O escorpião de Brasília e o SUS

São espécimes de escorpião-político os ministros que optam por agredir políticas públicas, vociferando contra o próprio Estado

Por Paulo Capel Narvai, para o Outra Saúde

Picado por um escorpião enquanto dormia, Christian Silva de Jesus, de quatro anos, não resistiu e morreu em Brasília no final da tarde do dia 28/6/2019, uma sexta-feira. O garoto morava na região norte de Taguatinga, na parte oeste do Distrito Federal (DF), a cerca de 25 quilômetros da Praça dos Três Poderes, sede política da República. O escorpião que o picou, na madrugada da sexta-feira, era um exemplar da espécie Tityus serrulatus (escorpião-amarelo), a que mais causa esse tipo de acidente no Brasil.

O óbito de Christian poderia se transformar em um número a mais nas estatísticas de saúde e na rotina de descasos que matam. Mas há no episódio aspectos que se referem ao deliberado sucateamento de serviços públicos em geral, incluindo os do Sistema Único de Saúde (SUS) e, também, uma dimensão simbólica que chama a atenção.

Não houve negligência assistencial, nem dos parentes, nem dos profissionais de saúde. Assim que constatou a picada, a família buscou assistência médica. O pai do menino, Juliano Alecrim da Silva, disse que Christian foi prontamente atendido no Hospital Regional de Taguatinga (HRT), onde recebeu parte dos medicamentos de que necessitava e ficou internado. Mas isto não foi suficiente. Após várias paradas cardíacas, faleceu. Faltou pelo menos uma dose a mais, em tempo hábil, do soro antiescorpiônico.

Os acidentes escorpiônicos ocorrem em praticamente todo o Brasil, com exceções dos extremos sul e norte do País. Segundo o Ministério da Saúde, 156.702 brasileiros foram picados por escorpiões em 2018, levando a óbito 103 pessoas. Essa diferença entre o número de ocorrências e de mortes é explicada pelo fato de que predominam os casos “leves” (87% do total), quando é suficiente que os medicamentos atenuem os sintomas. O uso terapêutico do soro antiescorpiônico é restrito aos quadros moderados ou graves, os quais se concentram em idosos, cardiopatas e crianças menores de sete anos de idade. Mas, nesses casos, é indispensável que a aplicação do soro seja feita sem demora, e em quantidade suficiente, pois o tempo não é aliado da vítima. Ao contrário, “joga contra”, pois o veneno é mortal e age rapidamente.

Assim, estando o menino Christian no grupo vulnerável, e tendo recebido pronto atendimento, por que morreu? Em 2018, o DF registrou três vítimas fatais de picadas de escorpião. Essas mortes indicam claramente a necessidade de as unidades de referência para tratamento de vítimas de picadas de escorpião (nove no DF) contarem com quantidade suficiente de soro antiescorpiônico para atender e resolver acidentes desse tipo. Por que não foi possível à equipe que atendeu Christian no HRT contar com o soro de que necessitava para evitar a morte do garoto?

Pode-se perguntar, também, por que o menino, em situação extrema, não foi levado para um serviço particular de saúde. Esta resposta é simples: serviços privados de saúde raramente se interessam por casos desse tipo e, portanto, não dispõem rotineiramente dos medicamentos necessários. Daí a importância de bons serviços públicos. Por essa razão, no Brasil o soro antiescorpiônico é disponibilizado apenas pelas unidades de referência do SUS, identificadas pelos Estados e Municípios (e pelo DF), sob coordenação nacional do Ministério da Saúde, que banca os custos. A gestão do soro é feita, portanto, segundo planejamento e logística compatíveis com a situação epidemiológica de cada região de saúde.

Tendo Christian recebido prontamente os cuidados de que necessitava, na família e no HRT, não morreu em decorrência da picada do escorpião, conforme se noticiou, nem por imperícia, negligência ou imprudência médica, mas por incúria administrativa, que deriva do descaso com a coisa pública e do sucateamento dos serviços que incumbe ao Estado prestar adequadamente aos cidadãos.

A incúria administrativa tem, em nossos dias no Brasil, um forte componente ideológico, que associa tudo que é público a algo ruim, precário, de má qualidade, e aos serviços privados o oposto, supostamente sempre excelentes.

A incúria administrativa vem matando e destruindo instituições públicas em todo o Brasil.

