A ideologia do mercado é fanatismo. Entrevista com Thomas Piketty

Superar o capitalismo, dessacralizar a propriedade privada, reinventar um socialismo participativo. Thomas Piketty está de volta, e os ricos tremem. Depois de “O capital do século XXI”, lançado em 2013, o economista francês continua o estudo da história das desigualdades, com um novo e volumoso ensaio (1.200 páginas) que já provocou violentas polêmicas na França.

por Anais Ginori, em La Repubblica / IHU On-Line*

Capital e ideologia” não apenas amplia o olhar para fora do Ocidente, mas também faz propostas revolucionárias para redistribuir a riqueza. Na mira de Piketty, está aquele 1% da população que continua acumulando mais da metade do patrimônio, deixando para os outros apenas as migalhas.

Alguns o acusam de querer substituir a luta de classes pela luta dos percentuais. Piketty não se importa e rejeita o rótulo de novo Marx. “Eu acho que as relações de força não se constroem mais em torno do sistema produtivo, mas se organizam em torno de uma verdadeira ideologia que devemos desconstruir”.

Eis a entrevista.

Mas as suas estatísticas também mostram notáveis progressos na luta contra a pobreza.

Eu acredito no progresso. O meu livro começa com uma observação otimista, enfatizando a prodigiosa melhoria dos níveis de educação e saúde. O caminho para a justiça social não segue um caminho linear. Nos últimos dois séculos, vivemos épocas de grandes progressos e depois terríveis fases de regressão. A Revolução Francesa, ou seja, a formidável afirmação de um princípio de igualdade, também tinha os seus limites. Durante o debate sobre a abolição da escravidão, havia intelectuais liberais como  Tocqueville que lutavam para pagar indenizações aos proprietários. Era uma forma de sacralização da propriedade privada, semelhante à que observamos hoje não apenas no capital, mas também nos recursos naturais e no conhecimento.

Estamos em uma nova fase de regressão?

Ela começou em meados dos anos 1980, por causa da revolução conservadora de Reagan e do colapso da União Soviética. Esses dois eventos levaram a uma confiança exagerada, ideológica, justamente, na autorregulação do mercado. A Rússia é o exemplo mais extremo disso. Em um país onde era proibida qualquer propriedade privada, todos os recursos naturais estão agora nas mãos de 10 oligarcas. Na Rússia, não existe nenhum imposto sobre a herança e sobre a renda; existe um flat tax de 13% para todos, independentemente do fato de a sua renda ser de 100 ou de 1 bilhão de rublos. Na China também não há imposto sobre a herança, enquanto, em regimes capitalistas como Taiwan ou Coreia do Sul, ele pode chegar até a 50% para as grandes propriedades. Mas não é o fim da História, sempre há movimentos pendulares.

O que provoca esses movimentos históricos?

O exemplo da Suécia é muito significativo. Na Europa, frequentemente citamos o modelo igualitário sueco. Mas, até pouco tempo atrás, era um dos sistemas políticos e econômicos com mais desigualdades na Europa. Até 1911, apenas os 20% mais ricos podiam votar, e o número de votos era proporcional à riqueza. As mobilizações populares levaram os social-democratas ao poder, e, durante 60 anos, houve uma completa mudança de prioridades. Dito isso, as mobilizações ou os conflitos sociais são elementos fortes na mudança histórica, mas não são suficientes.

Por quê?

A luta de classes é boa, mas a luta ideológica é ainda melhor. Caso contrário, todos acabam desejando um colapso geral do sistema sem antecipar a sequência. Foi o que aconteceu depois da queda do regime czarista na  Rússia: os bolcheviques não tinham pensado no depois, afundaram-se na lógica dos bodes expiatórios para acabar no regime mais carcerário da história. E o pós-comunismo se tornou o melhor aliado do hipercapitalismo.

Você propõe organizar o pagamento por parte do Estado de uma “herança para todos”. Você realmente acredita nisso?

Não é uma utopia. Os sistemas de renda universal já fazem parte de muitos países europeus, mas a redistribuição do capital ainda não existe. Hoje, dois terços da população não herda nada. O sistema que eu proponho tem como objetivo permitir que todos, aos 25 anos, recebam 120 mil euros para iniciar uma atividade própria, comprar uma casa, realizar projetos.

Para encontrar os fundos necessários, você pensa em uma alíquota de até 90% nos rendimentos mais altos. Você odeia os ricos?

Aqui também existem precedentes. Isso já aconteceu nos Estados Unidos  em meados do século XX. E, no Reino Unido, é graças a impostos sobre a herança até 80% do patrimônio que, desde o primeiro pós-guerra, houve uma redistribuição das propriedades de terras. Hoje, infelizmente, parecem épocas distantes.

Você quer abolir a propriedade privada?

A propriedade privada deve permanecer dentro de limites razoáveis. Quando eu explico que gostaria de fazer com que os filhos das classes mais pobres tenham uma herança de 120 mil euros, os defensores dos direitos e das liberdades permanecem indiferentes, enquanto, se eu digo que os bilionários podem ficar bem mesmo com um patrimônio de 100 milhões, todos se insurgem. É uma loucura. Muitos estão cegados por um liberalismo elitista e autoritário.

*Tradução: Moisés Sbardelotto.

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