VazaJato: Se o governo vai mal, o juiz pode agir para mudar esse governo? Se as leis são ruins, ele pode mudar as leis? Pode o juiz agir em parceria com a acusação?
Por Thomas Bustamante, no Justificando
“Eu prefiro por ignorância sobre a verdade do fato ou por falta de provas sobre ele absolver dez culpados do que condenar um inocente. É pela graça e a bondade de Deus que eu próprio nunca cometi grandes imoralidades como aquelas sobre as quais eu exerço jurisdição. Eu estou sujeito às mesmas paixões e inclinações e corrupções que esses mesmos malfeitores têm. … Mas apesar de o dever de meu cargo exigir [que eu faça] justiça e possivelmente aplique punições severas para os crimes, ainda assim o senso comum de humanidade e de fragilidade humana devem, ao mesmo tempo, provocar em mim grande compaixão pelos criminosos.” [1]
Infelizmente, essa citação não é de Moro, mas do juiz inglês Matthew Hale, que as escreveu em seu diário pessoal em 1.668.
Hale viveu dois Golpes de Estado e um regicídio, e permaneceu juiz ao longo de todos eles. Apesar de monarquista, sempre se esforçou para distanciar-se das turbulências políticas de seu tempo e para aplicar de modo responsável e imparcial o direito. Talvez tenha sido o mais importante jurista do common lawdo século XVII, e seus escritos são profundamente contemporâneos.
É o direito, não o governo, quem exerce a soberania
Diante do regicídio e da ascensão de Cromwell na Inglaterra, Hale renunciou ao posto de juiz, mas poucos meses depois foi convidado pelo novo soberano a assumir uma importante função judicial. Recusou, mas diante de uma carta de Cromwell foi convencido a retornar à função de juiz porque Cromwell lhe prometeu que só o havia convidado à função porque com isso expressava “profunda lealdade ao common law e sua convicção de que o poder governante, como quer que fosse constituído, deveria responder diante do direito” [2].
Após a morte de Cromwell, Hale renuncia novamente porque não via legitimidade em seu sucessor, mas quando a monarquia é reestabelecida ele é chamado a promover uma conciliação entre parlamentaristas e monarquistas, chegando à fórmula contemporânea de uma monarquia submetida à soberania do parlamento.
O princípio mais fundamental de Hale era de que a autoridade do governo é subordinada ao Direito. É o direito, não o governo, quem exerce a soberania, e é com base nesse direito, não no direito fixado por um ato unilateral de vontade, que a jurisdição deve ser exercida. É com base nos princípios implícitos nas práticas sociais que constituem o Direito, e não nas interpretações privadas que os intérpretes possuam.
Vamos então ao ponto do post. Vamos à #VazaJato: confiram o diálogo entre Moro e Dallagnol realizado pelo Telegram em 13 de março de 2016, segundo o The Intercept:
Deltan – 22:19:29 – E parabéns pelo imenso apoio público hoje. Você hoje não é mais apenas um juiz, mas um grande líder brasileiro (ainda que isso não tenha sido buscado). Seus sinais conduzirão multidões, inclusive para reformas de que o Brasil precisa, nos sistemas político e de justiça criminal. Sei que vê isso como uma grande responsabilidade e fico contente porque todos conhecemos sua competência, equilíbrio e dedicação.
Moro – 22:31:53 – Fiz uma manifestação oficial. Parabens a todos nós.
Moro – 22:48:46 – Ainda desconfio muito de nossa capacidade institucional de limpar o congresso. O melhor seria o congresso se autolimpar mas isso nao está no horizonte. E nao sei se o stf tem força suficiente para processar e condenar tantos e tao poderosos.
Deltan – 22:59:49 – Vi. Ficou ótima.
Deltan – 23:03:37 – Não vai acontecer. A experiência italiana é um exemplo das dificuldades. Se aprovarmos as 10 medidas (já contam com mais de 1,6 mi de assinaturas, e apoio crescente dos parlamentares), o próximo passo que podemos dar é o fim do foro por prerrogativa de função, reservando-o para 15 pessoas. Teremos voz para isso, pq os casos do supremo não andarão com 1/10 da celeridade. Sei que tudo é dificil, mas precisamos acreditar e fazer. Foi em razão da experiência com o Banestado que no ano passado investi tanto tempo nas 10 medidas. Se não mudarmos o sistema, sabemos o que acontecerá com os casos. No Congresso já há um acordo de líderes encaminhado para, mediante projeto de lei, reverter a recente decisão do STF. Precisamos atacar e avançar no âmbito legislativo tanto quanto nas ações penais.
Moro – 23:07:10 – Sei do projeto mas nao acredito que terao coragem no momento. mas o clima pode mudar. Bem. Vamos passo a passo, dia a dia.
Deltan – 23:14:53 – Preciso que Vc assuma mais as 10 medidas ou outras mudanças em que acredite também, se entender que isso não trará problemas sérios. A sociedade quer mudanças, quer um novo caminho, e espera líderes sérios e reconhecidos que apontem o caminho. Você é o cara. Não é por nós nem pelo caso (embora afete diretamente os resultados do caso), mas pela sociedade e pelo futuro do país. [3]
Se o governo vai mal, o juiz pode agir para mudar esse governo?
Saímos de Mathew Hale, um dos maiores juristas da história do sistema jurídico mais antigo em vigor no mundo, para Luís Roberto Barroso. Dallagnol e Moro seguem o conselho de Barroso e estão “empurrando a história”. Estão tomando a frente do processo de mudança do direito. Enquanto Hale entendia que o seu dever como magistrado era o de fidelidade ao direito, a seus princípios, normas e convenções, o Iluminista Tupiniquim crê que o seu sistema jurídico está em um estágio civilizatório inferior e que o papel do jurista é mudar esse sistema em direção a um suposto futuro melhor. Se o governo vai mal, o juiz pode agir para mudar esse governo. Se as leis são excessivamente garantistas, que se mudem as leis. As convicções e interpretações privadas são mais importantes. Os nobres fins que movem a ação puritana dos juízes, elevados à categoria de princípios absolutos, tornam secundária qualquer objeção, e passam a justificar qualquer decisão.
Perdem-se os limites na busca desse bem maior. Ah, dir-se-ia: “mas o que são esses limites, diante da grandeza dos fins e dos bens que os nobres missionários estão a proteger?” Só a cegueira de alguns pode justificar a formulação dessa pergunta. A resposta é tão óbvia que eu me recuso a respondê-la e me sinto autorizado a criticar aqueles que formulam essa pergunta pelo simples fato de fazê-lo, pois esses limites são a essência e o núcleo do próprio conceito de Estado de Direito.
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Thomas Bustamante é Professor Associado da Universidade Federal de Minas Gerais
Foto: Marcos Corrêa/PR