Presidente pretende armar o povo contra adversários e financiar a mídia amiga. Na Venezuela, as ações são em nome da resistência
por André Barrocal, em CartaCapital
Brasil e Venezuela empataram em zero a zero pela Copa América, na terça-feira 18, em Salvador, a cidade mais negra fora da África. Jair Bolsonaro deve ter passado raiva. Ele imita Lula como presidente fã de futebol, veste camisa de times, comenta jogos. Além disso, falar mal da Venezuela é um de seus passatempos ideológicos favoritos. “Se voltar a senhora Cristina Kirchner, eu acho que nós podemos ter uma Venezuela aqui no Cone Sul”, disse sobre sua recente viagem à Argentina, uma visita destinada a ajudar Mauricio Macri na reeleição em outubro. Curioso: quem tem recorrido a métodos chavistas é ele, Bolsonaro.
E não é para defender a soberania e o petróleo nacionais, proteger-se do golpismo da oposição e dos Estados Unidos, como no caso do governo venezuelano. É para acuar imaginários inimigos internos e o Congresso, implantar a própria revolução (reacionária, não bolivariana) e entregar-se ao Tio Sam.
O ex-capitão quer as pessoas de arma na mão para que usem com fins políticos. Foi o que disse em um evento do Exército na cidade gaúcha de Santa Maria, dia 15. De maneira um tanto quanto sinuosa, é verdade. E disfarçada de ação defensiva, quando o que pretende é encurralar adversários e congressistas. “Defendo o armamento individual para o nosso povo, para que tentações não passem na cabeça de governantes para assumir o poder de forma absoluta”, disse. E em seguida: “Precisamos, mais do que (d)o Parlamento, (d)o povo ao nosso lado, para que possamos impor uma política que (se) reflita em paz e alegria para todos”. Dois dias depois, seu filho Eduardo, deputado, pregava na Câmara armar as pessoas para que “se, de repente, voltar um regime como o de Lula, que junto com os mensaleiros aprovou o desarmamento, não fiquemos sob os desmandos de um governo autoritário, como aconteceu com a Venezuela, onde desde 2012 é proibida a comercialização de armas, e lá se vive numa ditadura”.
O que o clã chama de “ditadura”, prega igualmente a população de arma em punho. Ao menos a porção chavista da população. Morto em 2013, Hugo Chávez, de origem militar como Bolsonaro, disse em 2007, em um ato público com as Forças Armadas: “Essa revolução é pacífica, mas não é desarmada. Esta é uma revolução armada”. Ao contrário de Bolsonaro, tinha razões para temer inimigos dentro e fora. Com quatro anos no governo, sofreu em 2002 um golpe que uniu empresários (o presidente da Fiesp local, Pedro Carmona, foi posto no poder em seu lugar), donos de tevê e os EUA. Dois dias depois, contra-atacou e retomou a faixa. Não deixou mais de acreditar que, sem armas, estaria vulnerável a golpes internos e americanos.
Dá-se o mesmo com seu sucessor. Em fevereiro, às vésperas da arapuca da “ajuda humanitária” planejada em Washington, Nicolás Maduro disse ao jornal mexicano La Jornada que os venezuelanos armados fariam do país um Vietnã, se Donald Trump mandasse tropas. As chamadas milícias bolivarianas, afirmou, “têm acesso, e cada vez vão ter mais acesso, ao sistema de armas nacionais”. Eram 1,6 milhão de pessoas naquele momento e, em abril, ele anunciou que vão chegar a 3 milhões, 10% da população. São 2 milhões os caminhoneiros brasileiros, 1% da população, e Bolsonaro quer armar todos. Teria uma espécie de milícia sobre rodas, já que a categoria é acentuadamente bolsonarista. Em 31 de maio, o ex-capitão parou em um restaurante de beira de estrada na volta de Goiás para Brasília e almoçou com uns 30 motoristas. Comentário dele: “Eu coloquei lá (no decreto do porte de armas)como profissão de risco (caminhoneiros). Quanto mais arma, mais segurança. Se tiver arma de fogo, é para usar”.
