CapsAD: Entrada Livre

Em meio às revisões das políticas de saúde mental e de drogas, Radis passou um dia em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas no Rio de Janeiro, onde a liberdade é parte da terapia

por Ana Claudia Peres, em Radis

“Ô de casa!” A porta estava aberta. Sempre está. O imóvel de muro vazado e vista para a Igreja da Penha, no Rio de Janeiro, bem pode ser definido como um local de acolhida. Mas também chamam Centro de Atenção Psicossocial ou Caps. A sigla passou a fazer parte do vocabulário dos brasileiros há pelo menos 30 anos, quando o movimento da Reforma Psiquiátrica propôs um novo olhar sobre a loucura — o que significava, entre outras iniciativas, substituir as velhas práticas em saúde mental a exemplo dos hospitais e manicômios por um modelo com diretrizes mais humanizadas e voltado para a inclusão. Radis foi conhecer de perto uma dessas unidades e a história dos sujeitos que frequentam o local.

Passava pouco das 9 horas, quando a reportagem chegou ao Caps Miriam Makeba, em Ramos. Ali, o entra e sai é contínuo. Esperamos na recepção, junto com muitos outros: a enfermeira que dava orientações por telefone, a nova psicóloga em seu primeiro dia de trabalho, a moça que vinha em busca de medicamento mas antes disso ocupou-se do cuidado com as plantas — “Ninguém dá água a essa florzinha!” —, os veteranos em tratamento, o novato. Era dia de assembleia e, logo, todos se juntariam aos demais usuários em um grande salão no segundo andar do prédio de três, como fazem quinzenalmente, para discutir com os profissionais da equipe os assuntos urgentes, as demandas e as abordagens mais adequadas para cada caso.

Naquele dia do finalzinho de abril, havia uma pauta extra: o aniversário de cinco anos do Miriam Makeba — o nome presta homenagem à cantora sul-africana, grande defensora dos direitos humanos e da luta contra o apartheid. Por ali, transitam diariamente dezenas de homens e mulheres das mais diferentes idades. São 520 pessoas cadastradas e dessas, pelo menos 120 acessam os serviços regulamente. Para acolhê-las, há uma equipe multidisciplinar formada por 43 profissionais entre médicos, psiquiatras, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais. Como se trata de um modelo de Caps III, a unidade funciona 24 horas por dia, de segunda a segunda, e atende a usuários de álcool e outras drogas (por isso, se chama Caps-AD), garantindo leitos para hospitalidade noturna de até 15 dias.

“Só dou entrevista se puder dizer meu nome e ser fotografado. Aqui não tem esse negócio de esconder o rosto, não”. Marcelo Bezerra Cavalcante estava ansioso para contar a sua história. Antes de conhecer a “maldita da cocaína”, era confeiteiro, fazia pães. Pão-tartaruga, pão-coração, que ele gostava de levar para casa para presentear a mãe e o irmão todo dia, depois do trabalho na padaria em que tinha carteira assinada e salário certo ao final do mês. “Mas a droga me levou para o buraco. Fui ao fundo do poço, ao lamaçal mesmo”, lamenta. Chegou a ser preso e, ao deixar o presídio, dormiu sob passarelas e viadutos. Às margens de rodovias. Um dia, apavorado, pensou: “Essa aqui não é minha vida. Não posso deixar acontecer isso comigo”.

Faz três anos e dois meses que ele conheceu o Caps e começou a se “encontrar de novo”. “Dei um giro na minha vida. As pessoas me acolheram com carinho, amor, atenção. Eu era um cara muito agitado, nervoso. Agora, voltei a ser tranquilo”, diz Marcelo, morador do Complexo do Alemão, favela na Zona Norte do Rio, que passou a frequentar diariamente o Miriam Makeba em busca de cuidado. Quando Radis visitou o local no final de abril, ele estava há 11 dias ocupando um dos nove leitos para hospitalidade noturna oferecidos, o que significa que contava dia e noite com a ajuda da equipe do Caps.

