Rio Grande do Sul: a nova fronteira mineral para as empresas transnacionais. Entrevista especial com Caio Santos

Por: João Vitor Santos, em IHU On-Line

Ao concentrar 90% das reservas de carvão mineral do Brasil, o Rio Grande do Sul, principalmente a Metade Sul do Estado, “torna-se uma nova fronteira mineral para as empresas transnacionais”, diz Caio Santos, pesquisador do Observatório dos Conflitos Urbanos e Socioambientais do Extremo Sul do Brasil, vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

Segundo ele, a possibilidade de explorar as reservas gaúchas explica o número significativo de projetos de mineração em tramitação no Estado. “Hoje vemos uma exaltação da mineração no Estado do Rio Grande do Sul, que é acompanhada de um discurso de redenção e salvação. Na Metade Sul, esse discurso é recorrente ao longo da sua história: o último grande exemplo é o polo naval de Rio Grande e São José do Norte. Esse discurso é ampliado com a criação da ideia de que essa região é pobre — o que não é verdade — e de que o Estado tem dificuldades financeiras. Mas não se discute o real motivo das dificuldades financeiras do Estado. Que tal abrir o caixa e mostrar as isenções fiscais dadas a todas as empresas? Que tal discutirmos a isenção aos agrotóxicos? Quais os efeitos da Lei Kandir na situação fiscal do Rio Grande do Sul? É mais fácil investir em novos/velhos projetos com a ideia de um retorno fiscal imediato, mesmo que a vida útil desses projetos seja curta e o retorno financeiro possa não se concretizar em sua totalidade”, menciona.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Santos explica os impactos sociais e ambientais da liberação de terras para a mineração e comenta o projeto da Mina Guaíba, que visa produzir 166 milhões de toneladas de carvão mineral numa área de quatro mil hectares entre os municípios de Eldorado do Sul e Charqueadas. “No caso da Mina Guaíba, não tem sido falado sobre o território. Quem vive naquele território? Quem serão os atingidos pelo projeto? Fala-se muito em números de empregos diretos e retornos através de tributos, mas esquece-se de retratar o território. Quando olhamos de forma atenta para o território, percebemos que se produz alimento, que se produz alimento sem agrotóxicos e tantas outras atividades. Que no território existem assentamentos rurais”, pontua. E acrescenta: “O principal conflito socioambiental que a mineração tem causado na Metade Sul é referente às possíveis perdas dos territórios (nos diferentes projetos) por parte de produtores rurais e populações tradicionais”.

Caio Santos é graduado em Oceanografia pela Universidade do Vale do Itajaí – Univali e doutor em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG. É pesquisador do Observatório dos Conflitos Urbanos e Socioambientais do Extremo Sul do Brasil.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O Rio Grande do Sul vem reeditando um discurso de investimento no setor de mineração — há pelo menos 166 projetos em fase de implantação no Estado, a maioria na Metade Sul. Gostaria que recuperasse o histórico das experiências de mineração no solo gaúcho e analisasse como essas propostas de investimento da atualidade tem se configurado.

Caio Santos – O Estado do Rio Grande do Sul tem aproximadamente 90% da reserva de carvão mineral do Brasil. O carvão mineral foi encontrado pela primeira vez no Rio Grande do Sul em 1792 (final do século XVIII) no município de Butiá, que até os dias atuais minera carvão mineral. No ano de 1853 foram descobertas jazidas de carvão mineral em Arroio dos Ratos, em 1855 foram realizados testes para verificar a qualidade e, entre os anos de 1857 e 1858, se iniciou a exploração desse mineral com recursos do governo da Província. Já nessa época se verifica a entrada de recursos e investidores estrangeiros, como é o caso do contrato firmado entre James Johnson (inglês) e a Marinha do Brasil para o fornecimento de 60 toneladas de carvão das minas de Arroio dos Ratos para a sua frota. Também se tem relatos de empresas alemãs. Em outros municípios também há exploração, como em CharqueadasMina do Leão e Candiota. Nesse processo é criada em 1969 a Companhia Rio-Grandense de Mineração – CRM, que é uma empresa estatal que hoje explora a mina de Candiota. Esses dados estão disponíveis em uma publicação de Heinrich Bunse.