Após o discurso armamentista de Bolsonaro em Santa Maria, a gaúcha Manuela D’Ávila, candidata a vice com Fernando Haddad em 2018, afirmou que o ex-capitão cometeu crime de responsabilidade. A lei do impeachment, a 1.079, de 1950, diz que presidentes incorrem nesse crime se atentarem contra a segurança interna e que atentar é “praticar ou concorrer para que se perpetre qualquer dos crimes contra a segurança interna”. Incentivar o uso de arma por razões políticas seria ameaça à segurança interna. Bolsonaro teria violado ainda a lei da segurança nacional, a 7.170, baixada em 1980 pela ditadura. “Fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social” e “incitar à subversão da ordem política ou social” são puníveis com prisão de 1 a 4 anos. “O Brasil vive um momento tenso e delicado, um momento que pede que o presidente pregue união e diálogo. Bolsonaro, no entanto, insiste em dividir a população e estimular o conflito, defendendo que os cidadãos se armem contra os governantes”, diz o líder da oposição na Câmara, o carioca Alessandro Molon, do PSB.
Antes de decolar para Santa Maria, Bolsonaro incentivou seus apoiadores, pelo Twitter, a pressionar os senadores para estes não derrubarem os decretos presidenciais sobre posse e porte de armas na votação dali a três dias. A maranhense Eliziane Gama, do ex-PPS, foi uma das vítimas das milícias digitais bolsonaristas. Foi xingada e ameaçada de morte. “Saia na rua sem seus seguranças”, dizia uma das mensagens. Em outra, leu que sua casa seria arrombada e seus familiares levariam bala na testa. Eliziane e alguns colegas fizeram BO na polícia legislativa e cobram uma investigação que descubra os autores das ameaças. “O País vive um momento preocupante, em que começa a se cristalizar uma cultura de ódio”, disse a senadora na sessão que derrubou os dois decretos armamentistas. Bolsonaro e suas milícias digitais foram derrotados, na terça-feira 17, por 47 votos a 28. Agora quem vota são os deputados, e entre esses o espírito antiarmas é majoritário.
A derrubada dos decretos foi proposta pelo líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues, da Rede do Amapá. Em 27 de maio, Rodrigues afirmou no plenário: “A aventura que busca o presidente é de uma espécie de governo plebiscitário, que opõe o povo e suas instituições, que tenta forçar a mão em relação a isso. Ontem foi um ponto culminante disso. É uma espécie de chavismo de direita”. Na véspera ocorreram manifestações em 156 cidades por parte dos apoiadores ultrarradicais do ex-capitão. Marchas de simpatizantes é uma marca do governo no poder há 20 anos na Venezuela. No chavismo, prevalece a ideia de que, se a oposição quiser ganhar, terá de botar mais gente na rua. Uma oposição descrita como “fascista, neonazista, entreguista, vendilhona da pátria” pelo ex-presidenciável Ciro Gomes em maio de 2018, em entrevista ao Roda Viva.
Em 30 de junho haverá novas manifestações governistas, convocadas em defesa de Sérgio Moro, no inverno devido às revelações do site Intercept, e da Operação Lava Jato. Por trás, o MBL e o Vem Pra Rua. A dupla de movimentos direitistas havia ficado envergonhada das marchas de maio, cujos preparativos pregavam fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Bolsonaro até havia tentado manter distância do extremismo: “Essa pauta está mais para Maduro”. Cinismo. Ele adorou a pressão sobre juízes e parlamentares. Como foi teatro ter declarado que eram atos “espontâneos”. Errado. Foram articulados pelo bolsonarismo. “É próprio dos autoritários governar por cima das instituições. O Bolsonaro é isso: o líder carismático e seus seguidores contra as instituições”, afirma o advogado e deputado estreante Luiz Flávio Gomes, do PSB paulista. É por isso, diz, que o presidente abusa dos decretos e inventa leis com eles.
O ex-capitão não cansa de investir contra o Congresso e a “velha política”. Na Venezuela, não: lá a Assembleia Nacional é boa. Para Bolsonaro, Maduro, reeleito em 2018 numa eleição cercada de desconfianças, é presidente ilegítimo, o poder legítimo seria do Parlamento e seu chefe, o deputado direitista Juan Guaidó. O brasileiro até recebeu, no início de junho, a embaixadora de Guaidó para Brasília, Maria Teresa Belandria, apesar de a ala militar do governo ter sido contra. Desde que se autodeclarou presidente, em janeiro, Guaidó teve bens e contas congelados, foi proibido de sair do país, sua imunidade parlamentar foi cassada e tomou processo por conspiração. Ações pedidas pelo procurador-chefe do Ministério Público Federal, o chavista Tarek William Saab, e autorizadas pelo STF de lá, o Tribunal Supremo de Justiça. Para o presidente da corte, Maikel Moreno, Maduro “é vítima de um ataque furtivo e implacável do império (americano)”. Aqui, súditos do “império” não precisam mais de visto para entrar, mimo de Bolsonaro a Trump válido desde a segunda-feira 17.
