Há projeto a partir da desagregação? Por que ainda temos tanta polidez no uso do conceito de fascismo, quase sempre prenhe de prenomes latinos, aspas e constrangimentos os mais diversos?
Por Carlos Eduardo Rebuá*, no Blog da Boitempo
“O tempo é uma construção social.
Toda ordem social é marcada, à sua maneira, pelo controle do tempo;
essa talvez seja a face mais invisível e mais onipresente do poder.”
[Maria Rita Kehl, O tempo e o cão]
“Essa forma de dominação através da
dinâmica temporal que vem a ser o capitalismo.”
[Postone apud Arantes, O novo tempo do mundo]
O filme O sacrifício do cervo sagrado (2017), dirigido por Yorgos Lanthimos, narra a história de Dr. Steven Murphy (Colin Farrell), responsável pela morte de um homem em sua mesa de cirurgia, e o jovem Martin (Barry Keoghan), filho do paciente, com quem estabelece uma delicada relação após a tragédia. A trama é tecida a partir do vínculo de um adolescente com o cardiologista, sua esposa Anna (Nicole Kidman) e seus dois filhos, o caçula Bob, e a moça Kim. De um aparente vínculo de amizade revela-se um processo doentio que amalgama culpa e vingança, suscetibilidade e ódio, sobretudo quando os filhos do médico são acometidos por uma agressiva doença que os paralisa as pernas e degenera rapidamente o organismo.
Recorrente na narrativa do diretor grego, como em O Lagosta (2015), uma sensibilidade passiva ou um tipo de reação apática dos sujeitos encarna uma espessura quase incomum diante da dor repentina, do trauma. A materialização do mal não incita, de início, o susto, a resposta enérgica, o movimento, mas a quase normalização, provocando no espectador um tempo angustiante. O final da obra de certa maneira apresenta uma resolução possível, sem, no entanto, abrir mão do mal-estar e do choque como afetos.
Na Nova República nunca sentimos tanto medo como agora, um tempo presente anterior ao do governo Bolsonaro, mas organizado em termos de vontade coletiva a partir de sua eleição, valendo-se da desorganização, do caos e do incremento das formas de violência. Outro ingrediente que traduz relações de força nesta média conjuntura é o desencantamento de amplos setores, resultado de políticas e razões neoliberais, da agressão enquanto gramática institucional, da crise econômica mundial e de pactos sociais pra menos, ambos eliminando possibilidades concretas de experiências democráticas e o enfrentamento de nossos estorvos.
Não custa lembrar uma sequência cronológica imprescindível que começa em Junho e nas diversas polarizações no Estado ampliado, que não foram vitória ou derrota simplesmente, mas a tradução de colapsos reais de/em nossa democracia fantasmagórica[1]que é commodity e holograma. Em seguida temos o Golpe de 2016, passando pelo assassinato de Marielle, a prisão de Lula, a metástase das fake news no processo eleitoral de 2018, a perseguição nas universidades federais a estudantes e movimentos antifascistas sob comando do TSE.
Duas questões nos mobilizam nestas breves palavras: (i) há projeto a partir da desagregação? (ii) por que ainda temos tanta polidez no uso do conceito de fascismo, quase sempre prenhe de prenomes latinos, aspas e constrangimentos os mais diversos? Rapidamente, como um trailer, entendemos que para a primeira pergunta a resposta é sim e as negações têm justificação, em maior ou menor grau, na incompreensão da ideologia enquanto hegemonia de sentido e da hegemonia enquanto ação pedagógica. Para o segundo, temos (a esquerda brasileira em todas as suas frentes) subestimado historicamente a força da fragmentação e os impactos de nosso jeito especial de elaborar coletivamente a dor, o trauma, o sofrimento nos modos de subjetivação dos processos históricos, na experiência política, no humor, nas utopias, na indústria cultural, nos espaços de saber.
Numa cola entre os dois pontos de inflexão há um nexo causal entre o desmanche de formas de solidariedade/horizontes de mudança e o efeito paralaxe de muitas interpretações do fascismo, desviadas da urgente atualização de suas morfologias contemporâneas. A sociedade neo-neo (neoliberal-neoconservadora) da transição do XX para o XXI é decisiva na obliteração da percepção da catástrofe molecular do tempo fascista, uma temporalidade que permanece para além da cronologia histórica do fascismo e que fantasmagoriza visões de conjunto, porque funcional à generalização violenta, mas palatável da cultura capitalista em todas as dimensões da vida. Essa temporalidade, uma vez que o capitalismo é também um modo de dominação temporal, dissemina experiências da duração vinculadas a perspectivas de desencantamento, à violência, à fraude, à linearidade, à rapidez. Nem toda configuração nesses termos termina em fascismos, mas todos os fascismos a contemplam.
