folha, que adverte para o “falso dilema”. Diz ele: “No jogo amarrado da polarização, o público é levado a escolher entre o atropelo do devido processo legal e a impunidade pura e simples“. Em vez disso, “é preciso articular uma posição independente na qual se reconheça a gravidade do que foi revelado pela Operação Lava Jato, a atribuição da responsabilidade política de quem governava durante o período e a necessidade de que a investigação e o julgamento dos ilícitos aconteçam dentro dos parâmetros da lei e da Constituição“.

São palavras bonitas, mas carentes de sentido. O que foi revelado pela conspiração Lava Jato é indissociável de seus métodos. Se o julgamento estava enviesado, se havia predisposição para condenar mesmo com evidências frágeis e impermeabilidade aos argumentos da defesa, não há caminho possível exceto a anulação do processo. Ortellado ridiculariza o fato de que a esquerda apresenta os diálogos publicados no Intercept Brasil como provas cabais “da parcialidade da Lava Jato, do caráter político do julgamento do ex-presidente Lula e de que o impeachment de Dilma Rousseff foi efetivamente um golpe parlamentar”. Ele pode falar à vontade em “disputa de narrativas”, mas não muda o fato de que, sim, os diálogos provam tudo isso.

O caminho sugerido agora pelos pretensos isentões é esse: punir os punitivistas para manter o punitivismo. Isso não serve para o campo democrático. É preciso restaurar a vigência dos direitos e das garantias. É preciso anular as condenações tendenciosas e injustas. E é preciso desmitificar o discurso do “combate à corrupção”, que convenientemente esquece o caráter estrutural da relação entre capital e Estado e serve apenas para destruir a democracia.

Foto: Associação Brasileira de Editoras Universitárias (Abeu)

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

sete − cinco =