Fuga de cérebros e autoexílio: Governo Bolsonaro reacende o trauma da Ditadura

por Rosana Pinheiro-Machado, em The Intercept Brasil

CÁTIA E JOANA SÃO CASADAS e terminaram doutorado na área das ciências da saúde por volta de 2016. Elas investiram em publicações em revistas científicas internacionais e partiram para os Estados Unidos em janeiro para atuar como pesquisadoras visitantes na Califórnia. Elas não pretendem retornar ao Brasil porque não veem perspectivas de concurso em suas áreas. Mas o fator decisivo da saída do país foi o medo. Uma noite, saindo de mãos dadas de uma festa no Rio de Janeiro, homens dentro de um carro lhes jogaram ovos e gritaram: “seus dias tão contados, sapatonas!”

Cátia e Joana são algumas das muitas colegas que conheci em um recente  giro acadêmico no exterior. Em tom de desespero, desesperança e até pânico, diferentes pessoas me contaram que não queriam voltar sob hipótese alguma. Homossexuais sentiam medo de morrer, pesquisadores consideravam não haver mais condições de se fazer ciência no Brasil.

Triste país em que um slogan da ditadura militar volta a fazer sentido: ‘Brasil, ame ou deixe-o’.

Multidões têm optado por deixá-lo. Dando pulos sobre a terra plana e apontando arminha para o próprio pé, há quem comemore. ‘Não estão contentes? Vão embora!’, gritam os bolsonaristas nas redes sociais, ignorando o fato de que emigração em massa é um dos mais alarmantes sinais do fracasso do desenvolvimento de uma nação. O efeito de um país que expulsa sua própria gente é uma bomba-relógio pronta para explodir no colo de Bolsonaro. Mas, infelizmente, é característica do bolsonarismo preferir morrer enforcado com a própria corda do que refletir sobre as consequências de seu governo.

O Brasil hoje exporta gente. Segundo o Ministério das Relações Exteriores, há 3 milhões de imigrantes brasileiros no exterior. Dados da Receita Federal concedidos ao Intercept indicam que a crise econômica tem causado uma debandada do país. Em 2011, em plena fase de crescimento econômico, o número de pessoas que declararam saída definitiva era de 8.170. Em 2014, ano em que começa a crise econômica, 12.451 deixam o país. Já em 2017 e 2018, esse número chega à casa dos 22 mil. Ou seja, em sete anos, o número de emigrantes brasileiros quase triplicou.

Para a pesquisadora Patricia Villen, a emigração deverá se acentuar nos próximos anos em função da crise econômica, mas também da ascensão da extrema direita. Trata-se de um desenraizamento forçado de caráter econômico, mas sobretudo psicológico, que causa um profundo sofrimento. Atualmente, pessoas de todas as classes sociais estão deixando o Brasil em busca de oportunidades lá fora, na mesma medida em que começa a crescer o caso de cidadãos que, como nos tempos da ditadura militar, buscam  abrigo no exterior por temerem as consequências de perseguição política e por orientação sexual.

Entre 1964 a 1985, 5 mil brasileiros se exilaram no exterior. Como aponta a pesquisadora Sara Duarte Feijó, o imaginário brasileiro sobre o exílio é construído sobre a ideia de “volta por cima”, fixada na representação do desembarque de exilados no Galeão ao som da canção ‘O bêbado e  o  equilibrista’. No entanto, pouco sabemos do sofrimento dos expatriados: do seu cotidiano de dificuldades, do sentimento de ser arrancado de suas vidas, das saudades da família. É esse cenário que milhares de brasileiros estão enfrentando ou irão enfrentar no exterior.

Fuga de cérebros aponta o fracasso de um país

Um estudo realizado pela empresa JBJ Partners mostrou que em quatro anos, de 2014 a 2018, o total de pessoas com curso superior ou pós-graduação que migraram do Brasil para os Estados Unidos pulou de 83% a 93%. Esse fenômeno, chamado fuga de cérebros (brain drain, em inglês), significa a emigração significativa de pessoas que levam sua qualificação especializada para outro país mais desenvolvido.

Diversos especialistas em ciência e tecnologia têm alertado publicamente que esse quadro de perda de talentos tende a se tornar mais crítico em virtude tanto do corte de 30% das universidades federais – o qual foi anunciado em tom de deboche pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub – quanto do de 42% no MCTIC. São cerca de 80 mil bolsistas do CNPq que correm o risco de não serem pagos a partir de agora.

Ainda que não tenhamos números consolidados de 2019, meu circuito no exterior me deu pistas de que podemos estar diante de um fenômeno sem precedentes. Em cada uma das 30 universidades que passei, conheci de três a cinco doutorandos ou pós-doutorandos que não queriam retornar. Isso significa uma amostra de 90 a 150 pessoas.

Tenho mantido contato sistemático com acadêmicos brasileiros que atuam fora. Sempre teve pessoas que queriam ficar no exterior por causa das melhores condições de trabalho e infraestrutura, mas esse grupo era contrabalanceado com os outros tantos patriotas que sonhavam retornar ao Brasil para retribuir o que aprenderam lá fora. O que mais me chamou atenção nesse meu giro recente foi não ter encontrado uma pessoa sequer dizendo que queria voltar para o Brasil nas atuais circunstâncias. Os pesquisadores ainda cultivam esse sonho, mas consideram o clima inóspito para cientistas. Eles estão certos.