Acha tranquilo “viver” ali. “Além da medicação, a gente conversa, fica no computador, se alimenta”. Faz oficina de pintura, música, expressão corporal, autocuidado — essa última, essencial para uma população muito maltratada pelas ruas e que precisa de orientações sobre cuidados físicos, como informa Rodrigo Pereira, o coordenador deste Caps-AD. Entre as atividades terapêuticas ofertadas, vinha sendo planejada a “Retrato Falado” — um trocadilho com o universo policial, só que dessa vez os pacientes serão estimulados a desenhar uma imagem de si e a contar a sua trajetória. O resultado das histórias vai ocupar as paredes do local na próxima exposição.

Aos 48 anos e disfarçando o sorriso largo comprometido pelo uso da droga, Marcelo faz planos. Voltou a se relacionar com a família e comemora os documentos tirados recentemente e o cartão fidelidade recém-adquirido em uma dessas lojas de departamento. “Não desaprendi a fazer pão. Ainda levanto uma padaria sozinho”, garante. “Ergui a minha cabeça para fora das drogas. Não quero mais usar de jeito nenhum. Essa é minha vontade, minha determinação”. Dali a poucos minutos, Marcelo vai chamar para dançar a psicóloga Lídia Marins. A festa marcava o aniversário de instalação do Miriam Makeba naquele endereço — antes, o Caps funcionava nas imediações da Avenida Brasil onde fez história com projetos como o “Samba de Crack”, em que a equipe de profissionais levava instrumentos musicais até um local de uso, popularmente conhecido como “Cracolândia”, e abria o microfone a quem quisesse participar.

Política de acesso

Um dia no Miriam Makeba lembra em nada as cenas de horror vistas em filmes como “Bicho de Sete Cabeças”, que conta a biografia de um jovem internado em um hospital psiquiátrico após seu pai descobrir um cigarro de maconha em seu casaco. Tampouco remete aos abusos de um passado não muito distante, como aqueles narrados por Daniela Arbex no livro “Holocausto Brasileiro”, sobre o cotidiano do famigerado Hospital Colônia, em Barbacena (MG), instituição psiquiátrica que responde pela morte de mais de 60 mil pessoas por maus tratos. Esses entraram para o imaginário nacional como exemplos de um modelo segregador e excludente.

Em relação ao modelo substitutivo encabeçado pelos Caps, a psicóloga Lídia Marins diz que raras vezes escutou o usuário dizer que não se sente acolhido ou que o trabalho não surtiu algum efeito ou que a proposta não faz sentido. “Pelo contrário, a grande maioria deles garante que só conseguiu se manter de pé com as atividades do Caps”. Para Rodrigo Pereira, o coordenador do Miriam Makeba, o Caps é mais do que um serviço. “É uma política de acesso, um jeito de fazer a diferença em vidas vulneráveis”. O Miriam Makeba, por exemplo, atende não apenas pacientes em tratamento para dependência química que chegam ali por livre demanda ou encaminhados pela rede de assistência social, mas também acolhe um número alto de pessoas em situação de rua, entre elas uma população transexual que circula pelo território, passando a fazer um trabalho articulado com a rede de saúde e atenção básica. Pessoas para quem “o hospício era a rua”, foi o que a equipe ouviu certa vez de uma usuária.

Na contramão

Mas os defensores desse modelo estão receosos. Se até pouco tempo atrás o país passava por um processo de desinstitucionalização de hospitais psiquiátricos e diminuição no número de leitos — no SUS, a queda foi de 40% entre 2006 e 2017 —, mais recentemente as políticas públicas para saúde mental vêm andando em marcha à ré ou ainda na contramão dos princípios que há 18 anos orientaram a Lei 10.216, que instituiu a Reforma Psiquiátrica brasileira. A gota d´água veio no dia 4 de fevereiro, quando o Ministério da Saúde divulgou um documento sob a denominação de Nota Técnica com “Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas”.

Entidades como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) consideraram que o documento feria os postulados da reforma ao garantir, entre outros pontos, a inclusão de hospitais psiquiátricos nas Redes de Atenção Psicossocial, o financiamento para compra de aparelhos de eletrochoque (eletroconvulsoterapia ou ECT), a possibilidade de internação de crianças e adolescentes e abstinência como opção de tratamento a usuário de drogas e ainda a valorização das chamadas comunidades terapêuticas. Na Radis de abril (nº 198), o coordenador do Laboratório de Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Laps/Ensp/Fiocruz), Paulo Amarante, argumentou: “A nota é parte de uma estratégia consciente e bem determinada de desmonte do SUS e da reforma psiquiátrica e de restauração e ampliação dos interesses privados que atuam na saúde pública”.