Defendemos que no longo e difuso processo de fascistização[2] da cultura, as sociedades mais bem-sucedidas no controle do embate entre memória e história, na lobotomia do luto e do trauma, de onde o Brasil é caso paradigmático, têm fecundado generalizações da alienação – fantasmagorias, que são projeções enganosas e enganos projetados –, capazes de negar cinicamente a escravidão, as ditaduras, o nazismo, a tortura, as lutas de mulheres, LGBT’s, negros, favelados, professores, índios, nordestinos. A interpretação de Gramsci do fascismo como um tipo de gestão das novas formas de conflito social[3] nos parece atualíssima. Ele não pôde verificar os deslocamentos recentes onde fascismo ultraliberal e neofascismo bolsonariano[4] se coadunam, tampouco as hesitações acadêmicas por aqui em estabelecer novas sínteses entre colonialidade, escravidão, neoliberalismo, dependência, fascismo, como se habitassem cada um o seu quadrado teórico-conceitual sem franjas, fronteiras.
Nos parece que houve um excesso, nas últimas décadas, de análises políticas do fascismo dissociadas de sua decupagem filosófica, de uma interlocução com o que podemos chamar de filosofia crítica antifascista, o que aprofundou nosso estranhamento de formas de fascismo atualizadas, mas nem por isso menos trágicas. O trato de seus efeitos hoje aparece em diversas análises como descolado de uma interpretação não evolutiva do tempo: nossos próprios usos do “neo”, indicando apenas o novo e não os museus de grandes novidades, apontam para este sintoma da duração como continuum. Se a fascistização é processo então precisamos de menos prefixos e mais atenção ao que os sufixos podem nos dizer.
Em meio à ampliação do estado de exceção no núcleo hegemônico do capitalismo, principalmente em suas periferias, três pensadores merecem destaque como antídotos para a patologia citada, ao reforçarem o fenômeno do fascismo como permanência heterogênea e, por isso, usarem fascismo sem constrangimentos filológicos ou políticos: Leandro Konder[5], Umberto Eco[6] e Octavio Ianni[7].
Konder defendia que o reaparecimento do fascismo, sob condições históricas particulares, não seria óbvio, devendo ser considerado sempre em seus movimentos de reinvenção, transformação, ou seja, em seu desenvolvimento, sem elaborações de modelos esquemáticos. Por sua vez, Eco defende que é preciso matizar alguns traços recorrentes do fascismo sem perder de vista suas contradições fundamentais, atentando para o fato de que se apenas uma característica se apresentar já temos matéria-prima para a formação de uma nebulosa fascista. O culto da tradição, a recusa da modernidade, o deslocamento da vontade de poder para questões sexuais, o desprezo pelos fracos, a violência permanente, o heroísmo como norma são algumas das quatorze faces do Ur-Fascismo (fascismo eterno) que periodicamente retorna sob vestes inocentes e invólucros novos, devendo urgentemente ser desmascarado. Finalmente, Ianni demarca o fascismo como uma ativa e agressiva cultura política que avançou no XX, assumindo com o neoliberalismo a condição de sua religião, na esteira dos efeitos de ampliação do sentimento de desencantamento do mundo e das fraturas sociais provocadas pelos mecanismos neoliberais. Sendo intermitente, difuso e esporádico, o fascismo – ele utiliza nazi-fascismo – também se amplia na medida em que a globalização expande toda a soma de experiências catastróficas.
Para além do bolsonarismo e da bolsonarização: (re)pensar o fascismo
Paulinho já era um esqueleto quase todo dia.
Seus clientes eram esqueletos. As pessoas com quem
Paulinho conversava, trepava, comia (embora em geral comesse
sozinho), também eram esqueletos. E no terceiro romance,
A Mudinha, as principais cidades brasileiras eram
como enormes esqueletos, e os povoados também eram
como pequenos esqueletos, esqueletos infantis, e às vezes até
as palavras tinham se metamorfoseado em ossos.