O controle do Supremo pelo governo é apontado como um problema na Venezuela pelo relator especial da ONU para a independência do Judiciário, o peruano Diego Garcia-Sayán, de 68 anos. É um dos traços ditatoriais do país, segundo o bolsonarismo. O presidente brasileiro sonha com um STF submisso. Na campanha, disse que queria ampliar para 21 o número de juízes da corte. Botar mais dez seria uma forma de controlar o tribunal. Sua aliada Bia Kicis, deputada do PSL de Brasília, propôs mudar a Constituição para os juízes do STF voltarem a se aposentar com 70 anos. Bolsonaro poderia indicar quatro e não dois para o Supremo em seu governo. Em um café da manhã com jornalistas dia 14, reiterou o desejo de nomear um evangélico. E explicou seus motivos, ao comentar o julgamento que criminalizou a homofobia. Com um crente na corte, “o cara pede vista do processo e senta em cima dele”. Ou seja, quer controlar decisões com só um juiz.
O sentimento anti-STF é forte entre os bolsonaristas. “Eles realmente têm mais ódio do Supremo do que o pessoal da Lava Jato tem”, diz um subprocurador-geral, a propósito do que observa no Ministério Público Federal. Mais da metade dos brasileiros que se autodefinem como “de direita” acha que o presidente pode dissolver a Corte, 52%. Coloração política à parte, a imagem do tribunal vai mal em geral, 38% da população acredita que cabe fechá-lo. Os dois números são de uma pesquisa feita entre janeiro e março pelo Ibope, a pedido da universidade americana Vanderbilt, para um estudo em parceria com a FGV. O levantamento Barômetro Brasil mostrou o avanço do direitismo com Bolsonaro. Há 39% de brasileiros que se autodefinem como “de direita”. De 2006 a 2017, variaram de 26% a 29%. A vitória do ex-capitão nas urnas parece ter deixado esse pessoal menos indócil. Em 2017, 78% da população dizia-se insatisfeita com a democracia. Agora, 58%.
A Venezuela, que o clã Bolsonaro chama de ditadura, é campeã de apreço à democracia na América Latina. Constatação de uma pesquisa feita em 18 países e divulgada em novembro de 2018, a Latinobarômetro. Entre os venezuelanos, 75% acham democracia preferível a uma ditadura. Quem vinha em segundo lugar estava longe, a Costa Rica, com 63%. O Brasil pertencia ao pelotão de trás, 34%, empatado com Honduras e à frente apenas de Guatemala e El Salvador, ambos com 28%. A média regional era de 48%. Nessa pesquisa, Maduro tinha 24% de aprovação, apesar de a economia local viver uma tragédia. Michel Temer, o “redentor” do Brasil pós-PT, deixou o cargo com 7%. “Nós temos de fazer uma autocrítica: falta comida e papel higiênico na Venezuela, mas o governo não cai, pois politizou o povo e ainda tem apoio popular”, teoriza um petista graúdo.
O que as manifestações de rua dos bolsonaristas e as pesquisas Barômetro Brasil e Latinobarômetro mostram é que o presidente é a expressão de um atraso arraigado. “Nós não estamos falando de uma onda de extrema-direita no mundo que passou pelo Brasil. Isso dá a impressão de que o Bolsonaro é moderno ou está na moda. Não, o Bolsonaro não está na moda no mundo. A extrema-direita repudia o Bolsonaro”, afirmou o petista Fernando Haddad em maio, no Salão do Livro Político. “O Bolsonaro é a reposição desse enorme atraso estrutural que este País tem. É a reposição do que nós temos de pior e que não foi superado (…), ele sai das entranhas da nossa história de opressão, de humilhação. É a representação viva desse passado que nós estávamos tentando superar.”