O Ciência sem Fronteiras do governo Dilma Rousseff é um caso importante a ser discutido. O programa tinha objetivos ambiciosos de alavancar o desenvolvimento científico e tecnológico, e contribuiu significantemente para o crescimento intelectual de 100 mil jovens –muitos deles tiveram sua primeira experiência fora do país. Mas muitos estudantes reclamam de terem sido incentivados a buscar formação fora e de o país não ter condições de recebê-los de volta.

Entre 2016 e 2017, dialoguei bastante com estudantes do CsF em função de minha militância no tema do sofrimento acadêmico. Àquela altura, a situação desses pesquisadores altamente qualificados já era crítica. Hoje é calamitosa e desesperadora, com casos de depressão e tentativas de suicídio.

Há poucos anos, questionava-se se voltar ao país era única forma de retornar para o Brasil o conhecimento adquirido lá fora. Muitos estudantes pediam mais flexibilidade nas políticas de retorno, e a postura do governo era de reforçar a importância da volta como pagamento ao que fora investido neles. Hoje, o quadro é radicalmente diferente. Uma recém-doutora em Sociologia comentou comigo, com sarcasmo e tristeza, que o governo agradece se ela não voltar: “meu conhecimento não tem valor algum no país que me financiou.”

Pesquisadores veem que seus dados não importam. Intelectuais são perseguidos como doutrinadores. Seguindo a lógica fascista, estamos diante de uma inédita estigmatização do conhecimento acadêmico no Brasil que transforma o cientista no inimigo interno a ser destruído. Para quem não tem estabilidade no Brasil – e mesmo para quem tem –, só resta a rota de fuga forçada.

A volta do exílio político

De Chico Mendes a Marielle Franco, ativistas ambientais e políticos sempre foram alvo de perseguição. Mas hoje o medo é generalizado. Acadêmicos, intelectuais e ativistas sentem que estão sob ameaça de vida e terror psicológico. Não custa lembrar as declarações de Bolsonaro quando disse, por exemplo, “vamos fuzilar a petralhada”.

Estamos voltando ao quadro agudo de exílio. Nós teremos um número cada vez maior de pessoas que buscam proteção no exterior. Os casos mais conhecidos são do ex-deputado Jean Wyllys, da antropóloga e professora de Direito Debora Diniz e a da filósofa Márcia Tiburi, que residem no exterior por terem suas vidas ameaçadas por grupos de extrema direita. Bolsonaro, novamente, deu um péssimo exemplo à população, reagindo ao anúncio da partida de Jean com um tuíte “grande dia”.

Além disso, há um contingente imenso de pessoas que sai do país por conta de sua orientação sexual e se autoexilam no exterior. Se o Brasil já era o país que mais assassina pessoas transgênero no mundo, não é mera dedução lógica que esse quadro tende a piorar no governo Bolsonaro.  Pesquisa recente, conduzida pelo site Gênero e Número e Fundação Ford, mostrou que mais da metade da comunidade LGBT disse ter sofrido violência física e verbal no período das eleições, confirmando que o discurso de intolerância das eleições teve impactos concretos.

Assim chegamos a uma pergunta importante: como a desigualdade e os privilégios impactam no processo de emigração? Quem são, de fato, as pessoas que conseguem se salvar no exterior? As respostas a gente já sabe.

É inegável que quem mais sofrerá com a violência política do Brasil, bem como com a falta de oportunidades, serão os mesmos grupos vulneráveis de sempre. É a menina negra e lésbica na parada de ônibus, é o precariado que terá suas condições de trabalho ainda mais deploráveis com o alto índice de desemprego, o estudante cotista de baixa renda que mais sentirá o impacto do desmonte das universidades.

Essas pessoas não terão capitais econômicos e sociais para migrar. E quando migram estão muito mais expostos tanto à violência xenófoba contra latinos quanto ao sofrimento do desterro. O problema da emigração em massa não é de elite, mas de todo o país. Quando se produz inovação e tecnologia, ganha a nação. Um país que exporta seus melhores cérebros é um país que fracassou.

Tanto uma parte significativa da fuga de cérebros quanto a perseguição política configuram um retorno a um cenário de saída de brasileiros  motivado pela migração econômica e autoexílio em face de um medo iminente. Como nos tempos da ditadura militar, não são apenas os exilados que sofrerão o trauma do desterro, mas as próximas gerações também. Enquanto isso, Bolsonaro declara, em seu Twitter, que é um absurdo que o governo tenha gasto R$ 9,9 bilhões em reparação aos perseguidos da ditadura.

Uma antropóloga e ativista brasileira fez uma entrevista de emprego em 2012 para uma universidade no exterior. Na banca, perguntaram-lhe por que ela queria sair do Brasil em plena fase de crescimento econômico. Essa mesma pesquisadora fez outra entrevista lá fora em 2019, e a pergunta foi bem diferente: “Além do cenário político do seu país, existe alguma outra motivação para deixar o Brasil?”

Somos um vexame internacional e estamos chutando nossa própria gente.

Ilustração: Rodrigo Bento/The Intercept Brasil

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