Por que Racismo Religioso e não apenas Intolerância Religiosa?

Povos de terreiro resistem ao racismo religioso ao longo de séculos no Brasil e enfrentam grandes desafios

por Diogo Fernandes e Jamile Araújo, em Brasil de Fato

Desde um suposto inofensivo ‘chuta que é macumba’, olhares tortos por usar branco e guias no pescoço, até ações mais violentas como apedrejamentos: o Racismo Religioso é uma realidade no Brasil. Vimos, no último semestre na Bahia, alguns casos denunciados. Como o ocorrido em Alagoinhas no final de maio, no Ilê Axé Oyá L’adê Inan, onde um grupo de religiosos evangélicos foi para a porta gritando e batendo com bíblias no portão dizendo que “Satanás iria sair”. Ou ainda os 100 quilos de sal jogados na Pedra de Xangô em Cajazeiras, local tombado pela prefeitura como monumento natural, que faz parte da área também tombada do antigo Quilombo do Tatu.

 Por que Racismo Religioso e não apenas Intolerância Religiosa?

“Ao falar de intolerância religiosa a gente acaba tratando dos sintomas e não da doença. A gente acaba lidando com as manifestações e não com a estrutura em si. E eu acho que não adianta a gente lidar o tempo todo com os casos, mesmo que juridicamente, se a gente não consegue chegar na estrutura racializada do nosso país, do Estado, e a partir disso enfrentar o problema que é desestruturar esse racismo”, ressalta Gabriela Ramos, ddvogada, Yá Leyn do Ilê Axé Abassá de Ogum.

Gabriela explica que ao usar o termo Intolerância Religiosa em casos de terreiros apedrejados ou verbalmente ofendidos por algum evangélico, se coloca uma dimensão pontual e que muitas vezes se acaba individualizando uma questão que faz parte do racismo estrutural. “Eu gosto de pensar, inclusive, nesse sentido, quando as pessoas de candomblé são ofendidas, ou passam por situação de discriminação em que lidam com pessoas seguidoras de outra religião, normalmente há um enfrentamento individual para essas pessoas. E eu falo, na condição jurista, que a gente deveria começar a fazer um enfrentamento às instituições, porque elas são responsáveis pela formação valorativa dos fiéis. Tenho que procurar a que templo religioso este indivíduo está vinculado para responsabilizar civilmente para buscar a fonte do problema”, pontua Gabriela.

Como os povos de matrizes africanas exercem a sua organização social e desenvolve a sua resistência?

Mesmo diante de um cenário de violência, as religiões de matrizes africanas seguem resistindo e existindo através das famílias ampliadas existentes nas casas de candomblé. 

Para Gabriela Ramos existem diversas maneiras de resistir. “Acho que inclusive o fato de ainda estarmos com nossas casas de Candomblé abertas, raspando Iyawos, confirmando Ogans e Ekedis, fazendo obrigações é a nossa forma mais ‘rudimentar’, quanto mais eficaz de fazer enfrentamento, de fazer resistência. Porque se dependesse do projeto de genocídio que está em curso neste país desde 1500, não estaríamos mais com nenhum terreiro de Candomblé com as portas abertas”, argumenta. 

A advogada fala ainda sobre a utilização de mídias sociais, e sobre recorrer a ferramentas institucionais de denúncia para reparar ou cessar as violações, além de pensar o uso da arte e da literatura como formas de diálogo e sensibilização acerca do racismo religioso. Além disso, “as ferramentas políticas de manifestações de rua, e visibilidade do que é o Candomblé, a educação com a acentuação do ingresso de estudantes negras e negros nas universidades também possibilitou que a academia fosse obrigada a lidar com outras narrativas, com a nossa saída dessa condição de objeto de estudo para sermos agora as pessoas que fazem os estudos”, pontua.

Segundo Dhay Borges, do Coletivo de Entidades Negras – CEN, a ancestralidade e os valores praticados entre os povos de terreiros são elementos fundamentais para a resistência. “Os povos de terreiros têm uma forma própria de subsistência e uma engenharia de proteção intrinsecamente voltadas a sua fé e aos seus valores relacionados a natureza e o cuidado ao outro. Dito isto, podemos colocar que a ancestralidade e a proteção ao outro são os elementos de proteção e manutenção. Uma religião que tem na sua essência o matriarcado como maior referencial”, ressalta. 

Principais desafios

A organização sócio religiosa das casas de candomblé, dos povos de terreiro, enfrentam desafios que dizem respeito a sua existência e permanência enquanto espaço sagrado e de organização de famílias historicamente negra. 

Gabriela Ramos chama atenção para dois fenômenos que observa e que em sua opinião devem ser melhor compreendidos: a massificação de pessoas negras nas Igrejas Neopentecostais e o aumento de pessoas brancas no Candomblé. “Como é que esses dois fenômenos dialogam, e o que é que isso quer nos dizer, o que isso vai trazer de repercussão pra gente no longo prazo, será que vai rolar um epistemicídio? Será que isso é parte do projeto de genocídio? É algo que a gente precisa prestar atenção. E não digo isso porque eu acho que a gente tem que interditar a presença de pessoas brancas no candomblé, mas acho que a gente deve compreender porque esse fenômeno está acontecendo”, afirma. 

Gabriela também comenta sobre a prática de mercantilização que atinge a relação entre os povos de terreiro e a sua fé com o encarecimento dos elementos fundamentais de diálogo e comunicação dos religiosos e o seu sagrado, através dos rituais necessários. Ao lidar com os altos custos que tem se tornado os materiais do candomblé, afasta o envolvimento dos povos negros historicamente atingidos pelo desemprego ou trabalhos com baixa remuneração, diferentemente das classes médias que estão em vantagem por conseguir financiar esses materiais. 

Diante do cenário político, econômico e social atual, Gabriela Ramos afirma que repercute justamente essa fragilização dos corpos e subjetividades. “Nós estamos, embora resistindo, com as forças muito menos potentes do que poderíamos estar. Nosso grande desafio é desatar esses nós para conseguir refazer laços que nos sustente, tanto para passar por esse momento, quanto pelas outras armadilhas que o projeto de genocídio que esse país arquitetou para nos colocar, e seguir em frente”, finaliza.

Dhay Borges afirma a importância das religiões de matrizes africanas ao longo de uma história de dor, perseguições e lágrimas, profundamente marcada pela relação continuada com a  escravidão. “Apesar de todo esse quadro de penúria e abandono jurídico a população negra enxergou na fé e na ancestralidade a sua ferramenta de resistência, fazendo com que estrategicamente se  ampliassem os laços de afetividade, pois o esfacelamento das famílias deflagraram, por certo, a dizimação do povo negro. Daí, temos papel  fundamentalmente importante das religiões de matrizes africana que surge para devolver aos negros esse sentimento de família”, finaliza.

Edição: Elen Carvalho

Na foto, Busto de Mãe Gilda, homenageada no dia 21 de Janeiro como dia de Combate à Intolerância Religiosa. / Eloi Correa/ GOVBA

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