Grande parte do carvão mineral produzido no Rio Grande do Sul está associada à construção de plantas de Usinas Termoelétricas para a geração de energia elétrica. Isso faz com que o Estado tenha, ao longo da sua história, uma série de Usinas Termoelétricas associadas às suas. Muito pouco se discute sobre os seus impactos socioambientais ao longo da história, os positivos e os negativos. Também há exploração de cobre em Minas do Camaquã (Caçapava do Sul) pela Companhia Brasileira de Cobre – CBC. Há exploração de pedras preciosas na região de Ametista do Sul e Planalto.

Mas o que chama atenção é a quantidade de pedidos de pesquisa mineral e o número de projetos a serem implantados; trata-se de uma nova fronteira de exploração. O que vemos hoje é um recorrente discurso, por parte da mídia e de políticos, da mineração como a salvação do Estado do Rio Grande do Sul. Esse discurso traz a narrativa sustentada pelas empresas e políticos que se beneficiam. Fazem com que territórios que produzem alimentos, por exemplo, tenham, como sua vocação, a mineração.

Esses dias escutei de uma moradora de São José do Norte, após uma reportagem em um jornal de circulação estadual que exaltava a mineração, a seguinte pergunta: “Para salvar o Estado, nós vamos ser sacrificados!?”. É isso que essas empresas e governantes estão propondo, se utilizando, para tanto, de um discurso “para todos”, “desenvolvimento sustentável”, “emprego e renda” e outros. Mas as perguntas que precisam ser feitas são: mineração para quê e para quem? Afinal, o mesmo ferro que constrói um tanque de guerra, constrói o arado para a agricultura! Precisamos definir prioridades e projetos, mas para isso é imprescindível a participação popular. Essa não pode ser uma decisão tomada pelas empresas. A decisão de minerar (como, quanto, para quê e para quem) precisa ser coletiva; ela não pode ser individual e tomada dentro de um escritório ou gabinete.

Hoje vemos uma exaltação da mineração no Estado do Rio Grande do Sul, que é acompanhada de um discurso de redenção e salvação. Na Metade Sul, esse discurso é recorrente ao longo da sua história: o último grande exemplo é o polo naval de Rio Grande e São José do Norte. Esse discurso é ampliado com a criação da ideia de que essa região é pobre — o que não é verdade — e de que o Estado tem dificuldades financeiras. Mas não se discute o real motivo das dificuldades financeiras do Estado. Que tal abrir o caixa e mostrar as isenções fiscais dadas a todas as empresas? Que tal discutirmos a isenção aos agrotóxicos? Quais os efeitos da Lei Kandir na situação fiscal do Rio Grande do Sul? É mais fácil investir em novos/velhos projetos com a ideia de um retorno fiscal imediato, mesmo que a vida útil desses projetos seja curta e o retorno financeiro possa não se concretizar em sua totalidade. Esses projetos precisam ser discutidos exaustivamente pela sociedade e, principalmente, pelas populações que vão ser impactadas de forma negativa por eles.

IHU On-Line – Como compreender a questão de fundo envolvida no “marketing” feito pelas empresas de mineração, que prometem geração de emprego e o retorno em tributos?

Caio Santos – As empresas mineradoras, para se instalar, procuram convencer a sociedade dos seus benefícios. E para isso se seguram no discurso da geração de emprego, renda e retorno em tributos. Essa estratégia é observada em todos os grandes projetos de desenvolvimento no Brasil (hidrelétricas, petróleo e gás, portos e outras).

Essa estratégia discursiva tem como objetivo central conseguir o apoio da população para a instalação dos referidos projetos. Trata-se da tentativa de se obter o que se chama de “licença social para operar”. A busca da obtenção dessa licença tem como objetivo evitar conflitos e futuros litígios, pois esses são vistos pelas empresas como prejuízos e perdas (monetário, de imagem e outros). Mas entendemos que os conflitos evidenciam o anseio e o desejo da sociedade para que haja uma melhor discussão sobre os projetos e a possibilidade de decidir, efetivamente, sobre a sua instalação.