[Roberto Bolaño, A literatura nazista na América]
O governo de extrema-direita de Bolsonaro, com incisivos elementos fascistas, tem elaborado na esteira do modelo Trump o manejo do caos como método[8] de dominação, colapsando instituições e modulando dores e humores, sob a tática da balbúrdia organizada, como atestam, por exemplo, o decreto das armas (expressão da demanda de sua parcela mais fascista do eleitorado) e seu vai-e-vem, bem como os ataques covardes a professores, escolas e universidades, de onde obrigar a cantar o hino, filmar alunos e cortar unilateralmente bolsas de pesquisa representam enredos de horror. De acordo com Umberto Eco, na reflexão sobre o fascismo eterno, de 1995, o fascismo do caso italiano era um ‘desconjuntamento ordenado’, uma confusão estruturada[9]. Em outras palavras, é possível uma ordenação autoritária alicerçada em implosões calculadas, no curto, médio ou longo prazo.
O famoso diagnóstico de Darcy Ribeiro a respeito da crise educacional brasileira ser projeto das elites e não crise é lembrança necessária no momento em que o ministro da Educação, Abraham Weintraub, um Vélez Rodriguez 2.0, eleva a um novo nível a confusão-norma, implodindo expectativas minimamente republicanas, assediando docentes, apagando minorias, zombando de todos com vídeos de chocolates, ao lado do presidente, guarda-chuvas e outros sadismos. Retomando o início do texto: não seria então, com Darcy, o caos/catástrofe um tipo de projeto?
As “tosquices” de Weintraub não são raridades nesta sociedade dos arremedos do moderno com o obsoleto que fantasmagorizam experiências democráticas. Há no tosco um tipo de sociabilidade e uma agenda da autocrática burguesia nacional, vinculados ao adiamento histórico de demandas humanas mínimas como cuidar da saúde, ter casa e estudar. A crítica de algumas de nossas patologias sociais[10], que em grande medida explicam os processos de fascistização hodiernos, tem ganhado novos fôlegos com estudiosos da psicanálise de corte materialista.
Christian Dunker, talvez no ensaio mais potente de 2019, analisa o tosco brasileiro, dimensão estética e ética capaz de estabelecer remendos no tecido social, desde o cristianismo chulo até as gramáticas dos pancadões que objetificam mulheres e sexualidade, passando pela educação pelas armas e pela imposição do precário como condição política.[11] Ressentimento, coerção, gambiarra, recalque, exagero, insegurança, rudeza, humor rasteiro, estereótipo, o ataque sistemático à cultura e à educação, são ingredientes que substanciam o prato da “tosqueira” que é projeto de poder, centralmente das classes médias, e não um acaso miserável. Autor do condomínio[12] como prisma investigativo e modo de vida no Brasil das últimas quatro décadas, afirma que o Tosco Brasileiro “é o retorno do coronel de engenho recalcado contra a impostura do síndico bem-comportado. Por isso o novo Tosco Brasileiro é a expressão estética e filosófica de nosso choque de incivilidades”. O psicanalista paulista ainda aborda o caldo do medo na malha social brasileira: “Educar pelas armas e cristianizar pela violência são estratégias pelas quais o tosco explora o sentimento ontológico de insegurança.
No exame do fascismo em suas metamorfoses brasileiras mais recentes, renovando nossos laboratórios da brutalização, Vladimir Safatle[13] demarca o medo como afeto político central e a indistinção entre ordem e desordem típica do estado de exceção, enfatizando o Brasil como acima de tudo uma forma de violência[14]. Se o fascismo precisa de culto à violência, volta do Estado-nação em sua versão paranoica, a insensibilidade mórbida em relação à agressão das classes subalternas, a derrubada da força popular na garantia dos fora da lei, o Brasil do colapso da Nova República encarnado na eleição de Bolsonaro atualiza para mais exatamente o medo, a paranoia, a insensibilidade, a reificação, o extermínio dos vulneráveis, a confusão, a apatia, a alienação, o mal.