Para Edmar Oliveira, psiquiatra e ex-diretor do Instituto Municipal Nise da Silveira, o que ocorre é um ataque que desfigura e destrói os pressupostos da reforma psiquiátrica, sob a desculpa de aperfeiçoá-la. Ele alerta para o fato de que a nota retira o protagonismo dos Caps e recoloca o manicômio na rede sob o eufemismo de hospital psiquiátrico e comunidades religiosas. “Ou seja, cria condições de violação dos direitos humanos, retira o tratamento dos dispositivos comunitários, dispensa a inclusão social e acaba com o modelo substitutivo, requisito principal da Reforma”, acrescenta (ver entrevista completa aqui). Após a polêmica gerada em torno dos pontos abordados em suas 32 páginas, a nota foi retirada do site do Ministério da Saúde. Mas isso não significa que esteja fora de discussão. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse à imprensa que o teor do documento será reavaliado pela nova Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas.

À Radis, ela se apresenta assim: “Sou Fabiana Gomes Barbosa, moradora de rua e estudante da Escola Padre Emanuel Nóbrega”. Chegou ao Caps nem lembra como, com todos os vínculos sociais esgarçados, em um momento de crise. “Surtada”, resume. Desde que perdeu a mãe e teve problemas na família, passava os dias nas ruas. Bebendo, acrescenta — que era preciso beber para suportar o frio, a chuva, a violência. “Achava que ser careta era muito ruim”, diz. Mas confessa que, aos poucos, consegue ver o lado bom de se manter sóbria. Com a ajuda do Miriam Makeba, onde conta com apoio médico e psicológico, medicamentos e terapias, vem conseguindo permanecer longe do álcool. “Não é fácil pra gente deixar de vez. Isso é uma doença, não tem cura. Mas aqui pelo menos aprendi a respeitar os limites do meu corpo e o das outras pessoas”. Também voltou a estudar.

A casa de Fabiana ainda é a rua, mas ela passa os dias no Caps até a hora de ir para a escola, religiosamente, no turno da noite. Final do ano, conclui o ensino fundamental. Aluna aplicada, prefere Geografia e História às outras matérias, mas estava feliz da vida com os elogios que recebeu da professora pela última redação. O tema era “A Prova de Fogo: desafio do Amor” e ela havia merecido um “Muito bom!”, com apenas dois erros. O feito foi comemorado por toda a equipe do Miriam Makeba, com direito ao beijo do namorado Rafael que ela conheceu ali mesmo e que também faz o percurso de luta contra o vício. No dia em que Radis visitou o Miriam Makeba, o Rio de Janeiro saía de um período de temporais que provocaram alagamentos e estragos em várias regiões da cidade. Era inevitável perguntar como a moradora de rua suportou esses dias. “A gente fica em pé esperando a chuva passar. Mas não bebi”, garante.

Há dias melhores que outros. “Feliz eu não digo, porque tem as dificuldades, e é difícil conciliar a rua com a escola, mas aos pouquinhos tenho conseguido me reerguer. Tô nessa redução de danos faz quatro anos”. Fabiana cita ela própria a expressão que é uma marca dos Caps e que corresponde a um conjunto de estratégias de cuidado cujo objetivo é garantir que o paciente, aos poucos, melhore seu estado geral, preserve-se de doenças relacionadas ao uso de drogas e diminua o uso até chegar à abstinência. Ela não entende ao certo, mas teme que algo na sua rotina seja alterado. “Isso aqui não pode acabar, se não, vão acabar com a gente também. Vai ser uma calamidade. No Caps eu me sinto protegida e segura”.