Por isso, muitas empresas acabam também realizando investimentos em projetos sociais nos municípios em que querem se instalar. Essa ação busca criar uma relação anterior ao processo de licenciamento ambiental, uma relação de cumplicidade entre empresa e moradores, inserindo a atividade de mineração no cotidiano dessas cidades antes do início de suas atividades, com uma imagem positiva. Cria-se uma ideia da empresa mineradora como parceira. Isso é feito ao atender demandas sociais que são de responsabilidade dos poderes executivos (em diferentes esferas), por exemplo.

O que os resultados das pesquisas mostram em muitos projetos é que os empregos diretos e, principalmente, os indiretos não são concretizados. Do mesmo modo, os empregos com os maiores salários acabam vindo de fora das cidades mineradas e, normalmente, aqueles que recebem esses salários acabam residindo em centros maiores. É o caso da pesquisa realizada por Bruno Milanez para a cidade de Congonhas, em Minas Gerais. Esse fato também foi observado em São José do Norte durante a operação do Estaleiro EBR. Situações como essa podem ser prospectadas para os processos de mineração em fase de licenciamento ambiental para o Estado do Rio Grande do Sul.

As empresas de mineração dizem quantos empregos pretendem gerar, mesmo que isso não se concretize, mas em nenhum momento trazem dados de quantas pessoas podem ser desempregadas com a atividade. Quantos agricultores podem ter sua atividade inviabilizada pela mineração? Quantos pescadores? Esses dados são importantes para basilar a discussão, pois mostram um cenário de outras possibilidades e alternativas econômicas que já estão presentes nos municípios, mas que são muitas vezes esquecidas.

Quanto aos tributos gerados pela mineração, o mais direto é a Compensação Financeira pela Exploração Mineral – CFEMprevista na Constituição de 1988. Ou seja, trata-se de uma compensação prevista exatamente para minorar os possíveis impactos negativos causados pela atividade da mineração. O valor arrecadado com a CFEM não representará, necessariamente, um grande aporte de valores aos cofres do município em virtude do cálculo para o seu pagamento, o qual foi modificado em 2017 via decreto. Porém, os custos em virtude de pressões sobre os serviços públicos tendem a aumentar. O Instituto de Justiça Fiscal tem realizado um amplo debate sobre a temática com pesquisas sobre o assunto.

Por isso, também é comum verificar por parte das empresas o desenvolvimento de projetos para a boa governança e aplicação das receitas geradas pela mineração para o município (a CFEM e outras). Na verdade, trata-se de uma estratégia de antecipação, caso os cenários propagandeados sobre a arrecadação de tributos não se concretizem, ou seja, o culpado é o gestor público por não saber gerir tais recursos. Esse fator pode ser observado no Estudo de Impacto Ambiental da Fase 1 (chamada de Retiro) do Projeto Atlântico Sul para o município de São José do Norte.

Outra estratégia que observamos é a empresa proponente dos projetos de mineração levar os políticos para visitar suas áreas de exploração. Isso ocorreu recentemente com os deputados gaúchos, que visitaram a mina da Copelmi. Existiu uma tentativa de levar os vereadores e a prefeita de São José do Norte para Mataraca/PB, o que não ocorreu em virtude da mobilização popular. Nessas visitas, o que é mostrado? Como é anunciado o empreendimento? Trata-se de uma visita monitorada e guiada pela empresa, portanto, atende aos seus objetivos.

IHU On-Line – No caso específico da Mina Guaíba, que está em processo de licenciamento, situada na região metropolitana de Porto Alegre, o que não tem sido dito e é deixado em segundo plano quando se trata dos investimentos e retornos para a região?

Caio Santos – No caso da Mina Guaíba, não tem sido falado sobre o território. Quem vive naquele território? Quem serão os atingidos pelo projeto? Fala-se muito em números de empregos diretos e retornos através de tributos, mas esquece-se de retratar o território. Quando olhamos de forma atenta para o território, percebemos que se produz alimento, que se produz alimento sem agrotóxicos e tantas outras atividades. Que no território existem assentamentos rurais.

