Artigo mostra que “é uma ilusão perigosa pensar que podemos resolver o problema da fome no mundo aumentando a produção mundial baseada na implantação da agricultura industrial”
Por Timothy A. Wise*, em IHU/Unisinos / MST
Pelo terceiro ano consecutivo, diversas agências da Organização das Nações Unidas documentaram níveis crescentes de fome severa no mundo, afetando 820 milhões de pessoas. Mais de 2 bilhões sofrem de insegurança alimentar “moderada ou severa”. Durante o mesmo período, o mundo vem experimentando o que a Reuters denominou como uma “superabundância global de cereais”, com produtos agrícolas excedentes amontoados fora dos silos de grãos e apodrecendo por falta de compradores. Vê-se que o aumento das safras de grãos não reduz a fome global.
Apesar disso, não passa um dia sem que algum dirigente acadêmico, industrial ou político se una ao coro malthusiano para advertir sobre a iminência de fenômenos de escassez de alimentos causados pelo crescimento populacional e pela limitação dos recursos naturais. Por exemplo, Richard Linton, decano da Faculdade de Agricultura e Ciências da Vida da Universidade Estadual da Carolina do Norte, fez soar o alarme com palavras que nos são familiares: “Temos de encontrar uma maneira de alimentar o mundo, dobrando o suprimento de alimentos”, disse ele. “E todos nós sabemos o que acontecerá se não produzirmos comida suficiente: será guerra, competição”.
“Como vamos alimentar o mundo?”, exclama o pregador. “Aumentar nossa abundância”, responde o coro. Há muito equívoco nesta resposta. E mesmo na pergunta, que é profundamente arrogante. Como vamos alimentar o mundo? Sabemos a que nos referimos com essa pergunta: os países ricos, com sementes de alto rendimento e uma agricultura em escala industrial. Os Estados Unidos pensam que estão alimentando o mundo atualmente. Mas, não é correto.
Mais de 70% dos alimentos consumidos nos países em desenvolvimento, onde a fome é endêmica, são cultivados, em sua maior parte, por pequenos agricultores. Esses agricultores são os principais fornecedores de alimentos. E utilizam apenas 30% dos recursos agrícolas para isso (o que implica que a agricultura industrial utiliza 70% dos recursos para alimentar 30% da população). Lá fora não há nenhum mundo que aguarda, de braços cruzados, que seja alimentado. A maioria das pessoas que passam fome são pequenos agricultores ou pessoas que vivem em comunidades rurais. Não esperam que repartam alimentos com eles. Tentam ativamente – e muitas vezes desesperadamente – alimentar suas famílias e suas comunidades.
No entanto, o mundo já produz mais que o suficiente para alimentar 10 bilhões de pessoas, ou seja, cerca de 3 bilhões a mais do que somos atualmente. Por que continuamos a fazer as coisas de forma errada, acreditando que a produção de mais produtos agrícolas acabará com a fome? O economista indiano Amartya Sen ganhou seu Prêmio Nobel por demonstrar que a fome raramente é causada pela escassez de alimentos. Frances Moore Lappé nos mostrou, há quase 50 anos, em sua obra seminal ‘Dieta para um pequeno planeta’, que a fome não é causada pela escassez de alimentos. A fome é causada pela falta de poder dos produtores de alimentos e pessoas pobres. Poder sobre a terra, a água e outros recursos naturais que permitem a produção de alimentos. E poder para obter uma renda que permita que as pessoas adquiram a comida que precisam.
A ilusão de que alimentamos o mundo reside em lugares como Iowa, um território coberto de ponta a ponta por cultivos de grãos e soja, em um sistema concebido para ocupar até o último hectare de solo incomparavelmente fértil. Mas, é difícil encontrar evidências confiáveis de que a prolífica produção de Iowa esteja alimentando todas as pessoas famintas no mundo em desenvolvimento. Iowa alimenta principalmente porcos, galinhas, a indústria da comida lixo e de automóveis. Metade do nosso grão é usado para a produção de etanol e 30% do óleo de soja é usado agora para fabricar biocombustível. As pessoas pobres do mundo não podem se permitir comer carne, nem dirigir um carro. A comida lixo é a última coisa que precisam.