É possível que Fabiana estivesse se referindo à nova Lei sobre Drogas que estava em discussão e seria sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro dali a alguns dias, em 5 de junho. A nova Política Nacional sobre Drogas (Pnad) tem como um dos pontos principais, e também o mais polêmico, aquele que prevê a internação involuntária de dependentes de drogas. Isso significa que, ao contrário da legislação que estava em vigor, a atual estabelece que usuários podem ser levados compulsoriamente para centros de reabilitação. Ou seja, a internação pode ocorrer sem o consentimento do usuário ou mesmo da família, bastando que um profissional de saúde ou assistente social peça a internação, que pode chegar a até 90 dias. A sanção da nova lei ocorreu depois que o ministro da Cidadania, Osmar Terra, autor do projeto que há anos tramitava no Congresso, contestou o resultado de uma pesquisa feita pela Fiocruz que concluiu não existir uma epidemia de drogas no Brasil. A divulgação dos resultados da pesquisa continua embargada.

Comunidades terapêuticas

A nova Pnad fortalece ainda as comunidades terapêuticas, instituições normalmente ligadas a entidades religiosas. Atualmente, uma em cada quatro comunidades terapêuticas do país é financiada pelo governo federal. Em março, o Ministério da Cidadania assinou contratos com 496 delas — antes, esse número era de 280 —, para um repasse de R$ 153,7 milhões ao ano. Esses centros de reabilitação costumam pregar a abstinência em suas internações no lugar da redução de danos — termo que, aliás, desaparece da nova legislação. Para Lídia Marins, é um equívoco pensar que as duas coisas são contraditórias. “A abstinência é até mesmo um objetivo da redução de danos, vai depender da história de vida dos sujeitos”, explica. “Acontece que ninguém termina um uso de droga do dia para a noite sem um cuidado, e a redução de danos é o que permite a alguns sobreviver”.

De qualquer maneira, Lídia acredita que a legislação pode até alterar o destino dos recursos e a prioridade de investimentos, “mas ela não tem como alterar as conquistas e tudo o que foi construído ao longo dos anos com a reforma psiquiátrica”. O coordenador do Caps concorda. Segundo Rodrigo, não existe decreto ou lei que possa aprisionar uma realidade. “As pessoas que usam droga e não conseguem ficar abstinentes, continuarão precisando de quem possa acolher o sofrimento delas”, diz. “E a gente vai estar aqui. Os Caps continuarão existindo. Não é possível mais voltar atrás”.

Ana Cristina Pereira, 45, e Anderson Roberto, 36, são namorados. Ela era cozinheira, mas havia perdido tudo para as drogas — muitas drogas, todas. Abandonou o lar, vivia nas ruas, não tomava banho, brigou com as filhas, nunca via as netas. Ele usava crack, fumava maconha, cheirava loló, perdia documentos, não tinha casa — “fumava três, quatro, cinco balas de 10, estava quase morrendo”, tenta explicar. Conheceram-se no Miriam Makeba, onde chegaram, cada um na sua, depois de serem encaminhados pelas equipes dos Consultórios na Rua, componentes da Política Nacional de Atenção Básica. Antes, nunca haviam ouvido falar de Caps, mas ambos queriam mudar de vida.

Ele veio primeiro, há quatro anos. “Fui acompanhado por um técnico de Enfermagem, comecei a tomar remédio e já fui diminuindo com as drogas”, conta Anderson. Ana chegaria um semestre depois. Gostam das assembleias em grupo e das oficinas. Ela sente vontade de participar da oficina de brincos e balangandãs, oferecida no local e responsável pela criação da Makeba Bijus — atividade que, além de cumprir a função terapêutica, gera renda para os participantes. Mas não leva muito jeito, assume. Mesmo assim, os dois vão ao Caps diariamente, onde recebem medicamento e apoio necessários. Ao final do dia, voltam para a casa alugada pelas filhas dela. Depois que a mãe começou o tratamento, voltaram a se aproximar. Visitam-se e, aos domingo, costumam comer pizza em família.