O que quero dizer com isso é que se esqueceram das pessoas. Muito se fala dos possíveis benefícios que o projeto trará, mas esquece-se de quem será impactado negativamente. Estamos falando de uma mina de carvão a céu aberto. Vale estudar a região carbonífera do sul catarinense e todos os seus impactos negativos, como, por exemplo, a poluição das águas por drenagem ácida. Também estudar quais os outros impactos ambientais e sociais negativos das outras minas da Copelmi. Elas foram fiscalizadas e autuadas?

Vale questionar: por qual motivo os países da Europa estão fechando as suas minas de carvão? Seria por falta de tecnologia? Quando começamos a estudar, verificamos que determinados impactos ambientais negativos são inerentes a esses processos de mineração. Não existem tecnologias possíveis para eliminá-los.

Notem que existe uma política de incentivo à exploração do carvão através da instituição do Polo Carboquímico do Rio Grande do Sul(lei 15.047/2017). Existem dois complexos: o do Baixo Jacuí e o da Campanha. No complexo do Baixo Jacuí está prevista a Mina Guaíba. Ou seja, estamos falando de política pública que visa incentivar esse tipo de produção, mesmo com todos os seus impactos socioambientais negativos. O Governo do Estado apoia e fomenta a extração de carvão mineral, mas para isso se reveste de um discurso de polo carboquímico. Não é pelo fato de que o Estado tem 90% das reservas de carvão mineral, que precisa, obrigatoriamente, explorá-las. Nos causa estranheza essa obrigatoriedade da mineração pela existência do recurso.

IHU On-Line – Quais são os outros principais projetos de mineração que estão em discussão no Rio Grande do Sul atualmente? E quais os impactos desses empreendimentos?

Caio Santos – Para facilitar a compreensão, decidi dividir os projetos e apresentar os seus impactos negativos. Acredito que assim fique mais fácil entender os principais impactos socioambientais negativos desses empreendimentos. Apenas citamos e detalhamos brevemente, pois não é o objetivo discorrer sobre todos de forma esmiuçada.

Projeto Caçapava do Sul – Localizado em município de mesmo nome, prevê a extração de cobrechumbozinco e outros. Os principais impactos negativos desse projeto são na saúde, nos recursos hídricos/água e na área econômica. Saúde, pois estamos falando da extração de chumbo que é extremamente danosa à saúde humana, como apontam estudos da Organização Mundial de Saúde – OMS. Nos recursos hídricos, pois pode gerar a contaminação do Rio Camaquã por esses metais, comprometendo fauna e uma série de atividades humanas. Econômica, pois afetará a produção agrícola, pecuária e ovinocultura. Note que o impacto na água — recursos hídricos — pode gerar e aumentar os demais impactos negativos. No projeto de Caçapava do Sul cabe destacar que o minério deverá ser escoado pelo Porto do Rio Grande, o que torna necessário o debate nesse município devido aos impactos negativos a serem causados. O projeto é da empresa Nexa Resources (Antiga Votorantin).

Projeto de Fosfato Três Estradas – Prevê a exploração de fosfato no município de Lavras do Sul, na localidade de Três Estradas. Os principais impactos negativos são sobre os recursos hídricos e sobre a atividade de pecuária. Nesse projeto existe uma preocupação por estarem previstas barragens e todos os riscos associados (projeto da empresa Águia Fertilizantes).

Projeto Atlântico Sul (Fase 1 – Projeto Retiro, Fase 2 – Projeto Capão do Meio e Fase 3 – Projeto Bojuru) – O projeto tem a Licença Ambiental de Operação para a sua fase 1 e prevê a exploração de IlmenitaRutilo e Zirconita. É o processo em estágio mais avançado de licenciamento ambiental, único realizado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama em Brasília. Os principais impactos ambientais negativos desse projeto são sobre a agricultura, pesca e recursos hídricos. Aqui cabe destacar que São José do Norte é o município com o maior número de pescadores artesanais do estuário da Lagoa dos Patos, sendo uma atividade tradicional e importante para a economia do município. Todo município é abastecido por água subterrânea, e as comunidades do interior, para onde está prevista a área de lavra (nas três fases), são abastecidas através de poços artesianos.

