Cidadania ativa contra a desintegração da democracia. Por Cândido Grzybowski*

O “capitão da motosserra”, como o próprio presidente da República se define, está determinado a destruir o que a cidadania brasileira conseguiu instituir, a duras penas, em termos de áreas protegidas e políticas regulatórias ambientais em defesa do bem comum natural. Mas, na verdade, o uso de uma “motosserra” na política por Bolsonaro (falas de ódio e intolerância, agressivos decretos, medidas provisórias ao arrepio da lei, a equipe de seu entorno, os  seus “zeros” familiares etc.) seja a melhor definição de seu devastador projeto de “desmatamento” e desintegração de alto a baixo da Constituição Cidadã do Brasil de 1988. Bolsonaro é agente de um projeto agressivo, assustador e de grande potencial destrutivo de direitos e da democracia, apontando para uma transição reversa rumo ao autoritarismo e ao capitalismo mais selvagem e excludente, colonizador, extrativista, patriarcal e racista. O nosso sonho de um outro Brasil possível, de bem com seu povo e seu território, está sendo violentamente atacado.

No entanto, não estamos condenados a ficar simplesmente espantados diante de tantos absurdos e, como cidadania ativa. Cabe a nós transformar indignação e raiva em ações de resistência, com um protagonismo que só nosso poder ter. Não podemos deixar que nosso cotidiano de convívios vitais múltiplos, na casa, na rua, no trabalho, nas escolas e universidades, no bar, nos parques e estádios, nas redes sociais, seja lá onde for, possa ser contaminado e dominado pelas iniciativas e mentiras que emanam do Planalto. Como não se cansava de afirmar o grande cidadão e ativista Betinho, lá na transição da ditadura para a democracia dos anos 80, precisamos olhar mais para a planície dos territórios de cidadania e menos para poder instalado no Planalto.

O momento é de olhar atentamente, escutar e entender o sofrimento vivido por quem tenta ir levando a vida lá onde está. Mas também descobrir e se inspirar nos sonhos e desejos, nas vontades e resistências, na coragem escondida, que todos carregamos, coisa nossa, força de vidas que não se dobram diante de tantas adversidades. Recompor o tecido da cidadania a partir do cotidiano é a tarefa permanente que devemos priorizar. A força e o protagonismo da cidadania só se fazem com união em torno a nossos desejos e sonhos brotados e reafirmados no dia a dia. Daí é que pode nascer um novo e potente ideário mobilizador, cimento de igualdade cidadã na diversidade do que somos. Muitas vezes fazemos isto sem nos dar conta que isto define o viver em comunidade de valores e princípios compartidos, que podemos exercer a cidadania com seu poder único de  instituinte e constituinte de democracias como projeto coletivo. Como analista e ativista vejo aqui a “pedagogia como prática de liberdade”, que o nosso Paulo Freire tão brilhantemente sintetizou em suas obras. É essa pedagogia que precisamos voltar a praticar. O conhecimento estratégico do que fazer e como fazer para um outro Brasil se fará na troca de saberes no interior da fabulosa diversidade de identidades, modos de viver e experiências que estão no cotidiano, lá onde vamos levando nossas vidas. A confluência viva disto pode se tornar uma potente onda de cidadania que se alastra pelo território.

Digo isso tudo não como uma verdade professoral ou doutrinária. Estou simplesmente afirmando que isto acontece à nossa volta. Trata-se de descobrir e humildemente sermos mais uns e umas que se unem para engrossar o que já está acontecendo. Começo lembrando o que já se tornou uma grande onda visível, que pode expressar grande resistência e impacto. Nesta semana mesmo, temos a mobilização de nossas juventudes em torno às ameaças sobre escolas e universidades públicas como pilares fundamentais para um futuro democrático em nosso Brasil. As propostas de mercantilização da educação do governo apontam para a destruição da ciência e da cultura como condição para viabilizar o seu projeto autoritário e excludente. A esta luta emblemática da cidadania de hoje e amanhã, que buscamos a partir de nossos cotidianos, se somam milhares de cidadãs e cidadãos que defendem as bases de um sistema solidário de Previdência Social no Brasil. Por outro lado, temos a força da Marcha das Margaridas, expressão do poder cidadão feminino das mulheres trabalhadores do campo, das florestas e das águas, com potência renovada e muita inspiração.

Mas quantas resistências que se multiplicam pelo país, que não estamos dando a devida atenção e apoio solidário, pois perdidos no meio dos absurdos e política de invisibilidade que brota do Planalto? Como assumir como nossa tarefa de resistência e protagonismo fazer o mapeamento do que emana dos territórios de cidadania? Esta é uma tarefa estratégica que nos fortalece como cidadania lá onde vivemos e aumenta a nossa capacidade de resistência ativa e incidência no espaço público, na disputa de narrativas, valores e direitos, sonhos e propostas. Temos mais do que imaginamos capacidade em nosso meio em termos de comunicação e troca que podemos mobilizar a serviço do tecer coletivo do tecido da cidadania em rede, abarcando a ampla diversidade de situações, identidades e vozes que carregamos.

Termino não negando a importância das análises de conjuntura. Mas a conjuntura não é e nunca será confinada ao que impõe a pobre, mas agressiva, verborragia de Bolsonaro e seus asseclas, pois existe resiliência cidadã viva e ela é parte da conjuntura. Claro que estamos num grande impasse político e institucional. Tivemos eleições gerais e venceu o bando que está aí, como desfecho de uma crise e perda de potência da democracia desde 2013, eleições de 2014, crise da economia, impeachment de Dilma e o fantoche governo Temer. Também é um fato real que essa situação desencadeou uma crise de institucionalidade, contaminando os três poderes da República. Mas isto, por mais importante que seja, não passa de um lado – lado dominante, sem dúvida – da correlação de forças. O que aponto é que não visibilizamos e não damos a justa importância ao que existe de resistência real, mesmo na precariedade que atinge grande parte da população. Estamos vivos e precisamos apostar na nossa própria força de cidadania, antes que o fascismo a la brasileira nos imponha um longo ciclo de poder autoritário “motosserra” de grande força destrutiva ecossocial, sem futuro.

*Sociólogo, presidente do Conselho Curador do Ibase

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