É a mesma visão apresentada pela historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz em seu livro recém-lançado, Sobre o Autoritarismo Brasileiro. O povo daqui, segundo ela, sempre foi linha-dura. A imagem de “homem cordial” no sentido positivo teria sido uma má interpretação da obra do historiador Sérgio Buarque de Holanda, que cunhou a expressão, diz a antropóloga, para criticar o brasileiro, não para afagar. Para a autora, o impeachment de Dilma Rousseff começou a trazer à tona a face real do brasileiro e a máscara caiu de vez com a eleição de Bolsonaro. A cordialidade, escreve Lilia, “foi sempre uma performance política e cultural, e não um retrato fiel da ausência de atritos e ambiguidades entre os brasileiros”. Mais: “A sociedade deste país de longa convivência com a escravidão e com grandes domínios rurais privados preservaria, mesmo na contemporaneidade, uma espécie de ritual nacional de oposição às distâncias sociais, de gênero, de religião, de raça, quando na prática e no cotidiano as reitera”.
No café com jornalistas na sexta-feira 14, Bolsonaro disse que quer ter “o direito de contar piada de cearense cabeçudo”. Foi uma semana em que exerceu o autoritarismo ideológico como nunca desde a posse. No fim do desjejum, anunciou a demissão do general Juarez Aparecido de Paula Cunha do comando dos Correios, sem substituto até a conclusão desta reportagem, na quarta-feira 19. O general, que no passado prendeu Bolsonaro devido ao plano do ex-capitão de explodir bombas no Rio para ter aumento salarial, perdeu o emprego por ser contra vender a estatal e portar-se como “sindicalista”. Os planos privatizadores dos Correios são tocados por um assessor especial do Ministério da Economia, Fábio Almeida Abrahão, sócio de uma empresa de logística, a Infra Partners. Cheiro de promiscuidade.
No café, Bolsonaro reclamou do BNDES e, um dia depois, dizia que Joaquim Levy, presidente do banco, estava com a “cabeça a prêmio”. Motivo: havia nomeado como diretor um ex-colaborador do PT, Marcos Barbosa Pinto. “Falei para ele (Levy): ‘Demite esse cara na segunda ou eu demito você sem passar pelo Paulo Guedes (ministro da Economia)’.” As cartas de demissão de Levy e Barbosa chegaram horas depois. Segundo a associação dos funcionários do BNDES, Levy não queria fazer “caça às bruxas” nem via uma “caixa-preta” a ser aberta, desejos do clã Bolsonaro. Na quarta-feira 19, os funcionários fizeram uma manifestação no Rio, sede do banco, contra perseguições. Presente, o Chicago Boy Paulo Rabello de Castro, ex-presidente da instituição, diz que não há “caixa-preta”, só “caixa de Pandora de maluquice”. Para o lugar de Levy foi escolhido um ex-vizinho de prédio da família Bolsonaro, Gustavo Montezano. Um condenado em duas instâncias a pagar multa por arrombar o portão de seu condomínio para festejar o aniversário iniciado na rua, segundo a Folha.
Na véspera do café da manhã, Bolsonaro havia mandado embora um general do Palácio do Planalto, Carlos Alberto dos Santos Cruz, agora ex-ministro da Secretaria de Governo. Apesar de amigo do presidente, Santos Cruz perdeu a batalha contra o chefe da propaganda do Planalto, Fábio Wajngarten. Este em tese era seu subordinado, mas pela amizade com a família Bolsonaro, age por conta própria. Wajngarten planeja usar a verba de publicidade da Secom para financiar mídia simpática ao governo. Ele acha, até, como disse no Senado em 28 de maio, ser preciso tirar verba da Globo, que hoje recebe mais do que sua audiência televisiva justifica, para democratizar a mídia. É outra semelhança com o chavismo, que na Venezuela patrocinou, com verba oficial, a criação de uma rede jornalística de apoiadores, chamada de “sistema nacional de meios públicos”.
O substituto de Santos Cruz será outro general, Luiz Eduardo Ramos, chefe do Comando Militar do Sudeste. É bolsonarista, colega de curso militar do presidente, mas um pouco mais maleável. Em março, fez uma reunião com uns 30 deputados sobre a Previdência das Forças Armadas. Entre seus convidados, havia um deputado do PT, Arlindo Chinaglia, e outro do PSOL, Ivan Valente, ambos paulistas. “Teve gente que arregalou os olhos quando nos viu”, conta Valente, atual líder de sua bancada. Será que Ramos ficará mal com o chefe tendo tais amizades? “O general se arriscou ao botar na internet foto do nosso encontro”, brinca Valente.
Quem não está para brincadeira é o chavista Jair Bolsonaro.