A ameaça de um general à Lei de Anistia

Por Marcelo Godoy, no Estadão

O general Luiz Eduardo Rocha Paiva decidiu afrontar o acórdão do  Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Lei de Anistia. É o que afirma Eros Grau, ex-ministro da Corte com o peso da autoridade que lhe conferiu o fato de ter sido o relator do julgamento em 2010 que manteve a legislação e impediu que o “herói de Jair Bolsonaro”, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, terminasse seus dias na cadeia.

O governo Bolsonaro nomeou o general para a Comissão de Anistia e a transferiu do Ministério da Justiça para o da Cidadania. Tirou-a das mãos de Sérgio Moro e a entregou às de Damares Alves. Talvez porque precisasse pôr esse órgão de Estado criado por Fernando Henrique Cardoso nas mãos de guerreiros ideológicos para desprezar os limites da lei e as ordens das Cortes.

Rocha Paiva, conforme viu o leitor, era um entusiasta apoiador de Ustra. Ficou conhecido depois de Bolsonaro lhe dar o apodo de “melancia”. Era uma licença poética. O general é um empedernido anticomunista. Tornou-se alvo do twitter presidencial por ter visto na declaração do chefe sobre governadores ”paraíbas” uma afronta à nacionalidade.

No dia 25 de julho, Rocha Paiva passou por cima da Lei de Anistia em um julgamento da comissão. Ele analisava o processo da professora Claudia de Arruda Campos, antiga militante da Ação Popular, que requeria indenização por ter sido perseguida pelo ditadura. Presa pelo Dops, Claudia perdeu estudo e trabalho. O general se exaltou. A advogada Ana Lucia Marchione estava na sessão e testemunhou o banzé.

O relator do caso recomendara o reconhecimento da anistia. O general se opôs. Alegou que a mulher pertencera a “uma das organizações terroristas mais violentas!”. E continuou: “É lícito que o Estado estivesse investigando uma organização dessa natureza. O que aconteceu com ela não foi perseguição política, é porque ela era uma militante de organização terrorista! Se ela diz que era da AP tem de assumir a responsabilidade pelo que disse.” A sessão foi gravada.

Rocha Paiva tem saudades da ditadura. O general da comissão submeteu a novo julgamento a ex-militante da AP. Fez do relato da vítima a confissão de um crime. Transformou a Comissão de Anistia em Auditoria Militar. E a professora Claudia não estava ali para se defender.

Ela militara no mesmo grupo que abrigara o senador José Serra, Hebert José de Souza, o Betinho, e Fernando Santa Cruz, o pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Nascida da esquerda católica, a AP nunca foi uma organização terrorista, embora um de seus membros tenha se envolvido no sangrento atentado do Aeroporto de Guararapes, em 1966.

E mesmo que fosse. Em artigo publicado aqui, Grau diz que a Lei de Anistia, a Emenda Constitucional 26/85 e o Artigo 8° das Disposições Transitórias da Constituição de 1988 afirmam que a anistia foi ampla, geral e irrestrita para os “crimes políticos e conexos”. Entre os conexos estavam os assassinatos, as torturas e os desaparecimentos praticados por Ustra, que o general Rocha Paiva defende. Entre os políticos, anistiava-se pessoas como a professora que o general condenou.

“(A ação de Rocha Paiva) não é só contra o meu voto. É contra o acórdão do Supremo”, disse Grau. A fala do ministro que manteve a anistia é uma reação à extravagância dos termos com que o general se manifestou ao julgar a professora. “Negar a indenização é uma afronta ao Supremo e um desrespeito às instituições”, afirmou à coluna. O ministro lembrou que o caráter amplo, geral e irrestrito da norma não pode ser reduzido por um governo. Não é dado a ninguém a faculdade de respeitar as leis apenas quando lhe convém. Ou quando sua ideologia manda.

Grau lembra que nenhum militar perdeu a aposentadoria em razão dos crimes da ditadura. Se receberam os proventos é porque foram anistiados. Sendo assim, não se pode negar a indenização aos militantes de quaisquer organizações. A lógica da anistia é simples: se o Estado paga de um lado, tem de pagar do outro. O revanchismo do general contra a esquerda fez com que o ex-ministro fizesse, por fim, uma advertência: “O risco e consequência da manifestação do general é que o Estado se volte no futuro contra os militares e civis que defenderam o regime.”

A comissão de Rocha Paiva se vangloria de ter negado 1.300 pedidos de anistia e de ter concedido só meia dúzia. Alega haver nas decisões passadas do órgão uma farra com o dinheiro público, mas após 9 meses de governo não apresentou provas. O que há de concreto são casos como o da professora. Ou como o dos trabalhadores da Ford de São Paulo, demitidos em 1979 e enquadrados na Lei de Segurança Nacional.

Zelar pelo dinheiro público é obrigação do governante. Obedecer as leis também. Se convicções não lhe permitem julgar segundo a lei, Rocha Paiva não devia aceitar o cargo. Se aceitou, não devia jogar pedras na Anistia. Não se exerce uma função pública em nome da desforra ou do ressentimento. O alerta de Eros Grau é claro: se a conduta de Rocha Paiva chegar ao Supremo, as pedras do general podem se voltar contra a sua própria vidraça.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.

Ilustração: MPF

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