Contra o “Future-se”, novo tsunami da educação

Depois da Previdência, tecnocracia ultraliberal de Bolsonaro mira nas universidades públicas: quer fazê-las reféns da filantropia interesseira do capital. Mas agosto promete: entidades, professores e estudantes já articulam resposta nas ruas

por Paulo Kliass, em Outras Palavras

O governo do capitão não poderia ter sido mais criativo na hora de arranjar um nome para o programa que está sendo apresentado como a panaceia para solucionar todos os problemas das universidades públicas brasileiras. Ao que tudo indica, a intenção dos tecnocratas de alto escalão encastelados no interior do Ministério da Educação era mesmo “causar”. Talvez um pouco inspirados na destrambelhada estratégia do Superministro Paulo Guedes, quando apresentou a proposta inicial de Reforma da Previdência no início do ano. Naquele caso, a taxa de maldades por página era de tal ordem que o texto votado em primeiro turno pela Câmara dos Deputados havia sido expressivamente desidratado.

O programa “Future-se” foi sendo plantado aos poucos para alguns responsáveis de confiança nos meios de comunicação, sempre na via privilegiada da informação em off. No entanto, ninguém tinha acesso efetivo à integra dos materiais. O clima de expectativa foi sendo acalentado, mas os documentos secretos seguiam desconhecidos dos reles mortais. Afinal, esse conjunto deveria de fazer referência a emendas à Constituição, a projetos de lei complementar, a minutas de alteração em leis ordinárias e até mesmo a portarias e decretos de responsabilidade do Ministro da área.

O calendário definido pelos dirigentes da pasta não poderia ter sido mais apropriado. Escolheram a semana em que estava sendo realizado o 57º Congresso da UNE para plantar a notícia. O resultado foi uma ampla maré de indignação que se formou desde então. Os estudantes incluíram a denúncia da intenção de Weintraub & Associados na extensa pauta em defesa da educação pública. Com isso, foi reforçada a ampliação do número de entidades e associações na jornada nacional de luta em 13 de agosto. A nova direção da entidade, presidida por Iago Montalvão, já conclamou a sociedade brasileira a se somar a todos no verdadeiro tsunami pela educação. Como a votação do segundo turno da Reforma da Previdência na Câmara dos Deputados está marcada para o dia 6 de agosto, imagina-se que o mês considerado como de “cachorro louco” na sabedoria popular promete ser mesmo emocionante.

Os riscos de destruição

O programa do Ministério da Educação se mantém em absoluta sintonia com as demais medidas de desmonte e destruição de políticas públicas que vem sendo praticadas desde o impedimento de Dilma Rousseff. Os tecnocratas encarregados de sua elaboração e implementação são da mesma fornada dos que vem implodindo o Estado brasileiro a partir de seu interior. Em muitos casos são servidores públicos que estão à frente de órgãos estratégicos do governo federal desde antes do início do austericídio. Continuaram com o segundo mandato de Dilma, atravessaram Temer e estão agora com Bolsonaro. Não importa a cor do gato, o importante é que ele tenha capacidade de caçar o rato. Parece que pegaram a conhecida frase do líder comunista chinês, Deng Xiao Ping, como guia de orientação. O verdadeiro intuito seria o de acabar com as capacidades estatais em nosso País. E para isso vale qualquer coisa.

Assim fizeram com o terrorismo criado em torno da necessidade de austeridade fiscal extrema desde 2015. Assim foi feito com a Emenda 95, que congelou os gastos orçamentários por 20 anos. Assim tentaram fazer com o arremedo de reforma previdenciária de Temer, que felizmente não avançou. Assim fizeram com os comitês draconianos de corte de gastos espalhados por toda a Esplanada, cuja missão precípua era cortar despesas essenciais para liberar recursos para o superávit primário. Assim fizeram com a destruição das políticas de assistência social, saúde, previdência social e tantas outras, com a identificação do “verdadeiro responsável” pela crise fiscal: o pobre usuário do benefício criado pela política pública.

A apresentação oficial do programa foi um quadro de tragicomédia. Ministro e Secretário apresentando o produto de sua criatividade como se estivessem vendendo novas marcas de xampu para cabelo ou sabão para lavar roupas. Eficiência, empreendedorismo e lucro foram os termos mais ouvidos no evento. “O professor universitário poderá ser muito rico. Vai ser a melhor profissão do Brasil”, chegou a afirmar o responsável pelo ensino superior em nosso País em um lampejo de indisfarçável entusiasmo e demagogia.

Tecnocracia ultraliberal a serviço do capital

Esse é o mesmo comportamento dos que passam a tesoura horizontal nas verbas da saúde, apenas para cumprir metas burocráticas estabelecidas. F*#*-se se há pessoas doentes na outra ponta que deixarão de ser assistidas por essa medida. São os mesmos que passam a tesoura horizontal nas despesas previdenciárias, sem que haja nenhum critério objetivo. F*#*-se se isso implica que deficientes e idosos devam se apresentar em condições terríveis nas agências do INSS – vale tudo para pegar o privilegiado e o impostor. São os mesmos que morrem de ódio de direitos básicos como abono salarial, salário desemprego e auxílio doença, sugerindo sempre que os mesmos sejam extintos. F*#*-se se isso implica em tragédia pessoal e familiar para dezenas de milhões de trabalhadores que recebem salários de fome ou questão desempregados.