Adubado no ódio e em toda a soma de recalques, notadamente os sexuais, assistimos todos à normalização do mal, que pode ser a desobrigação da cadeirinha de bebês nos carros ou a internação psiquiátrica compulsória, a recomendação aos pais para rasgarem na caderneta de vacinação as informações sobre educação sexual ou a comemoração do Golpe de 1964 com a publicização de um vídeo negacionista brutal e cínico. Todos são inimigos num estado de exceção cada vez menos constrangido, que tem nos espaços da hegemonia suportes da barbarização diuturna, menos ou mais silenciadas. Dentre estes lugares podemos enumerar o judiciário, a burocracia, os think tanks, a velha mídia e seus caminhos de datenização, as novas milícias digitais, as bancadas-parlamento, as religiões-empresa.
Se no filme de Lanthimos o sacrifício de uma criança para o acerto revanchista da morte não acompanha, em grande parte do longa, reações emocionais à altura daquele drama, no Brasil garantidor dos projetos milicianos e fundamentalistas cristãos, legitimadores do tánato-poder, parece não haver a organização mínima da melancolia política, da dor da derrota como fecunda força política[15]. Estas perdas foram elevadas a um novo patamar com as indefinições definidas sobre a execução de Marielle, o exílio de militantes e parlamentares de esquerda, a confirmação do conluio da alta casta da lei, na figura do carcamano Moro, a fim de impedir a eleição de Lula e garantir a kafkiana coerção jurídica que deu o tom da operação Lava-Jato.
Chauvinistas de Twitter e pseudo filósofos têm erigido discursos fascistas que a despeito dos limites têm conferido sentidos para o desespero da hora (perder o emprego, perder a esperança, perder-se uns dos outros), permitindo fácil deglutição nos almoços de domingo dos desgostosos cidadãos-médios, elaborando um rol de inimigos sempre próximos daqueles que estrangulam mulheres na Avenida Paulista e se orgulham do salvo-conduto para a estupidez que mata. Como portadoras da morte da crítica, tais narrativas do cinismo enquadram memórias e possibilidades solidárias na crise, direcionam sentimentos de dor, substanciando um tempo alienante que se generaliza reivindicando a exceção enquanto condição, antessala da fascistização.
O uso de bolsonarização/bolsonarismo[16] tem crescido nos últimos meses pela necessidade de um termo à mão, mas também como expressão de uma precocidade – comparemos com o início do uso de lulismo e, sobretudo, sua generalização – aliada a uma categoria alçada à posição muitas vezes de chave-mestra, distanciando, ainda que não excluindo, a noção de fascismo atualizado, o que pode receber a alcunha de neofascismo ou protofascismo ou outros. Mais uma vez lembramos Safatle planteando o resgate da noção de fascismo enquanto trilha inadiável em tempos de Bolsonaro, momento em que o populismo é retomado sob a forma de palavra mágica que opõe um populismo de esquerda a um populismo de direita, realizando um jogo de soma zero anulador da crítica de nossos limites sociais e institucionais:
Há o medo de certas palavras. Esse medo vem na maneira com que tentamos, até o limite, não utilizá-las. Porque seu uso acende alertas vermelhos, nos quebra a letargia de sentir que, por mais que nossa situação atual seja complicada, a vida corre. E corre com um correr de quem acaba por acertar seu passo, abaixar os gritos. Bem, não há palavra que nos leve mais a temer seu uso do que “fascismo”. No entanto, é ela que se ouve de forma cada vez mais insistente quando se é questão da situação brasileira atual[17].
Benjamin e a experiência fascista
Ser feliz é poder tomar consciência de si sem levar um susto.
[Walter Benjamin, Rua de mão única]
Walter Benjamin abordou o processo moderno de inflação da Erlebnis – uma experiência efêmera, fragmentada e sem vínculos com o passado – concomitante à corrosão da Erfahrung[18] – formas de experiência prenhes de sentido, mais plenas, fixadas e marcadas pela memória – sem tratá-las como um jogo de soma zero onde mais experiência é necessariamente menos vivência. Em nossa interpretação, no interregno (não hiato ou vazio, mas durante, concomitante), no processo histórico e por isso dinâmico de desvalorização da experiência e de mais volume do signo da vivência há terra fértil, em condições históricas específicas, para uma experiência fascista, capaz de misturar passado e presente, isolamento e coletividade, comumente sob a forma do militarismo, pedaços e unidade, principalmente quando a desumanização se acelera tragicamente. O crítico alemão trata do vínculo entre experiência e sentido quando afirma que “a experiência é carente de sentido e espírito apenas para aquele já desprovido de espírito”[19].