Exportamos cerca de metade de nossa soja e 15% de nossos grãos, mas nem mesmo essas quantidades servem para alimentar os famintos, porque são usados principalmente como forragem, especialmente para porcos, principalmente na China, o principal país produtor de suínos no mundo. Mas, os pobres não comem essa carne, mas, sim, principalmente a crescente classe média do país que a consome. Na melhor das hipóteses, a prodigiosa produção de grãos e soja de Iowa contribui para reduzir um pouco o preço dos alimentos nas classes médias emergentes do mundo em desenvolvimento. Mas, é uma ilusão dizer que Iowa alimenta pessoas famintas.
E é uma ilusão perigosa pensar que podemos resolver o problema da fome no mundo aumentando a produção mundial baseada na implantação da agricultura industrial. Perigosa porque a forma como esses alimentos são cultivados em fazendas de monocultura, com uso intensivo de produtos químicos, está literalmente destruindo a base de recursos – solo, água, clima – da qual depende a futura produção de alimentos. Voltemos a Iowa: este Estado perdeu metade da camada superficial do solo devido à erosão, consequência do excessivo cultivo em linhas, usando máquinas pesadas. Na última década, foram cultivados mais de 200.000 hectares de terras novas de reserva, já que os agricultores se dedicaram a plantar até na margem dos rios, procurando fazer um bom negócio graças aos altos preços dos grãos destinados à produção de etanol. O solo é um recurso renovável, mas somente se for cultivado de maneira a protegê-lo e renová-lo.
Iowa também não consegue renovar o outro recurso renovável que é a água. A agricultura desse Estado é de sequeiro, mas a água é bombeada dos aquíferos de Jordán e Dakota, com fluxos que impedem que voltem a se encher. São necessários 19 litros de água por dia para criar um porco, com 20 milhões de porcos, isso soma mais de 139 bilhões de litros de água por ano. São necessários 11 litros de água para destilar 4 litros de etanol do grão, isso equivale a mais de 45 bilhões de litros por ano. Se a produção de etanol e carne aumentar na taxa esperada, esses grandes aquíferos acabarão secando.
Ao mesmo tempo, o uso excessivo de produtos químicos necessários para grãos e soja contamina a água potável e destrói os habitats de espécies que a agricultura precisa para cultivar alimentos. Um recente relatório da Organização das Nações Unidas adverte sobre extinções em massa, enquanto outro estudo documenta o “apocalipse dos insetos”, que inclui a perda de polinizadores cruciais para os cultivos. Todas as áreas da agricultura de Iowa estão envolvidas na mudança climática e, por sua vez, são ameaçadas por ela. A agricultura industrial é uma emissora importante de gases do efeito estufa: os excessivos fertilizantes lançados nos campos de cereais de Iowa emitem nuvens de óxido nítrico, que é mais potente que o dióxido de carbono. As fazendas industriais deste Estado também contribuem quando se despejam as purinas concentradas nos campos dos agricultores.
A mudança climática torna as práticas agrícolas atuais extremamente destrutivas. Os modelos da NASA para Iowa preveem uma alta probabilidade de tempestades mais intensas, como o ciclone recente, inundações frequentes e uma crescente ameaça de secas prolongadas. Um estudo da Universidade de Minnesota estima que, em 2075, a produção de grãos de Iowa será 20 a 50% menor do que hoje.
Não é um sistema que funcione bem, e se estamos preocupados com a disponibilidade global de alimentos, nós, nos países ricos, deveríamos deixar de apostar na agricultura industrial e adotar imediatamente duas medidas simples: primeiro, reduzir o desperdício de alimentos, que descarta um terço ou mais dos alimentos produzidos em todo o mundo. Segundo, deixar de destinar cultivos e terras para a produção de biocombustível. Enquanto isso, vamos parar de alimentar a ilusão de que o aumento na produção de produtos agrícolas estadunidense ajudará a reduzir a fome no mundo.
* Timothy A. Wise, diretor do Programa de Direitos Alimentares e da Terra no Small Planet Institute de Cambridge, Massachusetts (Estados Unidos), em artigo publicado por Viento Sur, 29-07-2019. A tradução é do Cepat.