Pois agora uma parte dessa tecnocracia se colocou como missão destruir a estrutura universitária pública, que vem sendo construída há décadas com muito projeto, esforço e recursos federais. A estratégia malandra sempre aparece em momento de crise. Como as administrações das universidades e institutos federais estão com seus orçamentos à míngua, os problemas de gestão são mesmo enormes. E então, magicamente, eis que surge a proposta redentora. Tchan, tchan, tchan! As universidades agora estarão “livres” para passar o pires junto ao grande capital privado. Bancos, grandes corporações e grupos multinacionais poderão oferecer seus recursos diretamente para o custeio das instituições de ensino superior. Uma loucura!

Mas atenção! Os mesmos tecnocratas que estão patrocinando a venda das empresas estatais federais nos garantem que no caso do “Future-se” não se trata de privatização. Ufa! – suspiramos todos aliviados com tamanho anúncio tranquilizador. A partir de agora, o grande capital privado passou a ser imbuído do dom da filantropia e vai servir de forma neutra e isenta aos interesses maiores da grande maioria da população brasileira. Eles passarão a se comportar exatamente como deve ser feito pelo Estado: vão destinar recursos a fundo perdido para educação, ciência, tecnologia e inovação sem nenhuma exigência de contrapartida desse gesto benemérito e generoso. A comunidade, emocionada, agradece e chora.

Vaias na SBPC

O impacto da medida, porém, parece ter ultrapassado o limite do imaginado pelos responsáveis. A reação da comunidade científica tem sido bastante dura e contra as intenções dos dragões da maldade em sua dimensão universitária. Em atitude inédita, o ministro evitou participar da abertura da reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Com isso as vaias todas foram direcionadas ao seu representante no evento, o Secretário de Ensino Superior.

A grande maioria das entidades representativas da comunidade universitária e científica também já se manifestou contra a medida. Documentos e manifestos assinados por UNE, UBES, ANDES, FASUBRA e outras estão circulando por todo o território nacional. A reação parece estar um tom acima do imaginado pelos estrategistas da destruição.

Por essas e por outras, o governo acabou recuando um pouco do ímpeto inicial. O grande estardalhaço de mudança estrutural imediata acabou cedendo lugar à divulgação das intenções do desmonte para serem submetidas a uma consulta pública na página do Ministério na internet. Todos nós sabemos que se trata apenas de um recuo estratégico, pois esse governo nunca apresentou a menor preocupação em ouvir as partes interessadas em políticas públicas ou em construir consensos.

O material em consulta é bem menos ambicioso do que a alardeada intenção inicial. O que se encontra ali é um único projeto de lei ordinária, mas que promove alterações em 17 leis existentes e que tratam de matéria educacional. As antenas de preocupação emitem sinais de alerta em tonalidade vermelha. Muito perigo à frente! Risco de destruição iminente logo após a curva à direita!

Consulta pública em modo Bolsonaro

O foco principal é a mudança sutil – mas muito perigosa – no estatuto jurídico das instituições federais de ensino. A administração das mesmas ficaria a cargo de uma organização social criada em cada uma delas com esse fim. Esse é o modelo vigente na área da saúde, inclusive com o uso da EBSERH (malfadada experiência, por meio de uma empresa criada na gestão Dilma Rousseff para cuidar da administração de recursos humanos dos hospitais universitários em todo o país). Com isso, as universidades ficarão livres das amarras das regras de licitação ou de contratação de pessoal. Professores serão chamados em concursos e seus salários não obedecerão às regras do serviço público. As pesquisas serão financiadas pelo capital privado.

Ocorre que ensino universitário e pesquisa não podem ser tratados como mercadorias a exemplo de banana, tomate ou abacaxi. Trata-se de um sistema que envolve necessariamente a presença do Estado, uma vez que os recursos investidos não apresentam o retorno esperado pelo investidor privado. A carreira de professor não é para tornar seus integrantes “muito ricos”, como pretende o nada ingênuo responsável pelo programa. Por isso o programa já vem ganhando apelidos criativos, como “fature-se” ou literalmente “f*#*-se”. Seja por demonstrar o lado privatizante do modelo proposto (só medido em $$$) ou o lado de despreocupação total do governo do capitão para com o ensino superior.

O único caminho para evitar mais essa tentativa de desastre é a ampliação da denúncia e a incorporação de amplos setores da sociedade em torno dos estudantes e da comunidade científica na defesa da educação pública e de qualidade. E isso significa um gigantesco NÃO ao “Future-se”.

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