Para nós o fascismo, se não fosse experiência não atingiria e mobilizaria modos de subjetivação vários, como o do desempregado que busca um bode expiatório para sua situação; o do desajustado socialmente que almeja ser aceito por algum grupo; o do “odiador”, os haters da atualidade, geralmente escondidos no mundo virtual, mas ansiando por colocar suas pulsões nas ruas e nas telas; o dos oprimidos e desamparados que de maneira comumente inconsciente demandam um Clube da Luta[20] onde possam extrapolar suas energias; o dos sujeitos fascistas que passam a exigir um Estado que endosse sua agressão e seja ele mesmo seu exercício; o da classe burguesa e suas frações, seus preconceitos e seus privilégios, caminhantes das veredas antidemocráticas desde há muito. O medo como afeto burila experiências que, no limite, encorpam sentidos e práticas fascistas, lembrando que o fascismo é capitalismo em sua veste mais autoritária.
O Brasil de Bolsonaro, Moro, Damares e Guedes é um país que já não estranha o medo há muito, tornando-o capital político e diapasão entre e intra classes e aperfeiçoando um habitus que é encontrar justificativas estapafúrdias e cínicas, porque todas elas são, para a tortura, a execução de negras e negros pobres, a expulsão dos indesejáveis de seus locais de moradia, o fim das aposentadorias, o estupro de quem merece, metralhar adversários, esterilizar quilombolas, uberizar o trabalho, condenar o aborto em todos os casos, armar o professor a fim de se evitar massacres em escolas (e nunca matamos tanto nos espaços de saber), prender mais gente, internar mais gente, corroer mais gente.
O fascismo encarna uma temporalidade que age, sob condicionantes políticos e sociais, entre a corrosão da Erfahrung, autêntica experiência, e a profusão da Erlebnis, a vivência imediata, um tempo ligado ao capitalismo, ao continuum da História, à uma modernidade do atraso, ao vazio e à homogeneidade, à brutalização. Essa temporalidade fascista pode ser exatamente aquilo que confere o caráter de experiência à emergência (começo, protofascismo) do fenômeno do fascismo. Então talvez esta cola entre temporalidade e o movimento duplo de crise de um tipo de experiência (Erfahrung) e de reforço de outro (Erlebnis) confira ao fascismo seu caráter histórico. Dizendo de outra forma é da junção heterogênea entre um tempo específico, que não são apenas os anos 1920 – o tempo fascista, do progresso, dos vencedores, da guerra –, com os resultados da equação experiência decadente/experiência ascendente – a potencial experiência fascista dos contextos de crise, que se cria condições para que o fascismo como tempo-ação e patologia social surja.
O pós Junho tem fortes marcas, em meio à crise do pacto social lulista, do avanço de pautas neoconservadoras de direita, da oxidação de instituições políticas, do crescimento da coerção jurídica, da anomia social, de um interlúdio da experiência, onde vivências antidemocráticas suplantam experiências solidárias da alteridade, sem constrangimentos na assunção de fascismos à brasileira – em brevíssimas linhas, o ódio ao pobre e a necropolítica[21] dos trópicos. Não tratamos o fascismo como etapa ou lugar de chegada, mas sim uma temporalidade sempre presente (fascistização) onde o capitalismo é mais brutal.
Lembrando Robert Paxton, o elemento normalidade deve ser considerado sempre ao se pensar no fascismo hoje, ou seja, se ele ainda é presente isso se deve aos “movimentos de extrema-direita que aprenderam a moderar sua linguagem, a abandonar o simbolismo do fascismo clássico e a parecerem ‘normais’”[22]. Sendo política e cultura o fascismo é também tempo, concepção de História. Não é mera coincidência que uma das frentes basilares do governo de Bolsonaro é a destruição das memórias críticas do regime civil-militar de 1964, bem como de todas as experiências do horror que o Brasil construiu, aquelas que nos colocam encabeçando rankings de encarceramento, desmatamento, assassinatos de grupos vulneráveis, destruição da saúde e educação públicas, judicialização da vida social, superexploração do trabalho. A patologia da normalidade[23] deve ser levada cada vez mais a sério quando em sociedades como a nossa, de catastróficas medianas.
Primo Levi[24] e a sentença de que cada época tem seu fascismo dialoga com as miradas de Eco, Ianni e Konder, atentos não a modelos fechados de fenômenos sociais, mas aos sintomas, às iminências identificadas muitas vezes tardiamente custando sacrifícios imensuráveis à memória e à democracia.
