O Brazil de Bolsonaro é o Brasil fora de si

por Jean Wyllys, em UOL

Entre indicar seu filho intelectualmente limítrofe como embaixador do Brasil nos EUA e intervir para que fosse cancelada uma política de inclusão de transexuais, travestis e transgêneros na UNILAB (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira), Bolsonaro defendeu o trabalho infantil (de crianças e adolescentes pobres, claro) e divulgou um trecho do documentário de Maria Augusta, “O processo”, como se fosse um “vazamento” de uma conversa do Gilberto Carvalho, ou seja, o presidente cometeu publicamente uma fraude. Seu eleitorado aplaudiu e buscou “justificar” as atitudes de seu “mito”, como também tenta “justificar” os desvios de conduta de seu ministro da Justiça, Sergio Moro, quando juiz da Lava Jato.

Um desses eleitores de Bolsonaro jogou sua caminhonete contra o assentamento Marielle Vive do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra em Valinhos, interior de São Paulo, assassinando uma das pessoas que reivindicavam, à prefeitura do município, acesso a água, e deixando outras tantas gravemente feridas. Não preciso relembrar aqui que Bolsonaro tratou, antes e durante sua campanha odiosa baseada em mentiras e insultos, o MST como uma “organização criminosa”. Tampouco é necessário dizer que a violência perpetrada pelo assassino de Valinhos está em sintonia com outras violências físicas e simbólicas cometidas por eleitores de Bolsonaro durante e depois da campanha eleitoral: do racismo ao homicídio, passando pela homofobia.

Uma turma de eleitores de Bolsonaro tentou impedir, por meio de intimidações e rojões, a participação do jornalista Glenn Greenwald na FLIP (Feira Internacional Literária de Paraty). E outros eleitores conseguiram impedir, por meio de ameaças de morte, a participação da jornalista Miriam Leitão numa feira do livro em Santa Catarina.

O jornalista Fábio Panunzio foi atacado esta semana por seguidores do presidente da república em suas redes sociais com insultos impublicáveis.

Ao que parece, uma parte do Brasil (os eleitores de Bolsonaro) está disposta a tudo para defender seu “mito”: incompetência, calúnia, falsificações, nepotismo, racismo, homofobia, feminicídio, corrupção, exploração de mão-de-obra infantil, exploração sexual de mulheres e tortura; está disposta a defender o genocídio dos povos indígenas.

“Que gente é essa?”, muitos se perguntam. E afirmam na sequência: “Isso não combina com o Brasil!”. Lamento contrariá-los, mas combina sim. O Brasil não conhece – ou não conhecia, até a votação na Câmara Federal do impeachment de Dilma Rousseff – o Brazil! Daí ter se enganado sobre si mesmo por tanto tempo…

Como encarnação do pai amoroso de que fala a psicanálise lacaniana, não castrador, em seus oito anos de governo e graças à estabilidade econômica, ao chamado “boom das commodities” e à distribuição de renda por meio de programas sociais, Lula interpelou o que havia e ainda há de melhor na identidade nacional. Lula valorizou e estimulou as características que os brasileiros gostam de evidenciar na sua relação com estrangeiros: cordialidade, alegria, generosidade, inteligência, tolerância, otimismo, sensualidade e beleza, entre outras.

A própria imagem internacional positiva de Lula – chamado de “O cara!” pelo presidente Barack Obama – se confundia com a identidade do país em ascensão no cenário mundial, e serviu para recalcar o que há de pior no Brasil (o Brazil) e para que os brasileiros se esquecessem do que são também: racistas, machistas, homofóbicos, violentos, invejosos, iletrados, ressentidos, fanáticos religiosos e com complexo de vira-lata: uma nação forjada pelo colonialismo, por 350 de escravidão de negros africanos e seus descendentes, pelo extermínio de povos indígenas e por 24 anos de ditadura civil-militar.

O fascismo que começou a emergir com força nos meses anteriores ao impeachment de Dilma Rousseff e que encontrou em Bolsonaro um porta-voz (este encarnando o pai castrador e odioso, o oposto de Lula) interpelou essas características que tinham sido recalcadas nos anos de governos petistas, transformando-as em hegemônicas e mais expressivas na relação do Brasil com o resto do mundo.

Como em “US”, novo filme de Jordan Peele lançado em março deste ano, o Brasil se encontrou com sua parte maldita (igualzinha a ele, só que má) fora de si mesmo; e terá que enfrentá-la doravante para não ser morto por ela. Importante ressaltar que a tradução de “US” para o português (“Nós”) elimina a ambiguidade do título original do longa, já que “US” é também abreviatura de United States (“Estados Unidos”). Jordan Peele fez, de seu filme, uma alegoria do encontro dos Estados Unidos com sua contraparte medonha após a eleição de Trump. A tradução para o espanhol – “Nosotros” – dá mais conta do quanto a alteridade maldita é constituinte da identidade nacional.

Desde 2012, o Brasil vem encarando o Brazil de frente e se esforçando para que este não o recalque ou elimine, muito embora a música de Tom Jobim (parte do Brasil) onde fui buscar essa referência seja muito anterior a 2012 (quer dizer, os poetas e os profetas enxergam as realidades muito antes de todos nós!).

Essa luta é travada nos espaços públicos e nas redes sociais, mas também e sobretudo nos espaços privados das famílias, como no filme de Peele.

O Brasil não merece esse Brazil!

E, ao que parece, esse embate entre a identidade nacional e a alteridade maldita que a compõem não se dará só nos EUA e no Brasil. A emergência do fascismo em muitos países tem tornado essa batalha inevitável em toda parte: uma luta entre o pior da humanidade, que conduz à morte, e o melhor da humanidade que conduz à vida. Como uma luta entre Deus e o diabo, sendo o diabo igualzinho a Deus só que mau, ou, como se o diabo fosse o que Deus tem de pior em si mesmo fora de si.

O Brazil de Bolsonaro é o diabo do Brasil fora de si, em todos os sentidos dessa expressão.

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