Grupo Corpo: “Apesar do momento preocupante, o espetáculo é luminoso, colorido. Também somos isso, e não podemos perder essa luz”

Por Iara Biderman, da Folhapress, no GaúchaZH

BELO HORIZONTE, MG – Com a bênção de Xangô, música de Gilberto Gil e coreografia de Rodrigo Pederneiras, o Grupo Corpo estreia nesta semana sua nova obra na abertura da temporada de dança do teatro Alfa, em São Paulo.

Isso numa época bastante difícil para a dança, as artes, a cultura e as tradições afro-brasileiras. “Apesar do momento preocupante, o espetáculo é luminoso, colorido. Tão Brasil e para cima. Tão Gil. Também somos isso, e não podemos perder essa luz”, diz Pederneiras.

Na dança-homenagem ao músico criador da trilha, um tapete amarelo se estende do alto do palco até o proscênio, no cenário criado por Paulo Pederneiras, o diretor artístico do Corpo. É uma espécie de fundo infinito solar, onde os bailarinos dançam o jeito tão brasileiro e tão contemporâneo que caracteriza o trabalho da companhia e também o do compositor que inspira todo o novo espetáculo.

No decorrer da apresentação, músicas famosas de Gil vão sendo reconhecidas pelo público aos poucos. As lembranças musicais foram encaixadas na trilha original de forma completamente nova, como o medley de “Andar com Fé” e “Sítio do Picapau Amarelo”.

Na dança também podem ser reconhecidos movimentos característicos das coreografias do Corpo e algumas formas novas, surgidas desde o último trabalho da companhia, “Gira”, de dois anos atrás.

Pederneiras, o coreógrafo, diz ter seguido o caminho de “Gira”, quando pesquisou, pela primeira vez, o universo da umbanda. Na criação atual, ele chegou ao candomblé. “O Gil tem uma posição muito alta na hierarquia do candomblé”, diz o coreógrafo. Uma das 12 cadeiras do ministério de Xangô no terreiro Ilê Axé Opó Afonjá foi destinada ao músico.

O espetáculo navega por muitas outras culturas e influências, mas é o santo guerreiro Xangô que faz a amarração dos quatro segmentos da obra de 40 minutos.

Pederneiras trouxe do candomblé o movimento usado como ponto de partida para a coreografia. Com os punhos cerrados, os bailarinos batem uma das mãos no peito e a outra nas costas, enquanto ondulam o tronco. O gesto, associado à presença do santo, é repetido de forma marcante ao longo do espetáculo.

O coreógrafo pensou em começar os movimentos da obra com um duo masculino fazendo esses passos. Mudou de ideia, mas acabou aproveitando o trecho em outra parte da apresentação.

É o único duo em “Gil”, uma novidade no estilo do coreógrafo. Seus “pas-de-deux” são famosos e costumam aparecer diversas vezes em seus trabalhos.

Sambar também é algo novo em sua dança. “Pela primeira vez, usei samba de forma explícita e adorei. Mas é levinho, sutil. Não dá para brincar com o samba impunemente, tem que saber usar”, diz Pederneiras, durante um ensaio do grupo, em Belo Horizonte.

Gil viu uma parte da coreografia pronta. “Em alguns momentos, remete ao meu modo espontâneo de dançar, que tem a ver com a expressividade dos corpos afro-brasileiros, mas acho que isso já estava presente em outras obras do Corpo, assim como de vários outros grupos da dança atual”, diz o músico.

Outras influências da obra de Gil também estão na trilha, uma mistura de samba, jazz, bossa nova, modinhas, choro, música eletrônica, afro e até erudita. Um dos trechos é inspirado nos compositores Erik Satie e Johannes Brahms.

Quando o diretor do Corpo, Paulo Pederneiras, foi conversar com Gil sobre a trilha, o músico mandou um recado para o idealizador da peça. Queria dizer que lhe daria muito trabalho. “E deu”, diz o coreógrafo, Rodrigo Pederneiras.

“Ele fez uma trilha muito diferente de todas as feitas para o Corpo. Nada é previsível. Tem percussões malucas, balafon, momentos meio orientais, um choro que entra de repente. É o Gil conhecido, mas também o que causa estranhamento, e eu tive que trabalhar com essas diferenças sonoras muito acentuadas”, conta o coreógrafo.

Toda estas diferenças são também uma resposta musical à diversidade de movimentos da companhia de dança. No diálogo entre uma linguagem e outra, o coreógrafo foi em busca dos ritmos menos óbvios, das batidas por trás das frases principais.

Para acompanhar as ondas sonoras e os troncos ondulantes dos bailarinos, o diretor pensou numa iluminação diferente, a partir da “moving light” usada em shows, com algo a mais –a luz ali cria uma coreografia, própria seguindo cada passo dos bailarinos.

Está dando um trabalhão. “São 22 aparelhos, uma programação muito complicada. É algo que a gente nunca fez nem viu ninguém fazer”, diz Gabriel Pederneiras, que assina a luz junto com o diretor.

A uma semana da estreia em São Paulo, no programa que inclui a obra “Sete ou Oito Peças para um Balé”, de 1994,  Paulo e Gabriel Pederneiras só tinham conseguido desenhar os primeiros oito minutos de luz de “Gil”. Levaram quase oito horas para isso.

Foi só um dos perrengues para aumentar a típica tensão pré-estreia. O figurino de Freusa Zechmeister, malhas negras com aplicações de grafismos e flores coloridas, inspirado na artista pernambucana Joana Lira, estavam sendo mudados. Três homens do elenco estavam fora de combate, por lesão ou doença. 

Coisas do tipo são comuns em estreias, segundo os Pederneiras. “Tantas vezes achei que o céu ia cair sobre minha cabeça e no fim tudo se resolveu. Agora ainda temos algumas coisas a fazer, mas já sei que o conceito deu certo. É isso que mantém a gente vivo”, diz o diretor da obra.

[A jornalista viajou a convite do Grupo Corpo]

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Veja trecho de ensaio do espetáculo:

Foto: Grupo Corpo Divulgação

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