Notas
[1] REBUÁ, Eduardo. “Fantasmagoria e susto“. Le Monde Diplomatique Brasil (internet), setembro de 2018; REBUÁ, Eduardo. Dossiê Walter Benjamin. Revista Cult. Ano 22, nº 245 (maio), 2019b.
[2] REBUÁ, Eduardo. “Fascistização no Brasil do tempo-de-agora”. Le Monde Diplomatique Brasil(versão impressa), 2019a, ano 12, número 138, p. 22-23.
[3] SPAGNOLO, Carlos. “Fascismo”. In: LIGUORI, Guido; VOZA, Pasquale (orgs.). Dicionário Gramsciano (1926-1937). São Paulo: Boitempo, 2017. p. 283-287.
[4] SEMERARO, Giovanni. “La restaurazione in Brasile: um fascismo neoliberista”. Critica Marxista, gennaio-febbraio 2019, Ediesse, Roma, p. 26-34.
[5] KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1977.
[6] ECO, Umberto. O fascismo eterno. Rio de Janeiro: Record, 2019.
[7] IANNI, Octavio. Nazi-fascismo. In: Capitalismo, violência e terrorismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. p. 330-345.
[8] NOBRE, Marcos. “O caos como método”. Revista Piauí, n. 151, abril de 2019, p. 30-33.
[9] ECO (2019). Op. Cit. p. 39.
[10] DUNKER, Christian; SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson (orgs.). Patologias do social: arqueologia do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
[11] DUNKER, Christian. “Ensaio sobre o ‘Tosco Brasileiro’ na Filosofia e nas Artes“. Arte brasileiros, maio de 2019.
[12] DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.
[13] SAFATLE, Vladimir. “O que é fascismo?” Revista Cult, outubro de 2018.
[14] SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017.
[15] TRAVERSO, Enzo. Melancolia de esquerda: marxismo, história e memória. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.
[16] ALONSO, Angela. “A comunidade moral bolsonarista”. In: Democracia em Risco: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 52-70; DUNKER, Christian. “Psicologia das massas digitais e análise do sujeito democrático”. In: Democracia em Risco: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 116-135; NICOLAU, Jairo. “O triunfo do bolsonarismo: como os eleitores criaram o maior partido de extrema-direita da história do país”. Revista Piauí, edição 146, novembro de 2018; PINHEIRO-MACHADO, Rosana; FREIXO, Adriano de. Brasil em transe: bolsonarismo, nova direita e desdemocratização. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2019; SOLANO, Esther. “A bolsonarização do Brasil”. In: Democracia em Risco: 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 307-321.
[17] SAFATLE, Vladimir. “Falar de fascismo no Brasil“. El País, julho de 2019.
[18] BENJAMIN, Walter. “Experiência e pobreza”. In: O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. p. 83-90; BENJAMIN, Walter. “Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire”. In: Baudelaire e a modernidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. p. 103-149; BENJAMIN, Walter. “O contador de histórias: reflexões sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Linguagem, tradução, literatura (filosofia, teoria e crítica). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. p. 139-166.
[19] BENJAMIN, Walter. Ensaios reunidos: escritos sobre Goethe. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2009. p. 23.
[20] Referência ao paradigmático filme de David Fincher, Fight Club (1999, 151min, EUA), baseado no romance homônimo de Chuck Palahniuk (1996) e estrelado por Edward Norton e Brad Pitt.
[21] MBEMBE, Achille. “Necropolítica”. In: Arte & Ensaios, n. 32, dezembro 2016, p. 122-151.
[22] PAXTON, Robert. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007. p. 334-335.
[23] FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.
[24] LEVI, Primo. A assimetria e a vida: artigos e ensaios 1955-1987. São Paulo: Editora Unesp, 2016.
Referências
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*Carlos Eduardo Rebuá é professor adjunto de Educação na Universidade Federal da Paraíba [UFPB]. Professor adjunto credenciado do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense [PPGE-UFF], na linha de Filosofia, Estética e Sociedade. Doutor em Educação pela UFF. Mestre em Educação pela UERJ. Bacharel e licenciado em História pela UFF. Coordenador do Observatório de História, Educação e Cultura da UFPB [HECO – CNPq]. Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação [Nufipe-UFF].
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