Por Carla Souza, no Rio On Watch
No dia 20 de maio, num clima calmo, ao som de Alabê Ketujazz, os alunos da 14° turma de Contação de Histórias Negras vão chegando a um espaço aconchegante, na Lapa, Rio de Janeiro: A Casa com Música. As esteiras estão dispostas em círculos, com um pano colorido no meio e sob ele um pequeno acervo de histórias com o “protagonismo negro”—seja na ilustração, na autoria ou no enredo. O silêncio aguça os sentidos e as indagações surgem: Porque em roda? Onde ela conseguiu tantos livros? Que música é esta? Como não conhecia tantas histórias assim?
E a primeira contação salta da roda. Numa narrativa imagética, Sinara Rúbia—graduada em Letras-Português e Literatura, e atuante na área de Literatura Infanto-juvenil Negra e Contação de Histórias— conta sua trajetória misturando realidade a elementos lúdicos. Ela narra seu “encontro” com a Sra. Sabedoria, que apresenta o Sr. Conhecimento e por fim a Sra. Inteligência. Então começa a sua aventura com as palavras. Não menos poético, porém mais formal, os alunos contam sobre suas expectativas em relação ao curso e quais são suas atuações profissionais. A teia vai se formando, e os saberes e experiências de cada um parecem confluírem. No geral todos, cada qual com sua especificidade, tem em comum o desejo de saber mais sobre si mesmos, enquanto negros, e como este conhecimento pode alcançar novas pessoas e novos espaços.
O curso de contação de histórias teve início em 2017, quando Sinara foi convidada para falar sobre histórias negras, na Central Única das Favelas, a CUFA. Desde então mais de 200 alunos já se formaram. A educadora a partir de suas vivências enquanto mulher negra, mãe e artevista—como gosta de se intitular—viu a necessidade de buscar alternativas literárias que contemplassem o povo negro desde a infância. Este desejo ficou mais evidente quando, em uma feira literária de grande porte, Sinara voltou sem nenhum título que representasse dignamente a cultura negra, deixando claro a necessidade de um curso para educadores. Então nasceu este curso tão necessário para educadores que acreditam que a pluralidade de narrativas é o caminho mais justo para a educação.
A grade das aulas são compostas de 30 horas, divididas em seis encontros, um dia para introdução e cinco dias de aulas, que abordam pautas essenciais para os novos contadores. Os temas dialogam uns com os outros, e a cada noite os alunos vão vivendo espantos e reencontros com Áfricas arrancadas de seus ancestrais.
No processo literário do curso, podemos destacar a primeira aula como a mais importante: a que fala dos griô (grafia brasileira de griot). Estes são os guardiões das palavras, de saberes e mitos, que em muitos povos africanos eram figuras importantes para sua comunidade. Diferente das culturas europeias, que são mais baseadas na escrita, estes povos africanos davam total importância aos conhecimentos transmitidos oralmente, por estes guardiões. Nesta aula, os novos contadores foram estimulados a pensarem quantos, entre seus familiares e amigos, poderiam ser griôs. Contadores de histórias que trouxeram nossas culturas até aqui, através da oralidade, mesmo em condição subumanas utilizando sua melhor tecnologia: a fala. Os nossos ancestrais, ainda que escravizados, sabiam do poder da palavra e de contar uma história. Nesta aula o grupo foi atravessado por esta tomada de consciência sobre a importância de contar sobre nós para os nossos. Os tempos mudaram, mas tentativas de silenciamento e invisibilidade do povo negro ainda permanecem. Saber que a palavra destes antepassados eram tão poderosas, a ponto de arrebentar os grilhões do medo e da dor para que nossas tradições não morressem, colocou todos presentes diante da responsabilidade de ser um contador de histórias negras.
Dito isto, partimos para segunda aula. Este encontro subverteu as estratégias de exclusão, através de imagens e narrativas da maioria dos livros vendidos. A convidada da segunda aula, a pedagoga Tatiana Oliveira —que trabalhou em editoras formais— percebeu a necessidade de haver livros, disponíveis e acessíveis, que colocassem os negros e sua cultura em primeira pessoa e de maneira afirmativa. Porém, a seleção de livros com este protagonismo parecia uma grande barreira, pois era como se estes não existissem. Tatiana trouxe para o grupo de novos contadores o relato e o fruto do seu trabalho de sensibilidade e empreendorismo ao criar a Nia Produções Literárias, cuja missão é promover a leitura e formar leitores, proporcionando o acesso à literatura infanto-juvenil com abordagens africanas, afro-brasileiras e de temas sociais. Tatiana revelou que o seu trabalho vai além da venda para um nicho de mercado. A Nia, que significa propósito, atua como um braço fortalecedor para que a cultura afro-brasileira não se perca em acervos empoeirados ou racistas. Colocando nas prateleiras de estudantes e educadores a única arma que realmente causa transformações: a educação.
