No país da casa-grande e da senzala a lei é adaptável às conveniências contingentes dos mais fortes, a minoria rica
por Mino Carta, em CartaCapital
As derradeiras revelações do The Intercept haveriam de ser o último capítulo do enredo da farsa encenada pelo tribunal da Inquisição de Curitiba, também conhecido como Lava Jato, para alijar a candidatura do ex-presidente Lula das eleições de 2018 ao condená-lo e prendê-lo sem provas. Deveriam ser, e são aos olhos do mundo civilizado e democrático, enquanto o Brasil finge ignorar “a canalhice”, como diz o condenado, cometida por Sérgio Moro e Deltan Dallagnol e sacramentada pelos poderes da República, com destaque para a Suprema Corte estupidamente pomposa a trair seu papel constitucional de guardiã da Lei.
No país da casa-grande e da senzala a lei é adaptável às conveniências contingentes dos mais fortes, a minoria rica. Não há como escapar à visão de um Brasil mergulhado na medievalidade mais obscura. Isto já foi dito e repisado e é do conhecimento até do mundo mineral, mas os brasileiros em sua maioria ainda não chegaram lá.
Há duas razões prioritárias de espanto. A primeira diz respeito ao silêncio das ruas, ao comportamento da mídia, inclusive à dolorosa constatação de que são muitos, em demasia, aqueles que, embora habilitados a perceber a velhacaria da farsa, preferem Lula preso. O ódio de classe explica até um certo ponto. Onde estão os cidadãos favorecidos pelas políticas sociais dos governos petistas, hoje devolvidos à sua irreversível pobreza? Sim, isto também já foi dito, e repetido talvez inutilmente, ao sublinhar a unicidade do fenômeno nativo.
Desde o início de junho, The Intercept divulga o resultado de uma investigação que não deixa dúvidas quanto à sua veracidade. Vêm à tona provas irrefutáveis de uma tramoia ciclópica que envergonha a todos e condena o País à condição de pária internacional, destinado a ser ainda colônia, e habitado por um povo sempre vocacionado para a escravidão. Em mais de três meses de revelações cada vez mais assombrosas, nada aconteceu, a não ser, nesta semana, a patética declaração de Gilmar Mendes, ao acentuar ter agido quando do vazamento de um telefonema entre Dilma Rousseff e Lula, e intervir para impedir a designação do ex-presidente a chefe da Casa Civil, baseado nas informações fornecidas pelos inquisidores, parciais e incompletas.
Ato falho do nosso Darth Vader? De fato, ele reconheceu implicitamente que o The Intercept conta a verdade. Em compensação, a mídia nunca chegou a um papel tão abjeto ao tomar claramente o partido dos desmascarados, até na hora em que estes inventam uma contramanobra para neutralizar o efeito das últimas revelações sobre os criminosos propósitos que orientaram o golpe de 2016. CartaCapital, sem a mais pálida chance de engano, já sustentou que, a partir da Lava Jato, tudo quanto se seguiu até a eleição de Jair Bolsonaro invalida todo o período pós-PT.
Falta falar da segunda razão de espanto terrificante. Está no inesgotável recurso golpista à ignorância do povo, à inconsciência da cidadania, à incapacidade não somente de reação, mas também, e sobretudo, de entendimento da constante humilhação a que foi submetido pelos séculos adentro. A esquerda, se em algum momento existiu e teve peso no contexto político, não soube preparar o povo para a compreensão das intermináveis ofensas recebidas. Na minha opinião, duas passagens da memorável entrevista de Lula a esbanjar energia, publicada na semana passada, me tocam profundamente. Quando declara: “A Dilma, o PT, eu, todos erramos e colhemos o que plantamos”. E mais, constata que o Brasil deveria imitar a Argentina. O grande e querido amigo me perdoe, mas o PT insiste no erro, a não ser nas terras livres do Nordeste.