Não fosse apenas por se tratar da Capital Federal, carregada, portanto de todo o simbolismo próprio dessa condição, Brasília deveria dispor de um sistema de saúde exemplar. Ademais, segundo a vigilância epidemiológica, no período de 2007 a 2017 o número de vítimas de ataques de escorpião aumentou 773% no Distrito Federal (de 124 para 959). Esses números deveriam, evidentemente, gerar respostas adequadas do governo local, combinando-se ações preventivas e possibilidades de pronto tratamento de vítimas. Afinal, não há empecilho relevante para isto, pois o soro é produzido no Brasil (Instituto Butantan), não há praticamente contraindicações, o prazo de validade do soro é de 36 meses, tempo suficiente para a manutenção de estoques estratégicos e, além disso, o custo para disponibilizá-lo é compatível com os recursos orçamentários atuais do sistema público de saúde.

Há escorpiões de vários gêneros em Brasília e no Brasil.

No DF eles habitam todo o território, mas há espécimes especialmente nocivos que levam a vida em casas, mansões e palácios à beira do lago Paranoá. Outros preferem a Esplanada dos Ministérios. São escorpiões de outra espécie. Não são do gênero T. serrulatus, nem Tityus bahiensis (o escorpião-preto ou escorpião-marrom), nem Tityus stigmurus (o escorpião-do-nordeste). São do gênero Tityus politicus (escorpião-político) e provêm de várias unidades federativas. Os T. politicus podem ser inclusive mais letais que os T. serrulatus.

É bastante conhecida a fábula do escorpião que queria atravessar um rio e, vendo um sapo por perto perguntou-lhe se poderia levá-lo nas costas para a outra margem. Com certa boa vontade, mas desconfiado, o sapo respondeu que gostaria de ajudá-lo, já que ia mesmo atravessar para o outro lado, mas que tinha receio de ser picado. Ardiloso, o escorpião argumentou que não era preciso ter receio, pois se o picasse os dois morreriam afogados e isto não era nada inteligente. “Pode confiar em mim”, completou. Vendo lógica no argumento, o sapo, solidário, cedeu. Colocou o escorpião nas costas e adentrou o rio. Porém, lá pelo meio da travessia, o escorpião não se conteve e picou o sapo. Sentindo a ferroada o sapo reagiu, incrédulo e já agonizante: “Mas, Escorpião, você prometeu que não faria isso. Agora, ambos morreremos afogados”. O escorpião retrucou: “Desculpa, Sapo, mas esta é a minha natureza”.

Tityus politicus é um gênero que preserva a essência da espécie: não resiste à própria natureza e pica.

Ocorreu-me a fábula do escorpião e do sapo, pois se picar é da “natureza” do escorpião, o bicho não pode ser responsabilizado pelas consequências das suas picadas. O mesmo não se pode dizer, porém, do escorpião-político, esse gênero de escorpião que, tal como o escorpião-amarelo, vem se reproduzindo em progressão geométrica no Brasil e que registra, em Brasília, notável infestação em certas áreas do território. Porém, ao contrário dos demais bichos da espécie Tityus, os T. politicus precisam ser responsabilizados por suas ações.

São espécimes de escorpião-político, por exemplo, ministros de Estado que, ao invés de liderarem e defenderem políticas públicas de que estão incumbidos, optam por agredir essas políticas, desmontando-as e se valendo delas para fazer proselitismo partidário-eleitoral. Ao vociferar contra o próprio Estado e as ações de governo, buscando tirar proveito pessoal ou partidário dessas agressões, incorrem em incúria administrativa e acabam por minar o ânimo de servidores públicos aos quais cabe executar as ações de governo, em nome do Estado e no interesse da população.

Quando um ministro da Saúde ofende e agride o SUS, que reação se pode esperar dos servidores públicos que, em todo o país, mantêm funcionando os serviços públicos de saúde – muitas vezes dispondo de péssimas condições de trabalho e contando com salários aviltados? Um ministro-escorpião proporcionará não mais do que picadas no sistema e nos servidores públicos.

Mas por que falar disso, associando o escorpião-político ao caso do menino que morreu por falta de soro antiescorpiônico, residindo a 25 quilômetros do Ministério da Saúde? Para reafirmar, uma vez mais, que se ilude completamente quem pensa que “não usa o SUS”, ou que não tem “nada que ver com o SUS”. Em episódios como o que levou Christian à morte, resulta evidente que é do interesse de toda a sociedade que o SUS seja bem administrado e que proporcione a todos serviços de qualidade, em tempo hábil.

É preciso, por que é inevitável, conviver com escorpiões, cobras e lagartos. E com morcegos (há gêneros da espécie que têm predileção pelo planalto central), aranhas e outros bichos peçonhentos. Mas é necessário, sobretudo, dar combate diuturno ao Tityus politicus, o famigerado escorpião-político. Ele é a principal ameaça, não apenas ao SUS, mas ao Brasil. Claro que é sempre possível considerar exagerado “tudo isso”, ignorar a morte de Christian, e tocar a vida em frente. Até topar com um escorpião.

Foto: Ana Volpe/Agência Senado

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