Ampliação da Mineração em Candiota – Existe uma ampliação da mineração de carvão mineral no município de Candiota, que se localiza no complexo carboquímico da campanha. Uma nova planta termoelétrica está sendo finalizada. Existem impactos negativos na saúde e sobre os recursos hídricos.

De forma simples e direta, esses são alguns dos principais impactos socioambientais negativos. Eles podem ser melhor detalhados em outra oportunidade, mas observem que a produção rural e os recursos hídricos são predominantes quando pensamos nos impactos socioambientais negativos. São impactos que colocam em risco os modos de vida dessas populações e desses territórios.

IHU On-Line – Quais os maiores conflitos que a mineração tem causado no RS, especialmente na Metade Sul?

Caio Santos – O principal conflito socioambiental que a mineração tem causado na Metade Sul é referente às possíveis perdas dos territórios (nos diferentes projetos) por parte de produtores rurais e populações tradicionais. Não se trata de uma atividade econômica que afeta apenas a área a ser minerada; seus efeitos e impactos negativos são observados no Brasil e na América Latina, para além das áreas diretamente e indiretamente afetadas, indicadas nos Estudos de Impacto Ambiental – EIA.

O processo de expansão da mineração no Estado do Rio Grande do Sul tem gerado um imenso debate acerca dos impactos socioambientais negativos sobre as atividades rurais (agricultura, agropecuária, ovinocultura e outras) e sobre as populações tradicionais(pescadores, quilombolas, indígenas e outros). Em todos os casos, o território e sua vocação estão em discussão. Territórios historicamente agrícolas, agropecuários, pesqueiros e outros se encontram ameaçados por uma atividade exógena.

Existe uma perda dos valores (comércio e troca) dos produtos de áreas próximas e no entorno de áreas mineradas. Isso acaba causando um efeito colateral, fazendo com que esses municípios se tornem cada vez mais dependentes da atividade da mineração, uma vez que se torna, muitas vezes, insustentável a vida na área rural em virtude dos valores de comercialização ou troca da sua produção.

Nesse contexto, têm se intensificado os debates acerca dos impactos negativos sobre a água, uma vez que se trata de um bem comum essencial para a vida humana e desenvolvimento das atividades econômicas nesses territórios. O município de São José do Norte é todo abastecido por água subterrânea, e grande parte dele sem qualquer tratamento por parte da empresa concessionária e responsável por esse serviço. Então, não se trata apenas de uma discussão sobre parâmetros físico-químicos do recurso, mas também de uma construção social sobre a qualidade do mesmo, uma vez que dele depende a vida nesse território. E assim também é para os outros municípios que dependem da água para a produção rural.

IHU On-Line – Os recentes desastres ambientais envolvendo mineradoras em Minas Gerais têm levado companhias a destacar que suas atividades têm baixo impacto ambiental. No caso das companhias que atuam ou querem atuar em solo gaúcho, como esse discurso aparece? E quais devem, de fato, ser os impactos desses empreendimentos no meio ambiente?

Caio Santos – As companhias mineradoras possuem como estratégia discursiva sempre tentar minimizar ao máximo os impactos ambientais negativos de suas atividades. Não existe companhia que abertamente fale que sua atividade causa um grande impacto ambiental negativo.

Dentro dessa estratégia discursiva sempre existe também a ideia da tecnologia como solução para todos os impactos negativos oriundos da atividade produtiva. Ou seja, o uso da chamada “melhor tecnologia” se torna uma justificativa para a implementação desses empreendimentos. Mas mesmo usando a melhor tecnologia (que em grande parte não se verifica), os impactos ambientais negativos são inevitáveis, uma vez que estamos falando de uma atividade extrativista de um bem natural não renovável.

