O desespero que leva à esperança

Wolfgang Streeck alertou: depois da crise de 2008, o capitalismo desiste de criar ilusões de justiça social. Surgem Trumps e Bolsonaros com a missão de implantar a “ditadura do mercado”. Recuperar a democracia exige novas estratégias das esquerdas

por Almir Felitte, em Outras Palavras

Os últimos tempos, no Brasil, foram tão recheados de absurdos políticos que, por vezes, até custa pensar que o novo Governo está aí há pouco mais de um semestre apenas. Aliás, desde o golpe de 2016, a sensação que fica é a de que a elite brasileira e toda a sua máquina direitista passaram um verdadeiro rolo compressor sobre a oposição e o próprio povo brasileiro. Motivos mais do que suficientes para essa mesma oposição já ter percebido o sinal claro de que não há mais espaços para conciliações.

Mas se Bolsonaro é o rosto dessa constatação, é preciso ser dito que esse inconciliável capitalismo já tinha dado seu aviso pouco mais de dois anos antes de Jair assumir. Aliás, é possível ir além e cravar como marco inicial do fim desse grande pacto de classes a nomeação de Levy para a Fazenda, ainda no Governo Dilma. Afinal, foi o discurso de ajuste de Levy que sentenciou: a partir dali, a culpa da crise era a “gastadora” rede de proteção social brasileira, e a conta da crise seria paga pelos pobres.

Porém, colocar a austeridade da cartilha liberal no centro do debate econômico não era o suficiente para a elite brasileira. Num jogo de interesses imperialistas e de uma burguesia brasileira tacanha, era necessário que Dilma caísse e que o maior partido de esquerda do país, apesar de todas as concessões liberais, afundasse. Assim, rasgou-se de vez o livro de regras do Estado Democrático de Direito brasileiro, numa correlação de forças tão desigual entre campos populares e elites, que até mesmo um fraco como Temer pôde ocupar tranquilamente o lugar de representante do rolo compressor capitalista brasileiro. Com STF, com tudo…

Já com Temer, o fim da conciliação de classes saiu do discurso para virar prática. Em sua dobradinha com Maia, Presidente do Congresso, a cartilha liberal se tornou programa integral de Governo. A terceirização irrestrita e a Reforma Trabalhista eram a “pena” imposta ao trabalhador, culpado de “carregar direitos demais” e “atravancar nossa economia”. Foram-se os direitos e, vejam só, foi-se também nossa economia. O desemprego seguiu galopante, a renda média estagnou e o PIB, depois de mais um ano de recessão, se consolidou “PIBinho”.

Mas no Brasil do fim da conciliação, o estelionato político não pararia por aí. Se tirar direitos trabalhistas não funcionou, a cartilha liberal já tinha a mais nova “brilhante ideia”: apelidado mais do que corretamente de “PEC do Fim do Mundo”, o Teto de Gastos veio para fazer terra arrasada na já arrasada terra brasileira. Afinal, para a cartilha liberal, era preciso cortar na carne da rede de proteção social brasileira para o país voltar a crescer.

Cortar na carne das polpudas desonerações, que passariam dos R$ 400 bi em 2017 sem sequer se autojustificar com criação de empregos ou crescimento, era impensável. Pautar uma reforma tributária que arrecadasse mais sobre os privilegiados ricos num dos países mais desiguais do mundo sequer era assunto. O liberalismo brasileiro já tinha seus culpados, sem direito de apelação: a classe trabalhadora.

E é claro que um projeto de fim da conciliação brasileira não pararia aí. Ao contrário, ganharia requintes de crueldade. Foi o que aconteceu quando as elites brasileiras escolheram seu “poste” sem papas na língua para vencer uma eleição onde o candidato favorito, do campo das esquerdas (conciliadoras, é verdade), fora preso ilegalmente para não concorrer. Marcado por frases como “o trabalhador tem que escolher entre ter direitos ou ter emprego” e por ameaças de fuzilamento à oposição, Bolsonaro já era, desde a campanha, o símbolo completo do fim da política de conciliações brasileira. Nesse quesito, aliás, seu Governo não vem decepcionando.

Em abril, por exemplo, na canetada (como de costume), Bolsonaro decidiu extinguir todos os Conselhos de participação popular do país, ação que acabou sendo travada na justiça. Sem sucesso, o Presidente resolveu parcelar a morte da já pouca participação direta do povo na política, cortando nomes da sociedade civil em Conselhos ligados ao meio ambiente, à política de drogas e ao cinema, mantendo-os puramente governistas.

Críticas a órgãos públicos que divulgam dados comprometedores de seu Governo também vêm sendo comuns, ao mesmo tempo em que órgãos com caráter de fiscalização, controle e regulação, como o IBAMA ou Agências Reguladoras, são gradualmente aparelhados e destruídos por dentro, abrindo espaço para uma verdadeira “Ditadura do Mercado” no país.

Nesse rolo compressor bolsonariano, projetos de lei que beiram o absurdo também circulam desavergonhadamente pelo país. Uma carteira de trabalho verde e amarela, com ainda menos direitos trabalhistas, mostra que o mercado já percebeu que o Brasil “virou passeio”. Uma espécie de hipoteca em que os bancos ficam com a sua casa depois da sua morte já é goleada. E lá vem eles de novo com a Reforma da Previdência…

Se engana, porém, quem pensa que essa distopia capitalista é exclusividade brasileira. O fim das políticas conciliatórias é um movimento global de um capitalismo liberal capenga que ultrapassou todos os limites do absurdo em sua grande farra rentista.

Wolfgang Streeck, numa análise global sobre o capitalismo desde o pós-Guerra, constata que, no mundo inteiro, a crise de 2008 teria sentenciado o fim da capacidade do capitalismo liberal de “comprar tempo”, ou seja, de conceder migalhas à classe trabalhadora para garantir uma conciliação que mantivesse o sistema de privilégios das elites capitalistas. Com o fim dessa capacidade, somente a ruptura entre capitalismo e democracia poderia ser capaz de manter essa elite no poder, o que pode ser visto com clareza na ascensão de forças de extrema-direita mundo afora, de Orbán na Hungria a Bolsonaro no Brasil.

Streeck escreveu: “se o capitalismo do Estado de consolidação já nem sequer consegue criar a ilusão de um crescimento distribuído de acordo com a justiça social, então chegou o momento em que os caminhos do capitalismo e da democracia têm de separar-se. A saída mais provável, atualmente, seria a operacionalização do modelo social hayekiano da ditadura de uma economia de mercado capitalista acima de qualquer correção democrática”.

Apesar de estarmos vendo essa saída mais provável avançando, Streeck não deixa de levantar uma outra possibilidade positiva: “a alternativa a um capitalismo sem democracia seria uma democracia sem capitalismo”, escreve o autor. Mas, em tempos tão difíceis de um capitalismo desavergonhado, será que poderíamos acreditar nessa possibilidade?

Bem, talvez Marx tenha nos dado o tom que precisamos quando escreveu, há mais de um século, o seguinte: “a situação desesperadora da época na qual vivo me enche de esperança”. Que o desespero da nossa atual situação abra os olhos da esquerda brasileira para o fim da conciliação e nos dê capacidade de reagir.

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