Ele é torcedor do Flamengo e gosta de futebol. Ela, de ir à praia. “Saímos da rua, agora temos a nossa casa, já espalhamos nossos currículos e estamos em busca de emprego”, comemora Anderson, entre uma declaração e outra para a namorada. Ele também planeja retomar os estudos e encontrar os irmãos, com quem perdeu o contato. “Meu sonho é conseguir um bom trabalho para manter a nossa família. E parar com o uso de droga total”. Anderson hoje toma três medicamentos. Ana, um pouco mais. Antes de seguir, ele ainda diz à Radis: “Você passou por isso tudo, agora tá querendo se redimir, mudar e não cair no mesmo erro de novo, viver uma vida sem ter que roubar ninguém, sem violência, sem ter que usar droga. Mas ainda tem muitos que te criticam”. Anderson não liga tanto. “Tudo isso que vem acontecendo me ajuda muito. É muito bom fazer parte de uma família”.

O Miriam Makeba é um dos 331 Caps-AD do país. Eles são distribuídos estrategicamente nas capitais e municípios com população igual ou superior a 200 mil habitantes, como determina a legislação. Em toda a cidade do Rio de Janeiro, são apenas sete Caps-AD. Ao se estabelecer há cinco anos numa simpática rua do bairro de Ramos, o Caps teve dificuldades com a vizinhança. “As pessoas tinham preconceito, queriam nos tirar daqui”, lembra Rodrigo Pereira. “Mas depois de algumas visitas e muitas conversas, as coisas foram mudando no imaginário da população”. Um tempo depois, o Caps foi convidado para realizar uma oficina na quadra da Imperatriz Leopoldinense, escola de samba a um quarteirão dali.

Juciê, Crispim & W.M.

Juciê da Silva de Sousa tem 39 anos. Diz que fundou o Miriam Makeba, porque frequenta o local desde que o Caps se instalou na região. Antes, quando entrava em surto, a família chamava os bombeiros que já chegaram a lhe conter com spray de pimenta, ele conta. Não mais. “Gosto muito daqui porque é aqui que eu me trato”, fez questão de ressaltar. Crispiniano — “Mas podem me chamar de Crispim” —, que vivia em situação de rua, só quer agradecer à equipe: “Muito obrigado por vocês estarem me ajudando”. Enquanto W.M., que pediu para não ser identificado, tem uma definição inusitada. “O Caps é a minha fuga geográfica. Eu vivo uma Disneylândia sem Mickey nem Pateta, mas cheio de Irmãos Metralha”.

Aos 59 anos, ele começa a desfiar para Radis a sua narrativa. Conta que foi guitarrista e teve uma banda de heavy metal, viajou o mundo, ganhou muito dinheiro e gastou tudo com droga. Foi diagnosticado com um câncer nas fossas nasais. Mecânico de manutenção de aeronaves, desperdiçou todas as oportunidades de emprego — “Todos sabiam da minha dependência química. Fiquei com meu filme queimado”. No fundo do poço, ele diz, sem casa e morando na rua, passou por algumas internações. “Me internavam à força, mas quando eu saía, voltava a usar”. Está convencido de que, se não houvesse conhecido a redução de danos, teria desistido. “Minha dependência química é tamanha, crônica de determinada forma, que se eu usar demais, fico mal, se não usar, também fico mal”.

W.M. também tem Síndrome de Borderline — conhecida ainda como transtorno de personalidade limítrofe. Ele conta que, para sobreviver, tem feito coisas de que não se orgulha. “Então, venho ao Caps para colocar a minha mente em ordem porque vivo em um mundo completamente insano. Tomo a medicação, converso com os psicólogos e eles me ajudam a me equilibrar psicologicamente”. Da música, ele nunca esqueceu.

Naquela tarde de aniversário, o Caps-AD Miriam Makeba ganhou enfeites. Ainda haveria bolo e música e desfile, tudo protagonizado pelos usuários. W.M. assume o violão. Crispim não foi mais visto, mas Juciê conversa com os companheiros. Ana entra na passarela e termina o desfile nos braços de Anderson. Fabiana faz questão de vestir roupa nova e arrumar um turbante na cabeça à moda da própria Miriam Makeba. Uma das composições de Makeba, “Pata-Pata”, compunha a trilha sonora. Pelo salão, com a psicóloga Lídia, Marcelo rodopia ao som de “Falsa consideração”, a música de Jorge Aragão cujos versos asseguram que “há males na vida que vêm para o bem”.

Rodrigo Pereira, coordenador do Miriam Makeba, considera o Caps mais do que um serviço, uma política de acesso.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

4 × 4 =