Se fosse elencar um impacto negativo desses empreendimentos sobre o meio ambiente, destacaria a água. Já falei um pouco anteriormente sobre a relação das populações desses territórios com esse recurso natural (exemplo dos pescadores de São José do Norte e da Lagoa dos Patos). Todos os projetos em licenciamento ambiental possuem potencial poluidor sobre os recursos hídricos, mesmo que discursivamente atestem o contrário. E notem que todas as populações mobilizadas contra esses empreendimentos dependem diretamente desse recurso para suas atividades e elencam essa preocupação em suas lutas.

As pesquisas sobre mineração no Brasil e na América Latina discutem profundamente os impactos negativos da mineração sobre a água. Temos os casos de Barcarena e JurutiPA, Brumadinho e Mariana, MG, e a região carbonífera do sul catarinense, entre outros.

IHU On-Line – A partir do caso da Mina Guaíba, como podemos compreender o que está em jogo nesse interesse internacional nas reservas minerais brasileiras?

Caio Santos – Acho que o interesse internacional é o que sempre esteve em jogo nas reservas minerais brasileiras. Desde os colonizadores portugueses, vemos interesses externos predominarem sobre os recursos minerais brasileiros, uma veia aberta, como retrata Eduardo Galeano para América Latina. Vemos grandes conglomerados transnacionais olharem para o Brasil como uma grande e lucrativa oportunidade de negócios para manterem os lucros dos seus acionistas. E nesse cenário, o Rio Grande do Sul torna-se uma nova fronteira a ser explorada por essas transnacionais. Essas empresas querem e precisam manter o lucro para os seus acionistas e enxergam no Brasil uma grande possibilidade em virtude das nossas debilidades institucionais, em que temos uma facilidade para a instalação desse capital sem um controle efetivo por parte dos poderes públicos.

IHU On-Line – De que forma as populações dessas regiões atingidas pelos empreendimentos têm se mobilizado para resistir ao avanço da mineração? Quais os maiores desafios e limites desses grupos?

Caio Santos – As populações têm se organizado através de movimentos contra a mineração. Cada movimento tem uma dinâmica própria de organização, mobilização e de luta. Esses movimentos têm conseguido pautar o debate sobre a mineração mesmo sem o apoio da grande mídia. Eles têm criado estratégias próprias de comunicação com a sociedade, como o exemplo do documentário Viventes, sobre o processo de luta contra a mineração em Caçapava do Sul.

Os desafios são os inerentes a qualquer processo de resistência: ampliar as lutas. Essa ampliação passa, por exemplo, pela construção de agendas comuns entre esses movimentos. Note que isso já vem ocorrendo ao longo dos últimos anos. Vemos em vários momentos os movimentos de Caçapava do Sul e São José do Norte juntos, discutindo mineração, trocando experiências e expressando a solidariedade entre os territórios. O mesmo ocorre com o movimento da Mina Guaíba.

Em São José do Norte, desde 2014, o movimento contra a mineração vem aumentando, fazendo com que se tenha uma esfera pública favorável às pautas do movimento. O que fez, por exemplo, com que os vereadores aprovassem a proibição de mineração de minerais metálicos no município (conforme a Resolução Consema 372/2018).

Já o movimento de Caçapava do Sul tem conseguido ampliar cada vez mais a sua luta. Tanto que a empresa tem solicitado constantemente novos prazos para entregar as respostas aos questionamentos realizados pela Fundação Estadual de Proteção Ambiental – Fepam. É bom salientar que esses questionamentos são frutos da organização desse movimento. A empresa já mudou até de nome: Votorantim paraNexa Resources, e a resistência continua.

O movimento da Mina Guaíba conseguiu em pouco tempo realizar vários debates na região da grande Porto Alegre. Fizeram vir à tona um debate que estava apagado e conseguiram com isso a realização de uma nova Audiência Pública e conseguiram também ampliar a organização de resistência. Vemos uma conexão de discussão de toda região metropolitana com grande protagonismo dos assentamentos rurais.

Precisamos entender que cada território possui uma dinâmica e uma organização própria na resistência aos empreendimentos de mineração. Estamos falando, por exemplo, de trabalhadores rurais e pescadores que possuem suas atividades laborais, às quais se soma a resistência contra esses projetos. E que cada um, da sua forma, tem conseguido pautar o debate sobre a mineração.

