Punitivismo, antipolítica e avanço da direita: o caso da Lava Jato. Por Luis Felipe Miguel

No Justificando

Quando a Lava Jato eclodiu, muita gente a apoiou de boa fé. Os vieses da operação eram evidentes a qualquer olhar um pouco atento, mas era possível admitir o discurso de que, cedo ou tarde, a “limpeza” iria alcançar todos.

Desde o começo, os métodos eram, digamos, heterodoxos, mas também era fácil aceitar que um tanto a mais de “pressão” era o preço a pagar para romper o ciclo de impunidade. Mesmo à esquerda, colava a ideia de que a corrupção – sempre vista como um problema do caráter de alguns indivíduos, não um elemento sistêmico da relação entre capital e política – era o maior problema nacional.

Poucos se preocupavam em analisar as afinidades eletivas entre a Lava Jato e o discurso antipolítico, que tornaram a operação instrumental seja para o desmonte das empresas estatais, seja para o avanço da extrema-direita.

O apelo do discurso do “combate sem tréguas à corrupção” era tanto que já em 2017, portanto depois do golpe de Estado que derrubou a presidente Dilma Rousseff, o jornalista Glenn Greenwald – um liberal e democrata, que agora cumpre inestimável papel revelando o conluio entre Sérgio Moro e o Ministério Público – declarava que a Lava Jato era “algo extraordinariamente corajoso, digno de ser homenageado”. Na mesma época, outra jornalista, reconhecida como defensora dos direitos humanos, Eliane Brum, temperava críticas pontuais à operação com a afirmação de que ela “é importante e é imperativo que ela continue”.

“Era grande o custo de ser contra a Lava Jato”

Era grande o custo de ser contra a Lava Jato: era como ser a favor da corrupção. Políticos à esquerda saudavam com entusiasmo a operação. Alguns de fato podiam acreditar na retórica da “limpeza geral” do sistema político. Outros antecipavam a derrocada do PT e sonhavam com herdar o espólio – o nome de Luciana Genro é apenas o primeiro da lista. Mas mesmo petistas sentiam que o custo de criticar os heróis do momento era alto demais e adotavam um discurso público conciliador. Não foram poucas as declarações de Fernando Haddad, já como candidato em 2018, garantindo apoio à Lava Jato e mesmo elogiando o juiz de primeira instância: “Em geral, Sérgio Moro fez um bom trabalho”.

Por convicção, por ingenuidade ou por oportunismo, muitos abriram as portas para o discurso punitivista e, assim, para a derrocada do Estado de direito e da democracia.

Depois das reportagens de The Intercept Brasil, só os cínicos são capazes de defender a Lava Jato. Hoje talvez o mais ativo porta-voz do autoritarismo iliberal no STF, o ministro Luiz Roberto Barroso deu uma declaração pública de transparente clareza: “A corrupção existiu e precisa continuar a ser enfrentada, como vinha sendo. De modo que tenho dificuldade em entender a euforia que tomou os corruptos e seus parceiros [com as revelações do conluio entre juiz e procuradores]”.

“Seu objetivo nunca foi combater a corrupção e isto parece evidente hoje. Mesmo que tivesse sido, não justificaria os meios adotados.”

O que Barroso está dizendo é que o respeito às regras do processo penal, ao direito de defesa e à imparcialidade judiciária não é apenas uma bobagem, mas uma forma de leniência com a corrupção. Trata-se de punir os “maus” e pronto – e, na ausência do julgamento correto, sabemos quem são os “maus” graças à opinião publicada…

Pouco separa Barroso dos brados de “deporta Greenwald” que ecoam nas redes sociais, vindos da extrema-direita em fúria. Que esta mentalidade tenha assento na máxima corte brasileira, aquela que deveria proteger a Constituição, é um sintoma grave da situação que atravessamos.

A Lava Jato atuou contra a reeleição de Dilma em 2014, pelo golpe e pela prisão de Lula em seguida, para impedir a vitória do PT em 2018. Seu objetivo nunca foi combater a corrupção e isto parece evidente hoje. Mesmo que tivesse sido, não justificaria os meios adotados.

A pusilanimidade do campo democrático na defesa dos princípios que o caracterizam, sua capitulação diante do discurso fácil e interessado da mídia e sua falta de disposição em fazer a disputa das narrativas são corresponsáveis pelo peso que o punitivismo autoritário ganhou no Brasil. Mas não há conciliação possível: é uma visão que aponta inequivocamente para o fascismo.

Luis Felipe Miguel é doutor em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB).

Imagem: ALAI

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