A responsabilidade parece aumentar a cada noite, no entanto junto vem também a urgência de continuar a luta por espaços de falas e representatividade. Simone Ricco foi a terceira convidada. Mestre em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela UFF, Simone é professora na rede municipal e colaboradora nas Pós-Graduações em Literatura Infanto Juvenil-UFF e História e Cultura da África do IPN/FEUDUC. Seu chamado é: Vamos enegrecer a academia! Num apanhado contundente e profundo, Simone traz para a roda a pretagogia, um método que vem sendo pautado e discutido em cadeiras acadêmicas para difundir a educação fundamentada nas culturas de matriz africana. Desta aula o recado mais forte foi, ainda que a Lei 10.639 (que tornou obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileiras no ensino médio e fundamental) seja apagada, nós não retrocederemos.
O círculo, algo tão importante para a cultura africana, na quarta noite, ganha outros moldes. As esteiras são guardadas e o corpo é o tema central desta aula. Paulo Gomes, ator, produtor cultural, cineasta e instrutor da Oficina Contando Histórias com Arte foi o quarto convidado. Neste momento, as palavras ganharam o apoio do corpo e pela primeira vez as histórias foram escolhidas e contadas. Este encontro é um dia marcante, pois os alunos começam a sentir na prática a beleza de contar algo para alguém. As histórias vão nascendo em um processo empírico e sensorial, olhos atentos ao texto. A busca por suporte é criativa e os primeiros adereços para contação são objetos dispostos ali mesmo: copos, chaves… tudo vira elemento de cena. Os sons começam sussurrantes, contudo a história adere ao corpo. E as caras, antes tímidas e concentradas, ganham expressões mais fortes, mais doces ou mais marcantes. Estão todos submersos em suas narrativas. Assim nascem contadores!
No ultimo dia, com as relações já estabelecidas, os alunos participaram do momento de escrita criativa. E num exercício lingüístico, todos recebem instruções básicas para construção de um enredo, porém a surpresa é que o tema é a própria vida dos alunos. Todos são convidados a narrarem suas trajetórias, num processo de autoconhecimento. Os produtos desta oficina são recheados de emoção e superação, validando mais uma vez que a arte de contar histórias é algo inerente do ser humano.
Os alunos ensaiaram suas histórias que foram apresentadas publicamente numa grande celebração e teste de fogo. No final são surpreendidos pela dramatização de Alafiá, A Princesa Guerreira, de autoria de Sinara. História que virou livro e será lançado dia 16 de junho, no Museu de Arte do Rio(MAR). Mas este não é o ultimo momento. Um importante desdobramento desta capacitação é o Grupo UJIMA, hoje formado por 70 pessoas, composto por ex-alunos, que depois de formados, participam de circuitos levando histórias negras para escola públicas do Rio de Janeiro.
Já aconteceram três circuitos homenageando os escritores Sonia Rosa, Julio Emilio Braz e agora Kiussam de Oliveira (circuito ainda em curso). As obras destes autores, de extrema representatividade, foram contadas pelo grupo UJIMA contemplando muitos alunos da rede pública do Rio de Janeiro, nas seguintes escolas: CIEP Bilingue Mestre Andre, Padre Miguel—200 crianças; Creche-Escola Dr. Alvaro Alberto, Duque de Caxias—318 crianças; Escola Municipal Professor Coqueiro—210 crianças; Escola Municipal Bélgica, Guadalupe—150 crianças; CIEP Vinicius de Moraes, Jacarezinho—130 crianças; Escola Municipal Paulo Freire, Maré—310 crianças; e o Colégio Estadual Conde Pereira Carneiro, Irajá—130 jovens.
Em tempos de desastrosos retrocessos na educação, trabalhos como o de Sinara Rubia fortalecem nossa esperança na força da coletividade e da resiliência, algo tão inerente ao povo afro-brasileiro. Um trabalho destemido e acima de tudo, político. Levando identidade, representatividade e ancestralidade para tantas comunidades escolares.
O recado está sendo dado: Nenhum passo atrás.
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Lançamento do Livro “Alafiá, A Princesa Guerreira”
Data: 16/06/2019 – Domingo
Local: Museu de Arte do Rio – MAR
Horário: 14:00h
Endereço: Praça Mauá, 5 – Centro, Rio de Janeiro – RJ
Carla Souza é pedagoga por formação e professora de educação infantil apaixonada pela profissão. Cria da Rocinha, entende sua existência em ser negra e favelada, como um foco de luta e de resistência no mundo.
Destaque: Apresentação do Grupo Ujima na Escola Estadual Conde Pereira Carneiro, no Irajá, Rio.