Aos indesejáveis, nem a Lei

Por Ana Carolina Bartolamei Ramos, no Justificando

Não é novidade para ninguém que há uma aceleração na eliminação dos corpos indesejáveis no Brasil.

Não causa estranhamento também que a discussão do fascismo não saia da pauta, inclusive porque, fora da possibilidade de entregar às redes sociais a sua condução, haveria a necessidade de enfrentamento dos corpos estirados e do sangue que lava as ruas. 

Da mesma forma, a utilização do encarceramento em massa não é algo que possa ser considerado como aleatório, se é justamente na invisibilização e segregação dos corpos que diferem da padronização eurocêntrica de identificação, aos quais se impõe massivamente as penas a serem executadas pelo Estado brasileiro, que se sustenta o descaso com o confinamento degradante e a tolerância com que se tratam as masmorras contemporâneas.

No entanto, falar mais uma vez disso para quem tem um mínimo de noção de como ocorrem os processos criminais no Brasil e como estão as prisões brasileiras, apesar de importante, não parece suficiente.

Se há uma apatia e até uma certa tolerância, mesmo inconsciente, talvez seja importante que se indague a articulação social e jurídica que nos trouxe até aqui.

E indagar o sistema de justiça penal não prescinde da percepção de que a forma com que se opera o direito é apenas o reflexo do que se é possível pactuar, sem comprometer a lógica da dominação, em nome da contenção da violência.

Partindo da premissa estabelecida por Freud de que a civilização exige do sujeito renúncia à satisfação pulsional, renúncia esta que é também causa de um mal-estar instransponível ao pacto civilizatório, não se pode considerar aleatório que em uma organização social submetida à lógica neoliberal se pretenda deslocar a exigência de renúncia à satisfação a apenas uma parcela da população.

Nesta perspectiva, contudo, segundo Foucault, não é mais do enfrentamento de duas raças exteriores uma à outra que se trata, e sim “o desdobramento de uma única e mesma raça em uma super-raça e uma sub-raça”, que se sustenta num discurso de combate a partir de uma raça considerada como a verdadeira e a única, e por isso detentora do poder e titular da norma, contra aqueles que estão fora dessa norma.  Foucault apresenta, assim, o aparecimento do que ele denomina de um racismo de Estado, “um racismo que uma sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre os seus próprios elementos, sobre os seus próprios produtos; um racismo interno, o da purificação permanente, que será uma das dimensões fundamentais da normalização social”.[1]

Parece ser nessa virada discursiva apontada por Foucault que ele mesmo denomina de “uma das mais maciças transformações do direito político no século XIX”[2], que consiste em completar, e não substituir, o direito de soberania – fazer morrer ou deixar viver – com um direito novo que, ao penetrar, perpassar e modificar esse direito de soberania, se trata de um poder exatamente inverso: “poder de fazer viver e de deixar morrer”. E ao que essa outra tecnologia de poder se aplica, ainda que não exclua o poder disciplinar, é a vida dos homens, a multiplicidade dos homens, não mais resumidos aos seus corpos, mas sim tomados pela forma de uma massa global, dirigida ao homem-espécie. 

“Depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada no decorrer do século XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já não é uma anátomo-política do corpo humano, mas que eu chamaria de uma “biopolítica” da espécie humana”[3].

Nesta medida, a escolha pela repressão a determinados grupos de pessoas dentro do sistema de justiça penal, mesmo no âmbito do Estado Democrático de Direito, não pode ser considerada apenas como um modo de atuação neste sistema, mas sim como sua característica fundante. 

O clamor pelas prisões, então, para além do apaziguamento da própria violência, é também a forma de afirmar que a violência está no outro. E o reforço da ideia da prisão como sinônimo de justiça, como já nos advertiu Eliane Brum[4], não é um detalhe, nem um efeito colateral, mas uma construção de futuro. 

Enquanto deixamos que fosse lavada a jato o que ainda restava de letra viva da Constituição Federal, que diga-se de passagem era muito pouco, os corpos continuaram – e continuam – sendo empilhados, tanto nos cárceres quantos nas valas, e abriu-se espaço para que essa reafirmação ideológica de que as prisões, ainda que significassem morte, seriam o sinônimo da justiça. 

Perfurar o discurso que forjou o pacto civilizatório fundante da sociedade brasileira é urgente. Dentro do sistema penal, mais do que isso, é preciso subverter a lógica punitivista. Pode parecer mais fácil agora o identificar-se como a própria Justiça, é preciso lembrar, no entanto, que em se tratando de uma ilusão que serve à dominação, seus interesses e atores são transitórios. Uma hora se olha no espelho e descobre que o alvo é você.

Ana Carolina Bartolamei Ramos é Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, coordenadora do Grupo de Monitoração e Fiscalização do Sistema Carcerário e Medidas Socioeducativas do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná – GMF/TJPR e membra da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Mestranda em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUC-PR e mãe do Raul.


Notas:

[1] FOUCAULT, Michel. Aula de 21 de janeiro de 1976. A teoria da soberania. In Em Defesa da Sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes. 1999, p. 72-73.

[2] FOUCAULT, Michel. Aula de 17 de março de 1976. Do poder da soberania ao poder sobre a vida. In Em Defesa da Sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes. 1999, p. 287.

[3] FOUCAULT, Michel. Aula de 17 de março de 1976. Do poder da soberania ao poder sobre a vida. In Em Defesa da Sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes. 1999, p. 289.

[4] Eliane Brum,  https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/04/opinion/1504537298_383906.html

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