IHU On-Line – O Rio Grande do Sul não é considerado um estado com tradição em mineração. Como avalia a legislação vigente que trata da instalação e controle das operações dessas atividades?

Caio Santos – As legislações no Rio Grande do Sul e no Brasil são extremamente frágeis. Não existe uma segurança no que se refere à legislação mineral e ambiental. Hoje o cenário é de apreensão e incertezas. Tivemos mudanças recentes com a criação da Agência Nacional de Mineração – ANM, que ninguém sabe como vai funcionar efetivamente.

Porém, se observa um histórico, por parte das empresas mineradoras, de articulações políticas para garantir os seus interesses. Isso pode ser observado no caso do Código de Mineração relatado pelo Deputado Leonardo Quintão (MDB/MG), que na época tinha recebido doações de empresas do ramo. Hoje, ele se encontra na Equipe da Casa Civil do atual governo.

Na área ambiental, vemos um constante ataque à legislação e um desmonte programado dos órgãos ambientais responsáveis pela fiscalização e controle dessas atividades. Cabe destacar que o próprio ministro do Meio Ambiente foi condenado por improbidade administrativa por favorecer uma mineradora enquanto era secretário de Meio Ambiente do Estado de São Paulo.

Também vimos, durante o governo Sartori, as empresas de mineração participarem ativamente do debate sobre o setor (políticas públicas e legislação), espaço que não foi dado em nenhum momento para a sociedade civil e para esses movimentos.

O avanço da mineração em outros estados ocorreu por uma necessidade dessas empresas de expandir seus territórios continuamente. Certamente, o Estado do Rio Grande do Sul, principalmente a metade sul, torna-se uma nova fronteira mineral para essas empresas transnacionais. Por isso, se constata uma quantidade enorme de projetos de mineração no Estado. Mas, se estamos discutindo isso nesse momento, é em virtude da organização e da provocação realizada pelos movimentos citados anteriormente. Eles são responsáveis por trazer à luz esses projetos e essa discussão. Lembro quando fui procurado a primeira vez para analisar o Estudo de Impacto Ambiental do projeto de São José do Norte, em 2014, isso por conta das Audiências Públicas que iriam ocorrer. Ou seja, só ficamos sabendo desses casos pela organização de moradores e movimentos.

IHU On-Line – Quais os maiores desafios do Rio Grande do Sul e do Brasil no que diz respeito à regulamentação e fiscalização da atividade de mineração?

Caio Santos – Primeiramente, é preciso uma legislação mais rigorosa no que tange a essa atividade (concessão, licenciamento ambiental, regulamentação e fiscalização), contrariando o discurso do atual governo, de flexibilização total para qualquer atividade produtiva, como o exemplo de querer acabar com o licenciamento ambiental. O Estado e a sociedade precisam ter total controle sobre essas atividades. É necessário ampliar a participação popular nos processos de decisão sobre esses projetos. As populações precisam participar ativamente de todo o processo e ter a possibilidade de dizer não aos mesmos. Temos que avançar na discussão sobre Áreas Livres de Mineração, pois algumas áreas possuem particularidades históricas, sociais, culturais e ambientais que não são compatíveis com a atividade de mineração. A mineração não pode ser algo irrefutável, como também não pode ser regida pelos interesses das empresas.

É impossível que uma empresa que é multada por um crime ambiental ou de segurança do trabalho continue operando uma mina. Ou que uma barragem rompa — cometendo um crime — e a empresa continue a operar outros projetos sem qualquer sanção, que haja reincidência no crime e nada aconteça.

Apenas após o crime de Brumadinho, a Câmara dos Deputados Federais aprovou regras que tipificam o crime de ecocídio e aumentou a multa para crime ambiental para até um bilhão de reais. Mas os projetos ainda precisam da aprovação no Senado Federal. Vemos que a nossa legislação não acompanha o ritmo acelerado de expansão dos projetos de mineração e os riscos a eles associados.

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